segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A DANÇA

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Mal saem para o recreio, imediatamente se posicionam na zona mais maneirinha para a função: a parte cimentada do recinto, mesmo à entrada da escola. A corda, manuseada por mãos hábeis, convida as assistentes para a dança, num apelo irrecusável, qual Fred Astaire de braço estendido para Ginger. Aceite alegremente o convite, é vê-las então pular, sozinhas ou em grupo, num ritmo cadenciado mas cheio de ginga, capaz de as transportar para outros mundos.
Quando o cansaço as vence, imediatamente entra em acção outro grupo, ávido da mesma volúpia libertadora. E por ali ficam, cavalgando os anseios, às vezes subindo, subindo no ar, até a escola se desmaterializar no tempo...
Uma voz, que parece vir de longe, começa a insinuar-se no grupo, anunciando a entrada. O despertar é brusco. As viajantes, a muito custo, acabam por aceder a sair da dimensão alcançada, e Ginger Rogers, contrafeita, tem que largar o braço do parceiro, dirigindo-se para a zona dos lavatórios.
Quando, finalmente, chegam à sala, já o equilíbrio está restabelecido.
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segunda-feira, 21 de setembro de 2009

RUA DA CALE

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Saiu do café, onde debitara dois dedos de conversa com o João, e dirigiu-se para a Rua da Cale. A mulher pedira-lhe que comprasse fruta e ainda mais qualquer coisa, que já esquecera, e aproveitou para dar um salto à mercearia do Joaquim Bocas.
Na velha artéria, longe do fulgor de outrora, quando aí se concentravam as actividades comerciais e artesanais do Fundão, apenas transitavam duas ou três pessoas, número muito longínquo das necessidades das pequenas lojas que ainda teimavam em abrir as portas. Os donos, com a resignação gravada no rosto, continuavam incapazes de conviver com uma realidade que não entendiam, e recordavam tempos passados, quando os fregueses eram muitos. Talvez ainda sonhassem com o regresso desses tempos, quem sabe!
Quando entrou na mercearia estava o Bocas, na obscuridade da loja, a limpar umas bugigangas de loiça que pareciam estar ali há décadas. Nos braços trémulos continuava a usar mangas-de-alpaca, tal como há quarenta anos atrás, quando, na sua meninice, começara a frequentar aquela loja para se abastecer de cromos de futebol, rijamente disputados com outros petizes. Cumprimentaram-se e o rosto do velho animou-se um pouco.
- Então, que vai ser hoje?
- Dois quilos de maçã bravo esmofo e um pacote de arroz agulha.
- Estas sim, têm sabor, não são como as maçãs que vêm da Espanha. São da quinta do meu cunhado. Não há melhor, meu rapaz!
Quando saiu da Rua da Cale, tal como sempre que ali ia, sentiu que estava a sair de um dos últimos resquícios das paisagens da sua infância. Os amigos não entendiam aquele capricho que o levava, de quando em vez, a fazer compras na mercearia, quando a pequena cidade estava servida por vários hipermercados, com tudo mais barato e moderno. Mas ele apenas sorria, enigmático. Apesar da decadência evidente do local e da tristeza dos olhares, sempre que podia dava ali uma saltada. Então, qual alquimia cinéfila, a atmosfera da rua transformava-se e, não raras vezes, sentia no ar os gritos de júbilo de um pequenote a quem era permitido entrar no paraíso quando, ao desembrulhar os cromos que envolviam pegajosos rebuçados de meio tostão, gritava a plenos pulmões:
- Saiu-me o Eusébio!!! Saiu-me o Eusébio!!!
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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A LASSIE

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De olhar vago e distante, mas com um porte digno, engana qualquer observador menos atento. Ostenta um luzidio pêlo preto e costuma vaguear por terrenos circundantes à escola, onde tem o seu território bem demarcado. Por perto só permite caninos de boa índole, não vão estes perturbar os seus protegidos, umas pequenas criaturas bípedes, de olhos brilhantes, que costumam frequentar o edifício situado no centro dos seus domínios. É a Lassie.
Os seus protegidos, os alunos da escola, são os grandes conhecedores da enorme riqueza existente no seu código genético, verdadeiramente abençoado por manipulação divina: uma ternura do tamanho do mundo! Perto da Lassie a segurança aumenta, os medos desaparecem, e ela tudo permite aos pequenos amigos, até que a cavalguem... Em troca, e é condição fundamental, a Lassie apenas exige que eles ostentem a sua condição de criança: que corram, saltem, riam...
Às vezes, quando lá fora o frio aperta, a Lassie esgueira-se para dentro da sala de aula e vai deitar-se junto da estufa. Os seus pequenos amigos, habituados à sua presença, olham, trocam um sorriso cúmplice e retomam o trabalho com a mesma concentração.
Com a Lassie, o mundo parece mais tranquilo e seguro.
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Texto publicado pela 1.ª vez em Janeiro de 2007 no blog da escola de Aldeia de Joanes
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sábado, 12 de setembro de 2009

A MULHER QUE GOSTAVA DE LIVROS

.Nunca teve muita paciência para aturar as conversas das colegas, tinha mais que fazer que estar a falar da vida alheia. Gostava de sair, ai se gostava, mas as suas debandadas cingiam-se às compras do dia a dia. Para além disso satisfazia-se com uma passagem rápida pela pastelaria, onde uma bica bem quentinha lhe reforçava o ânimo. Às vezes concedia dois dedos de conversa à D. Fátima, que lhe contava as últimas novidades, e ala para casa, que a vida não se arranja no paleio.
Dentro de paredes era Maria que fazia e desfazia, e o marido há muito se resignara a tal facto. Conhecia bem a determinação e a energia da mulher, e não adiantava lutar contra tais armas. No fundo admirava aquela força da natureza, que delineava o contorno das suas vidas de forma implacável.
Os filhos conheciam-lhe bem a voz de comando, e foi-os instruindo no caminho do trabalho e do esforço. O percurso deles foi-lhe mostrando que tinha razão.
Do dinheiro do orçamento familiar, rigorosamente gerido, apenas se lhe conhecia uma extravagância: comprar um livro de vez em quando. Lia-o à noite, depois da lida da casa, e o marido nem sempre entendia aquela bizarria. Era a única altura do dia em que a via longe dali, como se a sua realidade controlada, por momentos, não existisse.
Mas os anos já iam pesando, apesar de continuar mexida e desembaraçada. Com os filhos em casa própria, começou a ter mais tempo para si, e a dar largas ao seu gosto pelos livros. Lia, lia muito...
O neto começou a frequentar a casa, adoçando-lhe os dias, fazendo cócegas àquela capa de austeridade. O companheiro, porém, via-lhe nos olhos uma espécie de insatisfação. Bem tentava sondar, mas um seco "não se passa nada" cortava toda e qualquer inquirição.
Uma manhã o marido saiu cedo. Maria, habituada ao seu rosto tranquilo e resignado, notou-lhe uma determinação pouco habitual, mas encolheu os ombros. Retomou a leitura de "Veneza", de Jan Morris, e não pensou mais no assunto.
Depois do almoço, após arrumar a cozinha, voltou para a sua leitura. Ajeitou a almofada, sentou-se, e esboçou o gesto maquinal de pegar no livro. Só então reparou no invólucro, com o logotipo de uma agência de viagens, deixado em cima da capa do livro. O marido olhava, num misto de apreensão e ansiedade. Mas, quando lhe viu o brilho de satisfação ao ler a palavra Veneza, percebeu que tinha acertado em cheio.