sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O REENCONTRO

.Há anos que não se viam. A última vez tinha sido num almoço comemorativo do curso, já lá iam uns bons dez anos. O Pedro parecera-lhe bem mas, ao contrário do que acontecia frequentemente nos tempos em que eram dois estudantes ávidos de abraçar a vida, não conseguiram criar o clima propício a grandes conversas. Ele falara-lhe vagamente da filha, da escola onde trabalhava, e pouco mais. Nem sequer falara de pintura, a sua menina dos olhos de outros tempos. A vida tinha-os afastado, era notório. Longe iam os tempos em que se julgavam únicos e confidenciavam projectos, anseios, sonhos.
Quando o sistema de colocação de professores os separou, rasgaram uma nota de quinhentos escudos ao meio e cada um ficou com metade, para gastarem quando se reencontrassem. Porém, apesar desta espécie de promessa de amizade eterna, a pouco e pouco foram perdendo o contacto. Ainda se cruzaram algumas vezes, sempre disponíveis e confiantes, mas as novas pessoas e geografias com que se foram deparando acabaram por afastá-los irremediavelmente.
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Carlos costumava passar, quase todos os anos, uns dias numa praia lá bem a sul, onde as elevadas temperaturas e a luz dourada convidavam à moleza e ao desprendimento. Era o perfeito dolce fare niente, depois de um intenso ano de trabalho. Começara a ir para ali quando os filhos ensaiavam os primeiros passos, e eles deram-se bem com a suavidade daquelas ondas e a macieza do extenso areal. Entretanto cresceram, começaram a cortar os primeiros assomos de barba, mas ficou sempre o hábito de ir para aquele local protegido e afável. De vez em quando viajavam para saciar o desejo de conhecer novos lugares e novas gentes, mas a ida para a luz do sul era sagrada.
No último Verão, sentado numa esplanada, ao deleitar-se com uma fresquinha enquanto passava os olhos pelo jornal, Carlos foi surpreendido por uma voz que lhe parecera familiar: era o Pedro. Engordara um pouco e os cabelos começavam a ficar grisalhos, que as marcas do tempo não esquecem ninguém, mas conservava o mesmo sorriso franco e aberto.
Que fazes aqui, como é que estás, senta-te...
O Pedro continuava a viver nas imediações da serra de Montejunto, onde constituíra família. Enquanto os pais foram vivos ainda foi mantendo alguns laços com o torrão natal, mas depois da sua morte esses contactos esbateram-se por completo. Mas continuava a ter a Beira no sangue. Via à distância, com tristeza e desânimo, o esvaziamento cada vez maior do interior, e não entendia como é que, numa região tão depauperada e esquecida pelo poder político, as pessoas teimavam em não se unir num objectivo comum, preferindo dar guarida às vaidadezinhas e aos egos balofos. Às vezes sentia vontade de regressar, de respirar os cheiros dos lugares onde se fizera homem, de pagar a dívida ancestral, mas...
Continuaram a falar pela tarde fora, enquanto iam deglutindo os sabores de Verão em pratinhos bem guarnecidos. Lentamente a tampa do baú começou a abrir-se e, de forma natural, as memórias de acontecimentos, pessoas e paisagens começaram a esgueirar-se. A gargalhada tornou-se fácil, espontânea, e a cumplicidade de outrora insinuou-se.
No final, quando pediram a conta, puxaram da carteira e, com um sorriso estampado no rosto, cada um colocou, em cima da mesa, metade da velha nota de quinhentos.
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7 comentários:

  1. Pronto, lá estou eu a lacrimejar.E não pense que sou uma pieguinhas porque adoro rir, mas a lágrima fácil é também uma característica minha e da estrelinha.A minha mãe também era assim. Andava sempre de lenço metido dentro da manga.
    Fiquei comovida porque fui lendo o texto e achei que era eu que estava a escrever, tal a ligação afectiva que sinto com os seus textos e os seus pensamentos e emoções.
    Um dos últimos poemas do meu blog, intitulado Afectos,era dedicado a uma amiga que não via há mais de trinta anos e que foi a companheira inseparável da meninice e da juventude,tempo em que essas duas meninas" se julgavam únicas e confidenciavam projectos, anseios, sonhos."
    Também nós fomos falando pela tarde fora e pusemos em dia, durante quatro horas, a longa ausência. Não tínhamos a nota(que lindo!),nem podíamos remediar o irremediável, mas o reencontro com a nossa juventude tão fugaz, trouxe-nos apaziguamento ao coração.
    Sabe? Uma dessas meninas também traz, enquanto adulta, a Beira no sangue. Beira-Alta,beira-beira aqui à beira de si, neste reencontro de escritas. Que bem escreve você!
    Ibel

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  2. Que mensagem tocante!
    As verdadeiras amizades podem ficar adormecidas mas jamais esquecidas!
    A história do Pedro e do Carlos, feita de encontros e desencontros... é uma linda lição de vida, especialmente se pensarmos na mensagem implícita na nota de quinhentos dividida a meio...Enternecedor!
    O Agostinho tem um dom fantástico para a escrita e pensamento reflexivo sobre o nosso "eu". Continue a redigir assim. Quem sabe se num futuro próximo não encontraremos um livro da sua autoria à venda! Por que não?
    Os grandes projectos partem do nada e vão-se construindo, construindo...Que assimseja!
    Obrigada por valorizar a vida, a amizade e o talento.
    Ana

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  3. #Ibel, se ousei iniciar um blog muito o devo a si. Obrigado pelas palavras tocantes e pelo incentivo.

    #Ana, quanta amabilidade! Espero que continue a acompanhar o Interioridades, seria um grande prazer.

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  4. Os verdadeiros amigos são como as estrelas, mesmo distantes no tempo , sabemos que estão sempre lá!
    As amizades puras e desinteressadas são cada vez mais raras, exemplos como este quase que são histórias de encantar, tudo é preterido em favor da egoista, e mesquinha vida de cada um.
    Em cada história nova com que nos deleita, há sempre uma verdade que pode ser a de qualquer um de nós.
    Bis, bis;suba novamente o pano e encante-nos todos os dias...BEm haja!

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  5. Luísa, muito obrigado pelo que diz, fico muito sensibilizado.
    Quanto a escrever uma história por dia, isso é completamente impraticável por manifesta falta de tempo. Se conseguir publicar duas por semana, como até aqui, já seria muito bom. Vamos ver.

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  6. " O tempo passa... a vida acontece... a distancia separa... as crianças crescem... os empregos vão e vêem...os pais morrem... as carreiras terminam...mas... os amigos estão lá, não inporta quanto tempo decorreu, nem quantos quilometros ... eles, estão sempre entre nós.
    anapaula.

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  7. gostei...é sempre bom quando não deixamos que o tempo esmureça...sentires.
    brisas doces*****

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