quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O CEMITÉRIO DE ELEFANTES

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A Cova da Beira, fértil vale entre a Gardunha e a Estrela, é um dos sítios de Portugal mais aprazíveis para se viver. Tem água em abundância, terrenos férteis, paisagens de comover poetas, bons ares, referências históricas, gente de boa índole... A Espanha está mesmo aqui ao lado e o acesso a Lisboa, todo em auto-estrada, faz-se num ápice.
À partida deveria ser uma zona apetecível para um poder político que se preocupasse com a qualidade de vida das populações. Mas não é. Infelizmente. Num ritmo assustador, a Beira tem assistido à partida, ano após ano, de gerações inteiras dos seus melhores filhos em busca de oportunidades, no litoral ou no estrangeiro, que dêem resposta aos anseios profissionais que a região de origem, desgraçadamente, não lhes pode oferecer. Não havendo vontade política nem investimento, não há empregos. E a esta lógica ninguém consegue fugir, transformando a região, aos poucos, numa zona de gente envelhecida. A Universidade da Beira Interior, com alguma pujança, e os Politécnicos de Castelo Branco e da Guarda, têm atenuado um pouco este cenário, mas os seus efeitos não são suficientes para cimentar uma lógica de desenvolvimento equilibrado. Formam pessoas que vão trabalhar, na sua maioria, longe daqui.
Curiosamente, ou talvez não, nos últimos tempos ouve-se falar em diversos projectos para a construção, na região, de bem apetrechadas unidades com vocação para acolher idosos endinheirados. E assim, fazendo um simples exercício de projecção no futuro, não é difícil imaginar, daqui a alguns - não muitos - anos, a Cova da Beira: um enorme cemitério de elefantes, dividido em escalões sociais. A par de uma população activa com tendência para o envelhecimento, vão proliferar, por um lado, os apertados e apinhados lares das instituições de solidariedade social, reservados aos mais desfavorecidos e remediados; por outro, os empreendimentos luxuosos para quem tem a carteira bem recheada, com acesso a todo o tipo de cuidados. Até no fim a dignidade tem um preço.
Que os políticos e os diversos agentes locais - e há por aí gente muito capaz - lobriguem a inspiração necessária para contrariar a tendência, devolvendo a esta terra a esperança no futuro, são os meus votos.
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terça-feira, 29 de dezembro de 2009

PRIMAVERA

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Éramos jovens potros
Imunes ao receio
E a Primavera de Vivaldi
Em harmonia vibrante
Era o primoroso retrato
Do nosso entusiasmo
No galopar sem freio.
A seara ondulava, sensual
E viajávamos no sonho
Embalados no rumor da aragem
Que escrevia
Nas folhas dos freixos
Sinfonias à nossa passagem.
A paixão das cigarras
Morava dentro de nós
E a linha do horizonte
Meta por conquistar
Era a tela
Dos planos traçados
Dum mundo por desbravar.
Adormecia nos teus braços
Em nocturno de Chopin
Terna e doce vassalagem
E só o romper da aurora
Rebate do mundo lá fora
Quebrava o feitiço da viagem.
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domingo, 27 de dezembro de 2009

AURORA

.Quadro de Costa Pinheiro - O Chapéu do Poeta
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No anúncio dos dias
A aurora era a promessa
Do sonho por realizar
Tantas vezes burilado
No vazio decantado
Das pepitas por achar.
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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

SINAL

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Aproximou-se e, com ar de quem sabe o que está a fazer, levantou a frágil tampa. Lá dentro, no meio dos detritos da abundância, uma ideia desprezada debatia-se, inconformada com a inevitabilidade dos tempos. Pegou numa velha vassoura e varreu a zona contígua ao contentor, tornando-o a estrela do beco. Então pegou numa placa, virou-a e escreveu algo no verso. Depois de a colocar de modo a nela incidir a luz do candeeiro, afastou-se do local.
Quando os almeidas saltaram do camião para recolher o lixo, depararam com uma placa onde, em letras gravadas a fogo, se podia ler: "AQUI AGONIZA O ESPÍRITO DE NATAL".
Naquela noite, no desconcertante beco, o lixo ficou por recolher.
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sábado, 19 de dezembro de 2009

VERDADE

.Van Gogh, Noite Estrelada
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Nasceste em humilde palha
Extraordinária lição
Acto sublime
Revolucionário
De total contestação
Em que tudo pode mudar
Com um simples dar a mão.
Desfizeste teorias
Emaranhados
Teias de eruditos
Entendidos
Fazedores de opinião
Incapazes de abafar
Em confronto directo
O perfume
Da tua ilação.
Em grupos circunscritos
Anteciparam Maquiavel
E em tenebroso papel
Pegaram na Palavra
Podaram o essencial
Colaram o acessório
E cavalgaram a onda
Em apoteose total.
E eis como a verdade
Ficou do interesse geral.
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quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

(DES)OLHAR

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Olhavas para ti
E vias
Em pânico
O tempo a escoar
Qual ampulheta
Meteórica
Sem vontade de parar
E não sabias
Desesperada
Que tecla tocar
Para refrear
A angústia premente
Que minava
Continuamente
A verdade instalada.
Se ponderasses
Para além do ego
Talvez notasses
Sem desatino
O fio de água
Cristalino
Que corria
Galgando a frágua
Para abraçar
Por inteiro
A razão do seu destino.
Então talvez pudesses serenar.
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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

HISTÓRIA DE NATAL

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A década de sessenta iniciara-se há pouco.
Na aldeia, inclinada à inclemência dos gelos da Estrela, não se poupava na lenha. Em casa do Luís Pereira o lume crepitava desde muito cedo, inundando a cozinha com um calor só visto nas grandes azáfamas.
Da horta, logo de manhã, tinham chegado as mais lindas e apetecíveis couves, que iriam fazer companhia, na Consoada, ao bacalhau já demolhado, comprado na mercearia da menina Amélia. Mas havia ainda muito que fazer: só de doces ainda faltavam as filhós, que seriam fritas a meio da tarde, as rabanadas, o arroz doce...
O João, seis anitos de gente, cirandava pela casa tentando não perder pitada de todo aquele movimento, que só se via naquela altura do ano. Enquanto a mãe e as irmãs davam voltas à massa para as filhós, o pequeno não arredava pé, como se toda aquela lida desse asas ao encantamento com que vivia a época.
- Oh João, vai brincar lá para fora!
É o vais! O João empolgava-se a respirar todos aqueles preparativos para "a noite mais longa do ano", como dizia o pai, e só quando era preciso reforçar o lume é que ele condescendia em ir ao quintal para trazer mais uns cavacos. Era preciso aquecer bem a casa para receber o Menino Jesus!
Durante a fritura das filhós, toda a casa se via envolvida em cantos. Enquanto lhes davam forma e as colocavam no azeite quente, as mulheres da casa cantavam em louvor do Menino:
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Ó meu Menino Jesus
........Ó meu menino tão belo
........Só Vós pudestes nascer
........Na noite do caramelo.
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À Consoada, após a oração dirigida pelo chefe da casa, as atenções centraram-se no bacalhau e nas couves que, a pouco e pouco, iam desaparecendo de duas grandes travessas. Aos dois filhos mais velhos, já homens feitos, foi-lhes permitido acompanhar o pai e o avô num copo de vinho, que a ocasião era de festa. A noite ia decorrendo, animada, como seria de esperar numa mesa com dez pessoas irmanadas pelos mesmos sentimentos. As filhós e as rabanadas iam temperando a conversa, que alternava aqui e ali com as canções que as mulheres tentavam impor e a que todos aderiam...
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........Da vara nasceu a vara
........Da vara nasceu a flor
........Da flor nasceu Maria
........De Maria o Redentor.
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Ainda a mesa da Consoada não estava apanhada e já o João, afoito, corria para a cozinha, na ânsia de colocar os sapatos para a prenda do Menino Jesus. Ainda esboçou um gesto para levar também as botas feitas no Zé Brás, o sapateiro da terra, para ver se o leque das prendas aumentava, mas os olhos da mãe disseram-lhe que não valia a pena. Pouco depois recebeu ordem para ir para a cama, enquanto os mais velhos, com outro estatuto, saíam para a missa do Galo, a que se seguiria uma ida ao madeiro, que combatia o ar gelado da noite no adro da igreja.
No dia de Natal, bem cedinho, ainda antes do galo cantar, o João foi o primeiro a levantar-se. Com o coração aos pulos, correu para a cozinha e galgou a distância em dois tempos. Pegou no embrulho que estava junto dos seus sapatos, atado com um grosseiro cordel, e desembrulhou-o logo ali. Então, deslumbrado, pegou na camisola e nas calças novas e levou-as, instintivamente, ao seu corpito de menino. Que bem que lhe ficariam na missa de Natal!
A manhã custou a passar, pois nunca mais chegava a hora de vestir a roupa nova. Ansiava pelo momento de subir a igreja, de peito inchado, exibindo a roupa para os amigos. Quando, finalmente, chegou a autorização da mãe, ele e os irmãos partiram para a igreja, onde os aguardava o encantamento das enormes figuras do presépio que o padre Nicolau tinha mandado vir do Porto.
Enquanto faziam o caminho o João continha-se para não correr. Queria chegar à igreja o mais rapidamente possível para ver o presépio, mas com a roupa direitinha. Contudo, os cânticos que se ouviam ao longe ainda acirravam mais a vontade de chegar depressa. Os irmãos, que lhe notavam a ansiedade, sorriam uns para os outros. Apesar das partidas que ele lhes pregava, gostavam muito da vivacidade do irmão mais novo, e sabiam o que ele estava a sofrer para dominar a sua vontade. Às tantas, já com a igreja à vista, o pequeno não se conteve mais e começou a correr. Os irmãos ainda tentaram segurá-lo, mas quem o conseguiu foi uma pedra solta no meio do caminho, que o fez estatelar no meio do chão.
Teve que voltar para trás e, quando chegou a casa, ainda não parara de soluçar, tal a decepção que sentia ao ver a sua roupa nova toda enlameada.
Com muito jeitinho e uma paciência que só as mães têm, a Maria José lá o convenceu a vestir outra roupa. E o João, que sonhara com uma entrada triunfal na igreja, subiu a coxia de cabeça baixa, só estacando em frente do presépio. Então, à vista daquelas maravilhosas figuras, o miúdo começou a esquecer-se da roupa que vestia. Deitou os olhos para o Menino e, qual milagre de Natal, teve a certeza que Ele também olhava para si. E sorria-lhe.
Durante o almoço toda a gente estranhou o silêncio do João. Não que ele estivesse triste, longe disso, mas mostrava-se tão ausente do que tinha no prato que parecia longe dali, absorto em mil pensamentos. Mas o que passava na sua cabeça devia ser coisa boa, pois de vez em quando esboçava um sorriso. E só mais tarde, quando lhe puseram uma taça de arroz doce à frente e o viram desenhar um menino com a canela, é que perceberam o encantamento que ia na alma do pequeno.
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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

BRUMAS

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Chegaste de mansinho
Quando a bruma
Asfixiante
Inundava o fundo do vale
E trazias contigo
Sem nada o prever
O aroma das madrugadas
Com o dia por resolver.
O verde das faias refulgia
Com a claridade instalada
E a cotovia
Prenúncio de sinfonia
Galgava as alturas
Em ânsia ilimitada.
Gostaste do teu papel
Forjado em conto de fadas
E a sorrir adormeceste
Mas esqueceste
A função primordial
(Deixaram de bater as asas).
Então o lume
Exigente na atenção
Lentamente esmoreceu
E a bruma
Expectante
Inundou de rompante
A razão do coração.
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sábado, 5 de dezembro de 2009

LUZ E SOMBRA

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As suas palavras desenhavam fantásticos arco-íris, como se o fabuloso pote das moedas estivesse à distância de um gesto. O seu sorriso, enorme e credível, reforçava a impressão favorável, suscitando imediatos portos de abrigo em qualquer interlocutor. Mas, quando tinha que se haver com a dura e cruel realidade, o papel representado passava para segundo plano. E um diabinho inquietante, com tridentes de fogo, insinuava-se na imagem criada, provocando o toque a recolher na horda assustada.
Duas imagens antagónicas, inquietantes, à distância de um estalar de dedos.
A horda, avessa à reflexão, esconjurou-o de imediato, sem saber que se estava a afastar do mais fundo de si mesma.
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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

SOLIDÃO

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Caminhar em comum incomodava-o, nem ele sabia bem porquê, e, lentamente, foi procurando o refúgio das veredas. Mas até estas, às tantas, lhe pareciam movimentadas auto-estradas.
Começou a traçar mapas do seu percurso, rumos inventados que apenas existiam dentro de si. No princípio gozou a liberdade, o prazer de percorrer uma estrada incólume, original, em que apenas prestava contas a si próprio. Navegava com a lua, viajava com o vento que embalava os pinhais, fez-se regato a observar as nascentes...
Um dia quis partilhar o seu mundo. Olhou em volta, mas tinha sido eficaz na escolha do caminho: não havia ninguém por perto. Então, a pouco e pouco, uma sensação de frio começou a apoderar-se da sua alma, tolhendo-lhe qualquer espécie de harmonia com o cenário inventado. Ainda esbracejou, mas tinha viajado para muito, muito longe, e apenas encontrou o aperto do vazio.
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