domingo, 26 de dezembro de 2010

CONSPIRAÇÃO

.Margarida Cepêda, O destino rasga e cose
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Procuro o retiro da montanha, mas o teu eco, vindo de longe, galga a encosta e agita, de leve, as copas dos pinheiros. A brisa afaga-me a pele, contando-me da tua nudez em busca de resgate, e as aves, cúmplices, não param de entoar árias à sede dos teus lábios.
Tudo parece conspirar, e até as cores da aurora ajudam a perpetuar a tua omnipresença...
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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

VISLUMBRE

.Margarida Cepêda, O Rei e o Cavalo
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Em pequeno encantara-se com a história de Sebastião, o rei menino, que se perdera nas areias do deserto em busca de uma quimera. Mas, ao contrário dele, a sua visão não passava pelo alargamento de fronteiras em detrimento de outros. Sonhava um reino, sim, mas um reino sem reis, um espaço abrangente onde houvesse lugar para a reinvenção da vida.
No velho edifício caduco, em ruína iminente, os funcionários mantinham a porta aberta num dissimulado faz de conta, tentando retardar o anúncio da derrocada. Geriam a crise por etapas, em que a próxima significava sempre o descer de mais um degrau.
Talvez fosse melhor assim, a maioria das pessoas não estava preparada para saber a verdade. Sentiam-lhe os contornos, mas não queriam encará-la. Mais tarde ou mais cedo o edifício ruiria, e o desespero e a rapina seriam condição natural. Era por isso que tentava ver por entre as frestas das armadilhas dos senhores do mundo, de que todos sentiam o peso sem rosto, em busca de um vislumbre de possíveis clareiras. O pesadelo era inevitável, mas também sabia que muitas vezes era no infortúnio que se forjava o que de melhor há nos homens. As flores acabariam por germinar.
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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

ILUSÃO

.Margarida Cepêda, A Ilusão
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Dentro de ti tudo era certo e incerto, apesar de saberes da conjugação dos astros.
Recolhias-te ao silêncio, fechando os olhos para ver mais claro, mas a inquietação era cúmplice, e só quando me pressentias para lá do rio, no caminho que ia dar aos salgueiros, é que conseguias invocar o feitiço das borboletas.
Era ainda o tempo de respirar o aroma das rosas, de seguir a linguagem dos sentidos...
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Sei que estou em falta na visita aos blogues amigos, mas a minha actividade profissional tem sido tão intensa que me tem sido impossível. Talvez este fim-de-semana consiga equilibrar as coisas.
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domingo, 12 de dezembro de 2010

CONTO DE NATAL

.Imagem tirada da Net
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A década de sessenta iniciara-se há pouco.
Na aldeia, inclinada à inclemência dos gelos da Estrela, não se poupava na lenha. Em casa do Luís Pereira o lume crepitava desde muito cedo, inundando a cozinha com um calor só visto nas grandes azáfamas.
Da horta, logo de manhã, tinham chegado as mais lindas e apetecíveis couves, que iriam fazer companhia, na Consoada, ao bacalhau já demolhado, comprado na mercearia da menina Amélia. Mas havia ainda muito que fazer: só de doces ainda faltavam as filhós, que seriam fritas a meio da tarde, as rabanadas, o arroz doce...
O João, seis anitos de gente, cirandava pela casa tentando não perder pitada de todo aquele movimento, que só se via naquela altura do ano. Enquanto a mãe e as irmãs davam voltas à massa para as filhós, o pequeno não arredava pé, como se toda aquela lida desse asas ao encantamento com que vivia a época.
- Oh João, vai brincar lá para fora!
É o vais! O João empolgava-se a respirar todos aqueles preparativos para "a noite mais longa do ano", como dizia o pai, e só quando era preciso reforçar o lume é que ele condescendia em ir ao quintal para trazer mais uns cavacos. Era preciso aquecer bem a casa para receber o Menino Jesus!
Durante a fritura das filhós, toda a casa se via envolvida em cantos. Enquanto lhes davam forma e as colocavam no azeite quente, as mulheres cantavam em louvor do Menino:
........Ó meu Menino Jesus
........Ó meu menino tão belo
........Só Vós pudestes nascer
........Na noite do caramelo.
À Consoada, após a oração dirigida pelo chefe da casa, as atenções centraram-se no bacalhau e nas couves que, a pouco e pouco, iam desaparecendo de duas grandes travessas. Aos dois filhos mais velhos, já homens feitos, foi-lhes permitido acompanhar o pai e o avô num copo de vinho, que a ocasião era de festa. A noite ia decorrendo, animada, como seria de esperar numa mesa com dez pessoas irmanadas pelos mesmos sentimentos. As filhós e as rabanadas iam temperando a conversa, que alternava aqui e ali com as canções que as mulheres tentavam impor e a que todos aderiam...
........Da vara nasceu a vara
........Da vara nasceu a flor
........Da flor nasceu Maria
........De Maria o Redentor.
Ainda a mesa da Consoada não estava apanhada e já o João, afoito, corria para a cozinha, na ânsia de colocar os sapatos para a prenda do Menino Jesus. Ainda esboçou um gesto para levar também as botas feitas no Zé Brás, o sapateiro da terra, para ver se o leque das prendas aumentava, mas os olhos da mãe disseram-lhe que não valia a pena. Pouco depois recebeu ordem para ir para a cama, enquanto os mais velhos, com outro estatuto, saíam para a missa do Galo, a que se seguiria uma ida ao madeiro, que combatia o ar gelado da noite no adro da igreja.
No dia de Natal, bem cedinho, ainda antes do galo cantar, o João foi o primeiro a levantar-se. Com o coração aos pulos, correu para a cozinha e galgou a distância em dois tempos. Pegou no embrulho que estava junto dos seus sapatos, atado com um grosseiro cordel, e desembrulhou-o logo ali. Então, deslumbrado, pegou na camisola e nas calças novas e levou-as, instintivamente, ao seu corpito de menino. Que bem lhe ficariam na missa de Natal!
A manhã custou a passar, pois nunca mais chegava a hora de vestir a roupa nova. Ansiava pelo momento de subir a igreja, de peito inchado, exibindo a roupa para os amigos. Quando, finalmente, chegou a autorização da mãe, ele e os irmãos partiram para a igreja, onde os aguardava o encantamento das enormes figuras do presépio que o padre Nicolau tinha mandado vir do Porto.
Enquanto faziam o caminho o João continha-se para não correr. Queria chegar à igreja o mais rapidamente possível para ver o presépio, mas com a roupa direitinha. Contudo, os cânticos que se ouviam ao longe ainda acirravam mais a vontade de chegar depressa. Os irmãos, que lhe notavam a ansiedade, sorriam uns para os outros. Apesar das partidas que ele lhes pregava, gostavam muito da vivacidade do irmão mais novo, e sabiam o que ele estava a sofrer para dominar a sua vontade. Às tantas, já com a igreja à vista, o pequeno não se conteve mais e começou a correr. Os irmãos ainda tentaram segurá-lo, mas quem o conseguiu foi uma pedra solta no meio do caminho, que o fez estatelar no meio do chão.
Teve que voltar para trás e, quando chegou a casa, ainda não parara de soluçar, tal a decepção que sentia ao ver a sua roupa nova toda enlameada.
Com muito jeitinho e uma paciência que só as mães têm, a Maria José lá o convenceu a vestir outra roupa. E o João, que sonhara com uma entrada triunfal na igreja, subiu a coxia de cabeça baixa, só estacando em frente do presépio. Então, à vista daquelas maravilhosas figuras, o miúdo começou a esquecer-se da roupa que vestia. Deitou os olhos para o Menino e, qual milagre de Natal, teve a certeza que Ele também olhava para si. E sorria-lhe.
Durante o almoço toda a gente estranhou o silêncio do João. Não que ele estivesse triste, longe disso, mas mostrava-se tão ausente do que tinha no prato que parecia longe dali, absorto em mil pensamentos. Mas o que passava na sua cabeça devia ser coisa boa, pois de vez em quando esboçava um sorriso. E só mais tarde, quando lhe puseram uma taça de arroz doce à frente e o viram desenhar um menino com a canela, é que perceberam o encantamento que ia na alma do pequeno.
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Reedição
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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

ESBOÇO DE ETERNIDADE

.Margarida Cepêda, As núpcias
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Chegava de mansinho quando, à tardinha, te sentavas no banco que ficava junto da grande tília, e as palavras do poema eram passaporte para o enlevo. Enquanto lias, envolvia-me no aroma das flores e insinuava-me, de leve, na subtileza do teu corpo. Sentias a carícia, a intensidade do desejo, e deixavas que o doce perfume invadisse todos os teus recantos.
Embalados no sentir um do outro, só parávamos quando nos era dada a visão da eternidade, ainda que momentânea.
Lá fora o cavalgar do tempo fazia-se longe, muito para lá do horizonte, enquanto dávamos abrigo à ternura...
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domingo, 5 de dezembro de 2010

OLHAR DA MONTANHA

.Fotografia de Zélia Vaz
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De longe nada se vê, tão pouco de perto. A montanha, germe de vida em contenção, é ciosa do seu equilíbrio, dos seus segredos.
O portal de entrada, dissimulado na vulgaridade das coisas, não é visível, sente-se. E, aos poucos que o transpõem, nada lhes é dito. São eles que, pela natureza do seu caminhar, entram na montanha com a naturalidade da nudez.
No seu desfrutar, sentir é condição primeira e, despojando-se das cicatrizes, desvendam cores e odores, mergulhando na essência do lugar.
Montanha, eterno feminino...
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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

DESCOBERTA

.Margarida Cepêda, Descoberta
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Mergulho repetidamente ao mais fundo de mim, pretensão fotográfica do turbilhão das águas. Tento captar-lhe o movimento, a densidade, mas em vão. Não há configuração, o padrão refaz-se a cada momento. E surge a constatação. Não sou onda, não sou mar, apenas ínfima gota à deriva.
Olho em volta e respiro o debater de outras gotas com o mesmo anseio. E então percebo. A realidade não é o resultado de um olhar, mas o somatório de muitos, unidos na mesma vontade. Temperado, de preferência, com esperança.
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domingo, 28 de novembro de 2010

SOLIDÃO

.Margarida Cepêda, Leva a luz e arrasta a sombra
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Ao J, um inspirado que se perdeu em si próprio
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Incomodava-o o pensamento condicionado, próprio dos grandes ajuntamentos, e, lentamente, foi procurando o refúgio das veredas. Mas até estas, às tantas, lhe pareciam movimentadas auto-estradas.
Começou a traçar mapas do seu percurso, rumos inventados que apenas existiam dentro de si. No princípio gozou a liberdade, o prazer de percorrer uma estrada incólume, original, em que apenas prestava contas a si próprio. Navegava com a lua, viajava com o vento que embalava os pinhais, fez-se regato a observar as nascentes...
Um dia quis partilhar o seu mundo. Olhou em volta, mas tinha sido eficaz na escolha do caminho: não havia ninguém por perto. Então, a pouco e pouco, uma sensação de frio começou a apoderar-se da sua alma, tolhendo-lhe qualquer espécie de harmonia com o cenário inventado. Ainda esbracejou, mas tinha viajado para muito, muito longe, e apenas encontrou o aperto do vazio.
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Reedição
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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

BRILHO

.Margarida Cepêda, Diálogo
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As palavras ganham vida e chegam, até ti, envoltas em manto de ternura, roçando suavemente a pele e amainando a inquietação do vento forte. Preciosas são essas palavras, que insinuam o cenário do apaziguamento. Pois eu digo-te que as cuides, que as mimes. Vais ver que, quando partires, elas já farão parte de ti. Não, o mundo não te fará reverência. Mas, se reparares, irá admirar a convicção no brilho do teu olhar.
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Ilustração de Luiza Maciel Nogueira, do blogue Versos de Luz
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domingo, 21 de novembro de 2010

ALVOR

.Margarida Cepêda, O baptismo da rosa
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Não sei se estou para cá ou para lá da porta, jogo de espelhos com ausência de respostas.
Ligo e desligo o interruptor que dá vazão às águas, mas não há rio, não há foz. Apenas uma rosa caída no chão, esboço do teu relevo.
Imbuído do teu perfume, sinto a cotovia, na árvore mais alta, a cantar o despontar da madrugada...
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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O FIO

.Pintura de Margarida Cepêda
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É tentador o recosto no enigma das tuas palavras, mas o coração não se basta. Quer descobrir o fio que escondeste à entrada do labirinto, beber do teu riso, sentir os gritos e os medos que o levarão até ti.
Quando se instalar o aroma das violetas, será então a hora de soltar as esperas, de abraçar o desespero do teu corpo...
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domingo, 14 de novembro de 2010

PRIMAVERA

.Margarida Cepêda, O Jogo da Sedução
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Este poema surgiu em Dezembro passado. Na altura alguém me disse que era um poema para todas as estações, e desde então faço questão de levar isso à letra, publicando-o sazonalmente, Completa-se agora o ciclo, talvez o sinal para outras mudanças...
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Éramos jovens potros
Imunes ao receio
E a primavera de Vivaldi
Em harmonia vibrante
Era o primoroso retrato
Do nosso entusiasmo
No galopar sem freio
A seara ondulava, sensual
E viajávamos no sonho
Embalados no rumor da aragem
Que escrevia
Nas folhas dos freixos
Sinfonias à nossa passagem
A paixão das cigarras
Morava dentro de nós
E a linha do horizonte
Meta por conquistar
Era a tela
Dos planos traçados
Dum mundo por desbravar
Adormecia nos teus braços
Em nocturno de Chopin
Terna e doce vassalagem
E só o romper da aurora
Rebate do mundo lá fora
Quebrava o feitiço da viagem.

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terça-feira, 9 de novembro de 2010

URDINDO O DESTINO

.Margarida Cepêda, Urdindo Universos
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Os olhos, habituados à luz, suavizam a tormenta, procurando o fio condutor da construção do labirinto. E, a pouco e pouco, vão bebendo a escuridão.
Quando se insinua o repouso, o horizonte, feito recompensa, parece mesmo ali, o longe tornado perto. É quando, à tardinha, se ouve o murmúrio do regato, e as aves entoam o seu mais belo canto.
Mas de longe chega o rumor da zanga das águas, rumo perdido em torrente impetuosa. Qualquer coisa que se foi, outro tanto que se teima em procurar...
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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

GRITO

.Margarida Cepêda, O Rei e a Lua
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Tento insinuar-me nos teus percursos, mas a brisa apenas me fala dos aromas que deixaste.
É grande o meu desassossego, confrontado com a impossibilidade do canto da ave. A mordaça cingiu-a, cruel, e o silêncio insiste em negar-me os segredos.
É então que se solta o grito, lancinante, mas a perpetuação do eco apenas acentua a distância. Só as cotovias, condoídas, me sopram ao ouvido as tuas lágrimas. E, de coração na mão, teimo em percorrer o caminho que me levará à frescura dos teus passos.
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terça-feira, 2 de novembro de 2010

POETISA

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.Imagem tirada da net
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Forjara os sonhos em olhares, sensações e desejos, temperados com muito afecto.
Tinha a convicção dos eleitos, e nada parecia esmorecer tamanha determinação. Às vezes choramingava, é verdade, mas depressa fazia das fraquezas forças. O que mais a tocava era a incompreensão dos que a tentavam magoar, talvez porque ousasse percorrer as veredas da verdade, a sua verdade, que respirasse coragem onde os outros baixavam os olhos. Mas prosseguia o seu caminho, sorrindo, semeando poesia em réstias de luz.
Sentia que quanto mais avançava mais se afastava dos outros, mas tinha a plena convicção, vinda do mais fundo de si mesma, de que era aquele o caminho. Gostava deles, mas tinha que se afastar. Talvez um dia compreendessem. Ou talvez não. Aquele era o seu rumo, a construção do seu sonho, e estava disposta a tudo para o continuar a trilhar.
As cumplicidades, ainda que poucas, foram reforçando o alento. O calor da mão aberta, um olhar de mil palavras, um mergulho em águas claras...
Maria dos olhos claros, poesia em movimento, o respirar como destino.
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Reedição
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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

MADRUGADA

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Margarida Cepêda, Leves São os Pássaros
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Sinto-te à distância, mas perto de mim.
O teu respirar é fonte abundante, ainda desconhecedor do manancial da nascente, mas que, enquanto trauteia, imitando os pássaros, cultiva a secreta ambição do conhecimento dos segredos.
Sinto-te o nascer da inquietação, tecida no mais fundo de ti. E isso perturba-me. Talvez porque deseje descobrir as aflições e as tempestades que se escondem sob o teu manto, ainda sem os suaves contornos do leito.
Mas a água jorra, fecunda. E, por ora, é quanto basta para dar cor ao meu anseio.
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terça-feira, 26 de outubro de 2010

ARROUBO OUTONAL

.Imagem tirada daqui
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Quando subias
Pela manhã
O caminho dos castanheiros
O vento
Atrevido
Insinuava no teu cabelo
A vontade profana
De avivar
O cheiro a maçãs maduras
Que inundava
A casa dos teus sentidos.
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sábado, 23 de outubro de 2010

DESTINOS PARALELOS

.Hélio Cunha, A Caixa da Felicidade
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É por demais comum a pergunta: e se...?
Mantendo a estrutura do último texto aqui publicado, com a etiqueta "bloco de notas" (textos para serem desenvolvidos, mais tarde, com outra profundidade) nada mais natural que tentar (re)escrever o destino, dar-lhe novos contornos.
Quanto a mim, criatura de poucas certezas, faz todo o sentido.
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Nasceram em geografias diferentes. Mas ambos caminhavam desde que tinham consciência de si. A princípio muito atabalhoadamente, fase em que o dogma tivera muito peso, mas a pouco e pouco foram conseguindo resgatar as cortinas do pensamento. Curiosamente, quando perceberam que nunca deveriam ir pelo caminho mais fácil, começaram a encontrar cada vez menos pessoas. Mas prosseguiam, munidos da sua convicção.
O processo nunca fora fácil. Tinham ultrapassado abismos, atravessado desertos... Por diversas vezes tiveram que parar, pausas concedidas a si próprios para retemperar forças. Quando começavam a sentir o apelo de ficar, sinal de que estavam a baixar a guarda, sabiam que era chegada a hora. E partiam, cada vez mais por caminhos pouco percorridos. De quando em vez ainda olhavam para trás, sintoma de alguma dúvida, mas era coisa de momentos. Sabiam que tinham de continuar.
No início da subida da Grande Montanha, quando se julgavam sós, sentiram a aura um do outro, vindas de caminhos paralelos. Traziam os mesmos sinais do percurso, marcas profundas gravadas em constante esgravatar. Não foi preciso muito para se entenderem. Os olhos de ambos já tinham visto muito, qual filtro alquimista forjado no essencial.
Subiram a montanha de mãos dadas. O que encontrassem no cume já pouco importava. Tinham encontrado a sua luz.
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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

DEVANEIO

.Margarida Cepêda, Pedestal de Solidão e Luz
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Caminhava desde que tinha consciência de si. A princípio muito atabalhoadamente, fase em que o dogma tivera muito peso, mas a pouco e pouco fora conseguindo rasgar as cortinas do pensamento. Quando percebeu que nunca deveria ir pelo caminho mais fácil, começou a encontrar cada vez menos pessoas. Mas prosseguia, munido da sua convicção.
O processo nunca fora fácil. Tinha ultrapassado abismos, atravessado desertos... Por diversas vezes tivera que parar, pausas que concedera a si próprio para retempero das forças. Quando começava a sentir o apelo de ficar, sinal de que estava a baixar a guarda, sabia que era chegada a hora. E partia, cada vez mais por caminhos pouco percorridos. Sem nunca olhar para trás.
Ao iniciar a subida da Grande Montanha já não via ninguém por perto. Mas não ia sozinho. Uma estranha e doce paz interior começava a insinuar-se, tornando-se cada vez mais presente a cada passada.
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Final 1 - Quando, finalmente, chegou ao topo, sedento da bênção final, sentiu um enorme arrepio. A solidão, nua e crua, invadiu-o num longo e frio abraço de morte.
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Final 2 - Quando, finalmente, chegou ao topo, sentiu uma enorme torrente de luz invadir a sua alma. Tinha atingido o ponto de passagem para um novo patamar da existência.
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Escrevinhei este texto, como é habitual no bloco de notas, em parcos cinco minutos. No entanto, na altura de rematar a questão, surgiram-me dois possíveis finais. Tive que optar por um mas, para manter a coerência da forma como o texto surgiu, resolvi também colocar à consideração dos leitores a segunda opção. Que, de resto, é a minha preferida.
Aos leitores que entretanto comentaram apresento as minhas desculpas.
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sábado, 16 de outubro de 2010

VOO

.Vera Braga, Voo Solo
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Olhava para ti
Enquanto deslizavas
Em pleno deleite
Na graciosidade do voo
Olhando o ramo mais alto
Em sorriso primaveril
O respirar era ágil
Na perfeição do pino
E o alto dos pinheiros
Limite da iniciação
Não escondia a ambição
Dum voar mais amplo
Que sonhavas no distante
Cenário do teu destino
A segurança do ninho
Tecido com ternura
Já não te bastava
E lentamente sufocava
O enorme anseio
De tudo abraçar
Quando sentia
À tardinha
O teu olhar no longe
E via o apelo
Desenfreado
Dos trilhos impossíveis
Sabia que nada
Mesmo nada
Te faria perceber
Que o longo braço da vida
Não tem distância
Mas equilíbrio
Em porfiada harmonia
A partida era iminente
A favor ou contra a corrente
Alheia à palavra calma
Mas só tu poderias descobrir
Nas teias do porvir
O verdadeiro lugar
Da dimensão da tua alma.
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Março de 2010
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terça-feira, 12 de outubro de 2010

O OUTRO LADO DO EU

.Victor Lages, O outro lado do eu
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Enquanto dormitava, sentia o pensamento deslizar para lá de si, esgueirando-se das prateleiras onde estava arrumada uma infinidade de ideias por eclodir.
Este, contudo, parecia ter vontade própria. Galgava, com o maior desplante, as fronteiras visíveis, e criava novos horizontes com a maior das naturalidades.
Não, aquele pensamento não era seu. Havia algo a movê-lo que o ultrapassava, que rompia as fronteiras do medo. E ele via-o ir, impotente, desenhando novas paisagens, novos sentires...
Mas, se não era seu, porque lhe doía tanto a sua impertinência? Porque o perturbava o seu bater de asas?
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sábado, 9 de outubro de 2010

A PARTIDA

.Hélio Cunha, Nascimento de um planeta
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Para a Hanah, do blog ......
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A nave tinha acabado de partir. O comandante, cumprindo o acordado, orbitou o decrépito planeta fumegante, onde as chuvas ácidas e as elevadas temperaturas se tinham tornado um hábito. Já pouco havia a fazer por aquela carcaça malcheirosa, com população a mais e os recursos praticamente esgotados. O verde, o saudoso verde, há muito tinha desaparecido, e apenas podia ser observado nos registos de outrora.
Era ele pouco mais que menino de colo e já se lembrava de ouvir o pai, ao serão, a falar da necessidade de se encontrar uma solução para a Terra. Nessa altura os problemas já eram tantos, que a única saída para o homem era recomeçar tudo num qualquer outro ponto do universo. A vida, dizia ele, é o resultado dum número sem fim de recomeços, e este seria apenas mais um.
Fora devido a essa visão que o pai tudo fizera para que ele se especializasse em biologia, mineralogia espacial, física, química... A ida para o espaço era a grande esperança de sobrevivência de toda a humanidade e, quando o Conselho aprovou o plano de saída, tinha sido dos primeiros a ser escolhido. E agora ali ia ele em direcção a Utopia, um planeta com as mesmas características da Terra, descoberto noutra galáxia, e que tinha sido profundamente estudado. Fazia parte de uma equipa que ultrapassara duras provas para testar a sua capacidade, e a sua tarefa era dotar o planeta das condições mínimas para receber os primeiros colonos da Terra.
A órbita já tinha sido completada, e a nave rumava agora para o futuro. Para trás ficava um planeta desesperado, cheio de problemas de toda a espécie, mas esperançado numa nova oportunidade. Que seria apenas para alguns.
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Parcas palavras para um simples alerta. Ainda estamos a tempo.
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Reedição

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terça-feira, 5 de outubro de 2010

AURA

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Pintava a tela
Em suave colorido
Delicada clave
Da ária interior
Reveladora
Dum tempo maior
Que transportava
Em sorriso sereno
Etéreo violeta
Alma de poeta
Em jardim ameno.
Ao mundo espalhava
Em voz informal
A doce alternativa
E alimentava a corrente
Necessária e urgente
De insuflar na vida
A ideia positiva.
Descia a rua
Em delicada postura
Com música de fundo
E a brisa suave
Era cúmplice da ave
Na vontade madura
De abraçar o mundo.
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Reedição
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sábado, 2 de outubro de 2010

VISLUMBRE UTÓPICO

.Tony Stanovich, Utopia
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Os tempos tinham sido conturbados, mas encontrara-se um rumo.
A memória do grande mergulho colectivo ficara gravada, a letras de fogo, na nascente mais profunda, passando a fazer parte do espólio de cada um. A tela da madrugada fora pintada com as emulações do novo sentir, purificado na descoberta da composição do caldo amniótico inicial. Até os destroços da antiga ordem pareciam ter outra tonalidade.
Tinha-se instalado a era da alma.
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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

QUANDO CHEGASTE

.Luís Videira, Zorbas na Torre de Hamburgo
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Quando chegaste
Ao entardecer
Já as gaivotas tinham partido
Ainda falaste
Baixinho
Da frescura das madrugadas
Mas parte de mim
Em voo planante
Tinha ido com as aves
E a outra
Cúmplice
Iniciara o desatar dos nós.
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Quando chegaste
Ao fim da tarde
Só restava a minha ausência.
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domingo, 26 de setembro de 2010

QUANDO AS COISAS TINHAM NOME...

.Imagem tirada da Net
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Saltitava nas pedras
Pé ante pé
Para lá do ribeiro
E o canto do melro
Apelo irresistível
Conduzia os anseios
Do pequeno potro
Na descoberta genuína
Da vida em harmonia
Temperada em odores
De giesta e rosmaninho.
Não havia temores
Nas esguias veredas
Que levavam ao pinhal
E o mundo lá longe
Era aqui tão perto
Num fervilhar de vida
Em vão escondida
Em pleno céu aberto.
Sentia a voz da mãe
Inquieta com a cria
Mas os dias eram seguros
Na pacatez do lugar
Num mundo natural
Encostado às montanhas
Em que o nome das coisas
Forjado pelos deuses
Em feitiço profundo
Ainda era o mesmo
Das palavras ditas
No primórdio dos dias
Da criação do mundo.
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Reedição
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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

OS AMANTES ETERNOS

.Hélio Cunha, Os Amantes Eternos
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Descobriram-se na solidão de cada um. Aproximou-os a distância que sentiam em relação aos outros, a impossibilidade de serem um entre tantos. Uniu-os a simplicidade de serem o que eram.
À medida que caminhavam, reforçando laços e utopias, impressionava-os a grandeza das coisas. Quanto mais viam mais se sentiam partícula ínfima. Mas tinham-se um ao outro, frágeis actores dum universo em expansão. Apesar da grandeza que os rodeava, sentiam o calor das mãos. E, na imensidão da beleza inexplicável, era quanto lhes bastava.
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sábado, 18 de setembro de 2010

TRAILER DE UM FILME ANUNCIADO

.Victor Lages, Anjo Adormecido
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Cansado de tanto labor, o anjo da terra adormeceu, soltando as amarras onde fora tecido o ténue fio do equilíbrio.
E dorme tão profundamente que, quando despertar, não irá reconhecer o mundo. Apesar de uma ou outra ilha de esperança, aguarda-o um enorme pesadelo.
Em exibição, muito em breve, no planeta Terra.
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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O PESCADOR DE PÉROLAS

.Hélio Cunha, O Pescador de Pérolas
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Quando descobriu a sua primeira pérola, a sensação foi de júbilo. Fruiu-a por uns tempos, e partiu em busca de mais.
À medida que as ia descobrindo, sentiu a necessidade de entender a sua formação. E começou a olhar as pérolas com outros olhos.
Diziam-lhe que se deveria contentar com o facto de as ir descobrindo, de agradecer a dádiva, de viver o presente. Mas, apesar de agradecer, não era essa a sua forma de o viver. Queria entender, perceber por inteiro. Queria ter acesso à melhor flor da criação: conhecer, ainda que num vislumbre, os fios com que fora tecida. Então sim, faria sentido dar corpo à cabana num qualquer lago, numa qualquer floresta imaginária, onde as estrelas o tratariam por tu.
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Normalmente, quando confecciono este tipo de textos, a escrita surge de um só fôlego. São cinco minutos em frente do computador em que, após abrir a porta, as palavras saem conforme a circunstância. São textos, pois, em estado bruto, sem qualquer preocupação de coerência. Daí colocar-lhes a etiqueta "bloco de notas".
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domingo, 12 de setembro de 2010

ARGUMENTO PARA UM INTERVALO DIFERENTE

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Na escola vive-se a azáfama do intervalo. Num cantinho do recinto do recreio, resguardado de outras brincadeiras, o Pedro escava na terra. De repente, após um gesto mais convicto, do buraco sai um pequeno raio de luz. Curioso, o Pedro escava com mais força. Mais um, dois, três golpes, e o brilho alastra a todo o recinto.
As brincadeiras param. Lentamente, num misto de curiosidade e desconfiança, os pequenos figurantes dirigem-se para o local da fonte luminosa. Então, qual filme animado, sete sorridentes formigas saltam do buraco e, a um sinal da líder, a do meio, iniciam uma coreografia holliwoodesca, entoando em simultâneo:
..........É tempo de parar!
..........É tempo de folgar!
..........Vamos lá meninos
..........Não parem de saltar!
Depois, após um solo de sapateado da chefe, entoam em uníssono, de antenas em riste:
..........E quem não salta, não é da malta!
..........E quem não salta, não é da malta!
E toda a gente saltou, transformando o recreio numa festa ainda maior que o habitual.
A Teresa, a auxiliar, esfrega os olhos para acreditar no que está a ver. Estaria a sonhar?
Quando volta a olhar, os pequenos continuam a brincar como sempre fizeram: uns saltam à corda, outros jogam às apanhadas, outros à bola... Só o Pedro, no seu cantinho, continua a escavar o buraco, à procura não se sabe bem do quê.
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Reedição
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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

EM BUSCA DO FUTURO

.Hélio Cunha, Viagem
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Eram nómadas por convicção.
Traziam consigo, coladas no dorso, conchas de outras eras, medalhas naturais adquiridas no seu viajar.
Vislumbraram há muito o padrão das estrelas, mas continuavam sem encontrar a correspondência nos seus passos. O claro-escuro continuava a intrigá-los, por mais profundo que fosse o seu mergulho.
Tentaram de todas as formas geométricas, mas o brilho total, sem eclipse, teimava em não se revelar.
Na sua tentativa de resgatar o futuro, ser nómada estava a tornar-se fado. E condição.
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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

REBUSCAR

.Norberto Conti, Um Mergulho no País das Maravilhas
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Se há coisas que não podemos escolher, uma delas é a competência genética com que chegamos ao mundo.
Contudo, esse aspecto é apenas o início da grande viagem, a matéria primeira da nossa construção. A família pode envolver-nos, ou não, numa capa protectora, zelando para que os nossos primeiros olhares sobre a vida não sejam sujeitos a grandes intempéries, e a forma como (não) sorrimos é uma evidência disso. Mas há algo para lá do óbvio. A matéria de que somos feitos, as energias que por aí cirandam, as influências astrais.., isso dificilmente é perceptível ao nosso rudimentar entendimento. Tentamos perceber tacteando, muitas vezes pisando o que poderá, ou não, ser importante.
Por norma, só mais tarde nos apercebemos que passámos ao lado das coisas, pois, em matéria de conhecimento, a cegueira ainda é a nossa condição. E, como qualquer pessoa que (se) procura, sujeitos à intermitência dos caminhos.
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Às vezes
Quando o cinzento se perpetua
Apetece
Procurar a luz
A claridade
Dos dias prometidos
No calcorrear da velha calçada
Um letreiro velho
Mas sempre novo
Sinaliza
Nas subtilezas do tempo
O graal de todas as demandas
Insinua-se
Um vislumbre de promessa
A centelha do golpe de asa
Mas os olhos carecem de rumo
Porque toldados
Pela visão de mil profetas
Às vezes
Com a luz na mão
Apenas olhamos
Para o mistério da sombra.
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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

GRANDE IRMÃO

.Imagem tirada da Net
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Olha para o mundo
Em filtro de números
Mapas
Grelhas
Planos
Instrumentos infalíveis
Na projecção de resultados
Fabricados
Em função dos objectivos
Delineados
Em gabinetes inspirados
Não gosta da cor
Mas é sonhador
Dum pesadelo geral
Imagina o mundo
Em plano de fundo
Uma enorme aldeia
Simulacro de colmeia
De robôs operários
Sem qualquer paragem
Na cadeia de montagem
Se saísse à rua
Como simples mortal
Talvez a verdade
Nua e crua
Tomasse de assalto
O que restasse
Do seu coração
E fizesse tremer
(Ainda que de leve)
O alicerce
Da sua convicção
Mas está protegido
Na torre envidraçada
Encoberto
Em cortina fumada
E a sua alma
Há muito sem perdão
Ficou abandonada
Perdida e rejeitada
No cesto de papéis
Dum qualquer saguão.
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O poema já foi reformulado desde que foi publicado. E pode não ficar por aqui.
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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

COM A MÃE NO BOLSO

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Todos os anos se repete o ritual. À escola chega uma vintena de novos alunos, passaritos de asas curtas em busca da carta de alforria no voo. A professora, ao recebê-los, tem como preocupação que façam daquele o seu espaço, que criem laços afectivos e cumplicidades, ao mesmo tempo que lhes vai incutindo regras e formas de estar, fundamento básico para lhes começar a introduzir, paulatinamente, os rudimentos da interpretação dos diversos códigos que lhes proporcionem a melhor ligação possível com o mundo que os espera lá fora: na língua materna, na matemática, no conhecimento do meio envolvente, ao mesmo tempo que lhes vai estimulando a solidariedade, a civilidade, a amizade e outras ade.
Os olhos da maioria não escondem o entusiasmo. Parecem potrinhos sem freio, ávidos de galopes intermináveis por territórios bem delineados no sonho, apenas apaziguados por sono retemperador.
Mas há sempre um ou dois que não trazem as defesas necessárias para conviver harmoniosamente num grupo com tanta energia à solta, ávido de se manifestar e de deixar marca de si. Sentem demasiado a mudança de território, e o desconforto fá-los recordar, constantemente, a segurança das mãos da mãe, o seu cheiro, a sua protecção...
O Tiago é um desses casos. A vivacidade dos colegas não o tranquiliza, e cada gesto mais exuberante é uma ameaça para o precário equilíbrio do seu pequeno mundo. A professora, percebendo-lhe a insegurança, tenta apaziguar-lhe as angústias e, após ouvir-lhe a invocação da progenitora pela enésima vez, sugere-lhe que traga para a sala a fotografia da mãe.
No dia seguinte, com um esboço de sorriso nos lábios, o Tiago apareceu na escola com uma moldura com a fotografia da mãe, e mostrou-a à professora. Esta, com a cumplicidade estampada no olhar, elogiou-lhe a beleza, e encorajou-o a colocá-la em cima da mesa de trabalho.
Embora recorrendo a frequentes olhares para a fotografia, o Tiago começou a encarar a escola de forma mais tranquila. As tarefas deixaram de ser penosas, as caras dos colegas começaram a ter contorno de amigos, ousou aventurar-se nas movimentações do recreio...
O pior era quando chegava a hora do almoço. O miúdo, que até aí continuava a trepar degraus na sua integração, quando chegava o meio-dia não conseguia evitar o aparecimento dos seus fantasmas. Apavorava-o o ambiente do refeitório, sem a presença da professora, não conseguindo lidar com a exuberância dos colegas mais velhos, com outro traquejo na arte de lidar com os outros.
Quando a angústia da hora do almoço ameaçava tornar-se um hábito, foi o próprio Tiago a encontrar a solução. Um dia destes, ao chegar a temida hora, aproximou-se da professora e pediu-lhe, baixinho:
- Professora, posso levar a minha mãe comigo?
Perante o acenar positivo, o pequenote pegou na moldura, meteu-a no bolso com todo o cuidado e lá partiu, mais confiante, em direcção ao refeitório.
Nesse dia, na reconfortante companhia da mãe, o Tiago comeu a sopa toda.
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Reedição
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domingo, 29 de agosto de 2010

MULHER CORAGEM

.Patrícia Moreira, Vitória da Conquista

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A doença surgiu, silenciosa. Para alguém que luta.
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Trazias o entusiasmo
Dos sonhos por concretizar
Alimentado
Em berço protegido
Mostravas o teu querer
Indomável
Na firmeza do olhar
Com que fitavas
Desafiadora
A areia da engrenagem
Cuidavas das crias
Espaço crucial
Com o saber dos argutos
Condimentado
Em taças de ternura
Lidavas com os amigos
Espaço de partilha
Como porto de abrigo
Apaziguador
Imune à amargura
Olhavas para a vida
Espaço realizador
Como terreno a conquistar
Com ardor
Em luta sempre dura
Enfrentas o infortúnio
Espaço regenerador
De descoberta
Duma tela descomunal
Onde os amigos
De mão dada
Semeiam os acordes
Indestrutíveis
Duma vitória anunciada.
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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O BILHETE

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Júlio olhava pela janela. Em frente, na pastelaria, algumas pessoas tomavam a bica ao balcão a olhar para o relógio. Na esplanada, indiferente à pressa geral, um casalinho gozava os raios de sol de um Verão tardio, enquanto deitava uns grãos de trigo a meia dúzia de pombos. Mais à direita, no jardim, viam-se alguns velhos, de sorriso apagado, a olhar para nenhures, como se as pessoas que por ali passavam, qual enxame de abelhas apressadas, nada lhes dissesse. Andavam quase todos na casa dos setenta e tais, oitenta, e já pouco mais faziam que olhar para o escoar do tempo.
Às vezes Júlio abeirava-se deles e, com a sua presença, o pulsar do grupo alterava-se. Contava uma história engraçada de outros tempos, dizia duas ou três larachas, e o efeito era garantido: os sorrisos voltavam, por momentos, a introduzir-se naquela solidão mortiça.
Joana, a filha, fora visitá-lo um dia destes à hora do almoço, cinco minutos roubados ao seu correrio diário, antes de ir preparar a comida que ela e o marido iriam engolir num ápice. Perguntou-lhe como é que se sentia, se tinha tomado os medicamentos, se precisava de alguma coisa. Depois, a propósito de nada, começou a falar do Sousa, amigo de sempre do pai, que estava há uns tempos no lar.
- Sabe com quem estive? Com a Dora, a filha do seu amigo Sousa. Está a viver no lar, e parece que o tratam lá muito bem.
Nem ele sabia outra coisa! Há dias, em conversa de banco de jardim, o João Pires falara-lhe do destino do Sousa. A notícia tocara-o e, sem dizer nada a ninguém, fora visitar o seu velho amigo ao lar. Quando o viu, arrependeu-se logo de lá ter ido. Estava sentado na varanda, sozinho, completamente alheado de tudo o que o rodeava. Ainda lhe puxou pelo sorriso com uma ou outra graçola, mas o Sousa, que noutros tempos distribuíra entusiasmo a rodos, mostrava-se indiferente a tudo. Parecia que apenas aguardava que chegasse a sua hora.
Joana estava, nitidamente, pouco à vontade a aflorar o assunto, e tentou dissimulá-lo começando a lavar a pouca loiça do pequeno-almoço. Nem reparou que o pai já a tinha lavado, deixando-a apenas a escorrer no lava-loiças. Então disse-lhe que estava preocupada com ele, que não gostava de o ver sozinho. E se lhe acontecesse alguma coisa, quem o socorria? Gostaria muito de o levar para o andar onde vivia, mas as três assoalhadas já eram acanhadas para ela, o marido e os filhos. Na semana passada fora tirar umas informações da Casa de Repouso do Pinheiro, e gostara do que tinha apurado. Era um lugar onde tratavam as pessoas com toda a dignidade, o sítio ideal para ele.
Júlio não disse nada, apenas balbuciou um "está bem" quando a filha, à saída, o lembrou do almoço de domingo em casa dela. A conversa de Joana, no fundo, não o surpreendia, pois sabia que ela não tinha condições para o receber. Ela e o marido matavam-se a trabalhar, com um horário cada vez mais exigente, e o que recebiam mal dava para pagarem a prestação da casa. Houve uma altura em que pensou que talvez lhe arranjassem um cantito na sala para dormir, mas era ele a iludir-se com a possibilidade de acompanhar o crescimento dos netos, de os sentar nos joelhos enquanto os maravilhava com as aventuras do João Pequeno, história que o seu avô lhe contara vezes sem conta na sua meninice. Mas os tempos tinham mudado. Ao que sabia, os pequenos passavam o dia fechados no infantário, no meio de dezenas de outros reclusos, e só lhes concediam uma precária quando os pais os iam buscar no fim do trabalho. Mas pouco aproveitavam do seu quinhão de liberdade. Quando chegavam a casa, os pais colocavam-nos em frente da televisão enquanto faziam o jantar. Depois comiam e, passado pouco tempo, toca a deitar, que amanhã é preciso levantar cedo. E no dia seguinte, num ritual sempre igual, lá iam todos para o mesmo ramerrame. Tinha pena deles, mas que poderia fazer? Raio de tempos, estes!
Depois da filha sair Júlio ficou mergulhado num turbilhão de pensamentos inconsequentes. As suas palavras, embora não o apanhassem desprevenido, tocaram-no como nunca pensara. Começou a dar voltas à casa, tentando ordenar ideias, mas a sensação de aperto não saía do seu peito.
Foi então que tomou uma decisão. Ainda pegou numas roupas para colocar na mala que guardava no roupeiro, mas abandonou a ideia. Dirigiu-se para a cómoda e, com todo o cuidado, retirou um estojo do fundo de uma das gavetas. Abriu-o, delicadamente, e olhou para o colar que em tempos tinha comprado para Maria, a sua mulher, pequeno luxo a que se permitira para presentear a companheira de muitas vicissitudes e alegrias. Mas ela morrera, em penoso sofrimento, uns dias antes do aniversário, vítima de um cancro de mama tardiamente diagnosticado, e o colar para ali ficara guardado como uma relíquia.
Tomou banho, perfumou-se e vestiu o seu melhor fato. Depois, delicadamente, pegou no estojo, guardou-o no bolso interior do casaco e saiu de casa.
Desceu a avenida muito direito e compenetrado, como se estivesse a escolher os movimentos certos para não engelhar o fato. Mas, ao chegar junto da estação ferroviária, algo o fez vacilar. Parou, por instantes, e ensaiou um olhar para trás. Mas foi coisa de poucos segundos. Recompôs-se rapidamente e, de forma resoluta, abeirou-se da bilheteira:
- Um bilhete para longe, para muito longe!
Quando entrou na carruagem tirou o casaco e sentou-se. Enquanto o ajeitava, cuidadosamente, sobre as pernas, levou a mão mais uma vez ao estojo, como se para se certificar que continuava no mesmo lugar. Maria aguardava-o, e não queria fazê-la esperar mais.
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reedição
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segunda-feira, 23 de agosto de 2010

EFÉMERO

.Imagem encontrada na Net (desconheço o autor)
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A seara ondulava
Sensual
E as papoilas
Efémeras
Adornavam o cenário
Que embalava
O voar das borboletas
Assim eras tu
Em Maio
Na frescura dos caminhos
Radiante
Com o mundo a teus pés
Gostavas do teu brilho
E embriagavas-te
Na imagem do espelho
Que enfeitavas
Com as cores
Duma eterna primavera
Esqueceste os aromas da terra
E não viste que os deuses
Despreocupados
Em olímpico tédio
Jogavam o teu destino
Em jogo de dados
Dedilhado
Em acordes chorados
O espelho fragmentou-se
E não percebeste
A sensação de frio
Nos caminhos que te levaram
À solidão
Dum palco vazio.
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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A MORTE ANUNCIADA

.Fotografia de João Sargo
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Sentado em frente ao lume, Felismino ouvia o silêncio. Do curral vinha o eco quase imperceptível de meia dúzia de cabras que, para além da companhia, proporcionavam ao velho o leite necessário para fazer um ou outro queijo.
Às vezes sentia a falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma tigela e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois por ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador de tempos a tempos.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrarem não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Acabou de comer e foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, e já tinha vivido o suficiente para aceitar o inevitável. Queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam respeitando a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho dalgumas estrelas. Apagava o cigarro quando os cães, sentindo algo no ar, começaram a emitir um uivar desassossegado. Tinha chegado a hora de, na rua deserta, as sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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Reedição
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terça-feira, 17 de agosto de 2010

(DES)OLHAR

.Salvador Dali, Reloj Blando Herido
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Olhavas para ti
E vias
Em pânico
O tempo a escoar
Qual ampulheta
Meteórica
Sem vontade de parar
E não sabias
Desesperada
Que tecla tocar
Para refrear
A angústia premente
Que minava
Continuamente
A verdade instalada
Se ponderasses
Para além do ego
Talvez notasses
Sem desatino
O fio de água
Cristalino
Que corria
Galgando a frágua
Para abraçar
Por inteiro
A razão do seu destino
Então talvez pudesses serenar
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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

DANÇA

.Daniel Oliveira, Dança em Movimento
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Estavas tão concentrada
No papel de Margot
Que não vias
No canto da sala
Os olhos suspensos
No teu respirar
Eram mais uns
Na plateia domada
Enquanto dançavas
Como ninguém
E as pétalas das rosas
Rendidas
Vertiam perfume
Ao teu rodopiar
A carruagem partiu
Na meia-noite temida
Deixando no ar
Da sala hipnotizada
O aroma envolvente
A promessa de vida
Da cinderela alada
Desci a avenida
Nureyev a dançar
Enquanto desenhava
Com a pétala que restava
A musa encantada
Saída do sonho
Do teu esvoaçar.
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