sábado, 27 de março de 2010

A FLOR MURCHA

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O pai partira cedo. E, desde que se recorda de ser gente, habituara-se a ver na mãe um rochedo imenso, imune às intempéries. Aquela caixa-forte, sem aparente palavra passe, levara de vencida todos os escolhos da vida que se lhe foram deparando, construindo uma reputação de determinação e solidez.
Rita foi crescendo à sombra daquela imponência, demasiado assustada para perceber ou questionar. E a mãe, de tão ocupada que estava na sua luta, esquecera-se da matéria frágil de que é constituída uma flor.
Os anos passaram e, à medida que a lenda do rochedo se cimentava, também a fragilidade de Rita se acentuava. Quase irreversivelmente.
Um dia o tempo, inexorável, bateu à porta do rochedo. Este, vencedor de mil batalhas, sabia que o novo obstáculo era intransponível. E começou a fraquejar. Rita, que de tão frágil nunca chegara a entender a grandeza da mãe, escolheu o momento impróprio para amuar, atribuindo-lhe a sua fragilidade. E cultivou a distância.
O rochedo ficou à deriva. E só quando este se desfez em pó é que Rita percebeu que tinha perdido a oportunidade de se tornar uma flor viçosa. E que o caminho para a plenitude seria, a partir daí, muito mais longínquo.
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terça-feira, 23 de março de 2010

O NOME DAS COISAS

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Saltitava nas pedras
Pé ante pé
Para lá do ribeiro
E o canto do melro
Apelo irresistível
Conduzia os anseios
Do pequeno potro
Na descoberta genuína
Da vida em harmonia
Temperada em odores
De giesta e rosmaninho.
Não havia temores
Nas esguias veredas
Que levavam ao pinhal
E o mundo lá longe
Era aqui tão perto
Num fervilhar de vida
Em vão escondida
Em pleno céu aberto.
Sentia a voz da mãe
Inquieta com a cria
Mas os dias eram seguros
Na pacatez do lugar
Num mundo natural
Encostado às montanhas
Em que o nome das coisas
Forjado pelos deuses
Em feitiço profundo
Ainda era o mesmo
Das palavras ditas
No primórdio dos dias
Da criação do mundo.
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sábado, 20 de março de 2010

AFECTOS

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Um aviso prévio: este texto não é razão, é coração. É que esta semana as emoções andaram à flor da pele. Por várias razões. De entre elas, partilho convosco as manifestações de afecto e carinho com que fui brindado, principalmente por uns pequenos seres de quem sou responsável vai para quatro anos. Tive direito a missivas tocantes, música (Diogo, trata bem esse violino!), chocolates, perfume, bolo, e até o "Jerusalém", do Mia Couto, me veio parar às mãos. Como se não fosse pouco (e foi tanto!) também chegou até mim uma árvore, acompanhada das seguintes palavras:
"A um poeta, homem, "pai", professor!

Dar é reconhecer que se gosta. ...depois de algum pensar, decidimos dar-lhe uma flor. Só que há um senão, as flores murcham. Se ao menos elas fossem eternas! Então damos-lhe flores eternas, canto de tanto poeta, amendoeiras em flor!
Quando estiver no seu terreno a olhar para o horizonte, pelo menos uma vez no ano há-de lembrar-se..."

Que dizer perante isto? Creio que, nestas alturas, nada mais há a dizer que obrigado. Apenas. Porque o resto são sentimentos que teimam em ficar à flor da pele. E eu engasgo-me. Mas sinto. Muito! E reconheço-me na função de ser professor.
Acabei há pouco de plantar a amendoeira, e baptizei-a de Árvore dos Afectos. Com a esperança de que seja minha cúmplice para o resto da vida.
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segunda-feira, 15 de março de 2010

O VOO

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Para o João, ave em busca do seu destino
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Olhava para ti
Enquanto deslizavas
Em pleno deleite
Na graciosidade do voo
Olhando o ramo mais alto
Em sorriso primaveril.
O respirar era ágil
Na perfeição do pino
E o alto dos pinheiros
Limite da iniciação
Não escondia a ambição
Dum voar mais amplo
Que sonhavas no distante
Cenário do teu destino.
A segurança do ninho
Tecido com ternura
Já não te bastava
E lentamente sufocava
O enorme anseio
De tudo abraçar.
Quando sentia
À tardinha
O teu olhar no longe
E via o apelo
Desenfreado
Dos trilhos impossíveis
Sabia que nada
Mesmo nada
Te faria perceber
Que o longo braço da vida
Não tem distância
Mas equilíbrio
Em porfiada harmonia.
A partida era iminente
A favor ou contra a corrente
Alheia à palavra calma
Mas só tu poderias descobrir
Nas teias do porvir
O verdadeiro lugar
Da dimensão da tua alma.
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sábado, 13 de março de 2010

O PRODUTO

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Após alguns contactos do patrono, Júlio foi contactado pela editora. Que gostavam do seu trabalho, que já tinham planos para ele. Que estivesse tranquilo, que eles tratariam de tudo.
Passado algum tempo, começaram a aparecer uns artigos em determinadas revistas acerca do livro de um novo escritor, catalogado como um lenço de cores sugestivas. O público registou.
No dia do lançamento acordou ansioso, preocupado com o decorar do papel que lhe tinham destinado. Chegou ao local vestido com as cores do lenço da sua imagem, procurando ir ao encontro dos possíveis transeuntes do seu imaginário. Na sala ia-se formando um ajuntamento considerável, correspondendo ao apelo do lenço. Dois assessores, especialistas em sinais de lenços, alimentavam a turba. Falaram da qualidade do lenço e da importância das suas cores. A multidão, sequiosa do novo produto, fez fila para almejar a assinatura do novo autor.
A aventura durou enquanto o produto vendeu. Tempos depois, as revistas falavam dum lenço com novas cores. Nunca mais ninguém ouviu falar do Júlio.
Entretanto, seguindo a tendência da voragem, as calotas polares derreteram mais um pouco...
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sábado, 6 de março de 2010

O MEDO

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O mundo está feio. Feio e triste. Feio, triste e desesperado.
Olhamos em volta e, por mais que nos queiramos fixar em coisas positivas, o alastrar da nossa decrepitude já não se insinua, afirma-se. Deixámos de ter confiança no vizinho, no merceeiro, no político. Ninguém acredita em ninguém.
As instituições, destituídas de credibilidade, parecem seguras por arames; os valores de vida, meta elevada a preservar, diluem-se em interesses egoístas e corporativistas; a natureza, eterna mãe condescendente, esvai-se em queixumes estrebuchantes...
Os líderes passam a mensagem de dificuldades inultrapassáveis, do caos iminente. E o medo insinua-se, levando à irracionalidade, ao animalesco. E a luz da ideia, titubeante, enfrenta tempestades medonhas.
O caminho não passa por colocar um cartaz "Herói, precisa-se!", porque heróis seremos todos nós. Se conseguirmos. Caso contrário, basta um simples epitáfio. Colectivo.
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