sexta-feira, 30 de abril de 2010

AS PEQUENAS GRANDES COISAS

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Passamos meia vida em busca da receita para que a harmonia faça parte do nosso respirar, mas a verdade é que, sem nos darmos conta, as pequenas coisas têm um peso considerável na determinação da nossa disposição. À laia de exemplo, ainda há pouco, quando me deslocava de carro, com uma certa pressa, para levar o meu filho mais novo a satisfazer um compromisso para o qual já estava um pouco atrasado, fiz um impaciente sinal de luzes a um condutor que demorou mais um pouco a sair da faixa de rodagem da esquerda. Quando, finalmente, o ultrapassei, reconheci uma cara das minhas relações. Sorriso amarelo, pois claro. E senti-me suficientemente mal para que alguma boa disposição que trazia se evaporasse.
Em sentido oposto, por vezes consigo fruir o dia da melhor maneira. E, por norma, tudo se começa a desenhar pela manhã, quando consigo sentar-me para o pequeno-almoço imune à correria do dia que me espera. Gosto de o tomar devagar, sem pressas, a sentir os primeiros raios de sol a entrar através da vidraça. Lá fora os pardais fazem pela vida, e um ou outro melro ousa aproximar-se da horta, onde uma lagarta distraída é presa incauta. A cadela, sentindo sinal de vida, acerca-se da cozinha, pedindo atenção e comida, o pretexto perfeito para ir respirar o ar da manhã. Depois, qual dádiva dos deuses, basta levantar o olhar e deixar que a mancha verde da Gardunha ou a imensidão da Estrela mexam com a minha sensibilidade. Quando o dia começa assim, dificilmente as coisas correm mal. É como se a mente despertasse para o lado mais claro da vida, para um patamar em que tudo faz sentido. Até as coincidências.
Mas é apenas nalguns dias. Noutros o cinzento vai vagueando no ar, dissimuladamente. É que, à medida que o dia avança, vamos sentindo o impacto de muita coisa que nos rodeia, cada qual com o seu tipo de energia. E nem sempre ela é boa.
Às vezes apetece ser ave, mas as asas não obedecem ao anseio.
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segunda-feira, 26 de abril de 2010

CORO DOS ESCRAVOS

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Gosto dos pequenos gestos, das aparentes coincidências, do sentido de partilha...
Hoje, ao abrir o meu correio electrónico, deparei com uma missiva do Zé Caldeira. Nela brindava-me com o Coro dos Escravos, da ópera Nabucco, de Verdi. Belíssimo!
Não sei porquê, quando estava a ouvir lembrei-me da Isabel Fidalgo, que costuma por aqui passar na caixa de comentários com o nome de Ibel. A Isabel, uma poetisa de profunda sensibilidade e uma enorme artesã das palavras, decidiu, ao fim de trinta e oito anos de docência, pedir a reforma. Não está contente, pois sempre adorou o ensino. Mas quem conhece minimamente o que se tem passado na política educativa dos últimos anos, facilmente entenderá o seu gesto. E a sua desilusão.
Isabel, sei que merecia mais, mas endosso-lhe esta corrente de partilha com todo o carinho. Oiça e delicie-se, de preferência com o écran inteiro, como aconselha o Caldeira.
Um abraço.
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quarta-feira, 21 de abril de 2010

O LICÍNIO

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Vivia-se o bulício da hora do recreio. No espaço situado junto ao portão da entrada, como era hábito, um animado grupo, aproveitando a configuração favorável do terreno, saltava à corda. Como o número de candidatos era considerável, foi necessário formar uma fila onde a pequenada, impaciente, aguardava a sua vez.
O Licínio é que não estava para isso. Como quem não quer a coisa, chegou-se à frente e empurrou o cabeça de fila, aprestando-se para entrar em acção. Remediado o problema, o prevaricador ficou de castigo encostado ao muro a ver saltar os outros.
Entretanto desloquei-me para as traseiras da escola, onde se praticava outro género de brincadeiras. Fiquei por ali uns minutos, a observar o descarregar de energias. De repente sinto um toque subtil nas costas. Viro-me e...
- Já posso sair do meu lugar?
Era o Licínio, com ar muito compenetrado. Deslocara-se do lado oposto do recinto do recreio para saber se já podia sair do lugar. Não consegui evitar um sorriso, mas não lhe dei muito troco. O recreio continuou, mas sentia-o por perto, a querer aproximar-se. Às tantas, numa situação qualquer de faz-de-conta, levantei um dos petizes no ar, perante a algazarra dos restantes. E continuei a andar. É então que intervém o Licínio, dirigindo-se aos colegas com o ar mais natural do mundo:
- O senhor professor até pode com uma vaca às costas!
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sexta-feira, 16 de abril de 2010

PAUSA

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A primeira sensação é de recusa. Cansado, eu? No fim-de-semana recupera-se. E continuamos a navegar no esforço, a cavalgar ondas que muitas vezes nem sequer são as nossas. E insistimos. Mas, silencioso, o cansaço vai-se instalando. E deixa marca. Há, então, que ter o bom senso de parar, e saber seleccionar o objecto do nosso esforço. É o que vou tentar fazer, pois até ao fim do ano ainda tenho uns pormenores a ajustar com um grupo de vinte e quatro pequenotes. Mas, nas folgas de alguns fins-de-semana, prometo dar sinal de vida.
Até já!
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sexta-feira, 9 de abril de 2010

A MORTE LENTA

.Imagem tirada daqui.
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Sentado em frente ao lume, Felismino ouvia o silêncio. Do curral vinha o eco quase imperceptível de meia dúzia de cabras que, para além da companhia, proporcionavam ao velho o leite necessário para fazer um ou outro queijo.
Às vezes sentia falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma tigela e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia até à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrar não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Quando acabou de comer foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, e já tinha vivido o suficiente para aceitar o inevitável. E queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam respeitando a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho duma ou outra estrela. Os cães, sentindo algo no ar, abeiraram-se dele à procura dum afago. Na rua deserta era chegada a hora das sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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terça-feira, 6 de abril de 2010

UMA MÃO CHEIA DE NADA

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A vida corria-lhe bem. Sabia aplicar tudo o que ganhava, e o património ia aumentando. É verdade que, em nome da causa em que se tinha empenhado, ia protelando a relação com os que lhe estavam mais próximos, mas o sucesso dava-lhe força e convicção. E continuava. E quanto mais continuava, mais protelava.
Quando parou para observar tudo o que tinha conseguido, requisitou os amigos para dar mais força ao seu orgulho. Mas, para seu espanto, apenas apareceram os de circunstância. Estava sozinho, e vociferou contra a injustiça e a ingratidão das pessoas.
Continuou a vociferar e, quanto mais o fazia, mais se colocava à distância dos outros, incapaz de perceber o mais elementar. Nunca aprendera que a alma não se alimenta de despojos.
Paz à sua alma.
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domingo, 4 de abril de 2010

PRIMAVERA

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Publiquei este poema, vá lá saber-se porquê, em Dezembro. Talvez fossem as saudades do sol. Mas hoje é Páscoa, o sol irrompeu logo pela manhã, e a disposição ressentiu-se. Para melhor. Como, apesar de tudo, continuo a acreditar no futuro, aqui fica de novo o poema. Porque todos precisamos de primaveras na nossa vida.
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Éramos jovens potros
Imunes ao receio
E a primavera de Vivaldi
Em harmonia vibrante
Era o primoroso retrato
Do nosso entusiasmo
No galopar sem freio.
A seara ondulava, sensual
E viajávamos no sonho
Embalados no rumor da aragem
Que escrevia
Nas folhas dos freixos
Sinfonias à nossa passagem.
A paixão das cigarras
Morava dentro de nós
E a linha do horizonte
Meta por conquistar
Era a tela
Dos planos traçados
Dum mundo por desbravar.
Adormecia nos teus braços
Em nocturno de Chopin
Terna e doce vassalagem
E só o romper da aurora
Rebate do mundo lá fora
Quebrava o feitiço da viagem.
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sexta-feira, 2 de abril de 2010

SALTIMBANCOS

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Há uns anos atrás percorriam o país de lés a lés, e havia sempre um sítio qualquer onde faziam emergir a sua arte. Encantavam aqui, faziam rir ali, e no dia seguinte lá partiam com o quinhão possível, a paga de quebrarem um pouco a modorra dos dias sempre iguais dos locais por onde passavam.
Não gostavam de amarras, e pouco tempo permaneciam no mesmo lugar. Sentiam-se bem nas asas do vento e gostavam da companhia das estrelas. O amanhã não os preocupava.
Os tempos mudaram, e as maravilhas ambulantes começaram a ter a concorrência desleal das novas tecnologias. Hoje tudo se vê na televisão, na Internet. E está tudo tão à mão que as pessoas deixaram de sair, de conviver, de arejar. E quanto mais vêem as desgraças do mundo num qualquer telejornal, mais se fecham dentro de quatro paredes, como se esse gesto as preservasse das intempéries da vida. Deixaram de rir de si próprias, de dar crédito ao deslumbramento da fantasia, não reparando que, a pouco e pouco, se aproximavam mais do abismo. E os saltimbancos de outrora deixaram de maravilhar.
Mas, vá lá saber-se porquê, ainda os há por aí. Resistem ao tempo, tentando contrariar tendências irreversíveis, não sabendo viver doutra forma. Lutam por se sentir incluídos numa sociedade que os exclui, a todo o instante, por falta de calibragem num mundo formatado. No fundo consideram-nos marginais, esperando que se extingam por si próprios.
Há dias esteve numa escola um casal de resistentes. Em privado queixaram-se dos tempos, da indiferença das pessoas, falaram da luta travada para conseguirem comer. Mas quando chegou a hora do espectáculo, os lamentos desapareceram. Imbuíram-se da sua essência e maravilharam miúdos e graúdos, fazendo com que a plateia entrasse num patamar onde a gargalhada e o olhar de espanto ditavam leis.
No final, satisfeitos, agradeceram a atenção e a atitude do público. É que, para além do pão-nosso de cada dia, esta casta de gente também se alimenta de aplausos.
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