segunda-feira, 31 de maio de 2010

A CORÇA VOADORA

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Lá longe, onde as montanhas mantinham um reduto quase inacessível, a corça cultivava as asas que nunca iria usar. Mas acreditava que iria voar, e isso fazia toda a diferença.
Quando as crias nasceram, incutiu-lhes o mesmo credo. E, passado um tempo, uma delas começou a ganhar asas. Porque acreditava nisso.
Quando a corça começou a voar, as irmãs censuraram-na. Porque eram corças.
A corça voadora, pegando na trouxa, zarpou para outras paragens. Talvez noutra latitude houvesse outras corças aladas.
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sábado, 29 de maio de 2010

CASCATA

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Depois do fragor da cascata
As águas amansavam, doridas
E adormeciam na serenidade da várzea.
Assim eras tu, à tardinha
Quando chegavas do calor da refrega
E procuravas a brisa fresca
Nas tranquilas velas do meu peito.
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quarta-feira, 26 de maio de 2010

PASSAGEM

.Imagem tirada daqui.
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Às vezes via no teu olhar
A chegada iminente das nuvens.
Era quando tergiversavas
Em caldo-maria laboratorial
O trejeito sibilino
E tentavas numa só árvore
(A mais brilhante da floresta, dizias)
A fórmula milagreira
Do sorrir do teu destino.
Em vão te mostrava o canto
Para lá do diáfano manto
Do ouro do Tosão
Tentado em luta intensa
Esboço de recompensa
Quase nunca almejada
E sempre em construção.
Perdeste-te no aceno
Tecido de subterfúgio
No alucinado labirinto
E não viste que a noite
Precursora da grande viagem
Desceu ao teu encontro
Para cobrar o bilhete
Da tua efémera passagem.
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segunda-feira, 24 de maio de 2010

MON(TE)SANTO

.A. Magalhães - Monsanto
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As nuvens negras pairam no ar, convidando a reflexões sombrias de ave agoirenta. Insinuam-se cenários desoladores, naufrágios, pilhagens...
Contudo, para quem estiver atento, a capacidade da vida nos surpreender é infindável. Às vezes basta um gesto, um olhar diferente, uma atitude de quem nos rodeia. Noutras é a alma de certos lugares que nos bate à porta, inundando-nos de estranhas sensações, como se quisesse despertar em nós linguagens há muito esquecidas na memória dos homens. E ficamos ali, numa tentativa de comunicar com algo, rebuscando no mais profundo do nosso interior.
Há tempos passei pela aldeia histórica de Monsanto, numa revisita sempre propiciadora de novos tons e sensações. Calcorreei as calçadas, subi ao castelo, perdi-me na imensidão da paisagem. Às tantas, já com o sol a esconder-se para lá da longínqua Gardunha, as pedras pareceram começar a ganhar vida. Sentia-se, a pouco e pouco, algo a libertar-se no ar, dando vida e sentido àquela nave de pedra, testemunha milenar de múltiplas formas de olhar e respirar. Aquela estranha energia invade-nos, possui-nos e, por momentos, tudo parece fazer sentido...
A viagem de regresso é feita com o que ainda resta da sensação, que se vai esbatendo na distância. Mas há algo que fica, que nos resgata, que nos impele ao regresso, à procura daquela sensação vislumbrada ao pôr-do-sol, numa espécie de fronteira em que se parece sentir, por momentos, o sentido da palavra primitiva.
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quarta-feira, 19 de maio de 2010

TALVEZ NÃO SEJA TARDE

.Van Gogh - Paisagem da Colheita
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A tarde estava a chegar ao fim. Os grilos faziam ouvir a sua sinfonia, impregnando de louvores as teias dum tempo sem ontem nem amanhã. Uma borboleta esvoaçava no meio dos malmequeres, enquanto mil aromas impregnavam o ar. Ali perto, dois melros bebericavam na água fresca do riacho, saciando a sede depois de um dia de intenso labor...
A quietude insinuava-se, adoçando visões e impressões menos agradáveis doutro mundo, mais complexo e elaborado, mas muito menos harmonioso. Ali estava ele, bicho-homem, perante o mais óbvio da Natureza, como se aquela verdade tivesse caído no esquecimento colectivo. O rumo tinha-se perdido algures, já quase ninguém sabia onde, e até Diógenes tinha sido engolido pelas trevas.
A tranquilidade do local serenava-o. Talvez ainda não fosse tarde. Talvez os reféns dum sistema caduco, perante a iminência da catástrofe, se soltassem das amarras e começassem a olhar em volta. E, principalmente, para dentro de si próprios. Talvez...
Quando regressava, ainda em conflito de ideias, passou por uma série de eólicas. Mais abaixo, no fundo do vale, a azáfama de fim de dia numa quinta fazia-se sentir nas redondezas.
Talvez ainda não seja tarde.
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sábado, 15 de maio de 2010

OS VENTOS MUDARAM DE FEIÇÃO

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Os ventos mudaram de feição.
No barco à deriva
Sem norte
Entregue à sua sorte
O rugido do medo
Prenunciador do degredo
Alastra no porão
E a multidão desvairada
Sem rumo nem balaustrada
Em impulso animal
Clama por circo e pão.
Bem tenta o capitão
Em ritmada melopeia
Vender os encantos
Do canto da sereia!
Na sombra sente-se a fera
E a hora é de aflição.
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Já não se sente a frescura das manhãs
Os ventos mudaram de feição.
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terça-feira, 11 de maio de 2010

CAMINHO

.Henrique Matos, Destino Cosmos
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Forjara os sonhos em olhares, sensações e desejos, temperados com muito afecto.
Tinha a convicção dos eleitos, e nada parecia esmorecer tamanha determinação. Às vezes choramingava, é verdade, mas depressa fazia das fraquezas forças. O que mais a tocava era a incompreensão dos que a tentavam magoar, talvez porque ousasse percorrer as veredas da verdade, a sua verdade, que respirasse coragem onde os outros baixavam os olhos. Mas prosseguia o seu caminho, sorrindo, semeando poesia em réstias de luz.
Sentia que quanto mais avançava mais se afastava dos outros, mas tinha a plena convicção, vinda do mais fundo de si mesma, de que era aquele o caminho. Gostava deles, mas tinha que se afastar. Talvez um dia compreendessem. Ou talvez não. Aquele era o seu rumo, a construção do seu sonho, e estava disposta a tudo para o continuar a trilhar.
As cumplicidades, ainda que poucas, foram reforçando o alento. O calor da mão aberta, um olhar de mil palavras, um mergulho em águas claras...
Passou por mim há pouco, e o olhar não iludia. Maria dos olhos claros, poesia em movimento, o respirar como destino.
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sábado, 8 de maio de 2010

O REI QUE GOSTAVA DE FILHÓS

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Os filhos crescem num ápice e, sem nos darmos conta, o voo da autonomia começa a insinuar-se.
Mas não foi assim há tanto tempo que eles dependiam totalmente de nós. À memória vêm-me, por exemplo, os seus três anitos, tempo em que cada refeição implicava uma história nova, um excelente exercício para a capacidade inventiva do progenitor, que tinha que ser criativo na hora. Muitas histórias surgiram da inspiração do momento, de que é exemplo esta sobre filhós. Que, creio, surgiu para atenuar a fixação dum deles em determinado alimento. Que não as filhós, iguaria de que nunca foram apreciadores.
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Era uma vez um rei que gostava muito de filhós.
Ora, na terra do rei, o Reino da Calmaria, era hábito fazer filhós apenas no Natal e no Carnaval. E o rei Ramiro, que era doido por filhós, passava o resto do ano a suspirar que chegasse o tempo delas.
Um dia, quando passava junto à varanda do palácio, um conselheiro viu o rei a suspirar.
- Que se passa, Alteza?
- Apetecia-me comer filhós, mas ainda falta muito para o Natal. Nem sei que faça!
- Alteza, mas há uma solução para o vosso problema. Não sois vós o rei? Então ordenai aos vossos pasteleiros que façam filhós, e fica o problema resolvido.
O rei gostou da ideia. E imediatamente mandou chamar os pasteleiros à sua presença, para lhes dizer que, a partir daquele momento, queria comer filhós todos os dias.
E assim foi. A partir daquele dia o rei Ramiro passou a empanturrar-se de filhós. Comia-as ao pequeno-almoço e ao lanche, e só não as comia ao almoço e ao jantar porque a rainha Margarida o conseguiu convencer de que aquela atitude era imprópria dum grande monarca.
Os dias foram passando, e o gosto do rei pelas filhós não parecia esmorecer. A família real é que não o acompanhava no gosto. E, passado pouco tempo, todos arranjaram uma desculpa para não partilhar a mesa do rei à hora do lanche e do pequeno-almoço. A rainha dizia que estava com enxaqueca; o príncipe João alegava que tinha aula de equitação; o príncipe Luís invocava o estudo dos astros, pois andava a aprender astronomia...
O rei, rodeado de filhós, encolhia os ombros e não de importava. E os dias iam passando.
Um mês depois, o rei Ramiro já não comia as filhós com a mesma vontade. E, se antes comia três ou quatro, agora só comia duas ou mesmo uma. Começava a ficar farto de filhós.
Passou mais uma semana. E, sem surpresa para ninguém, o rei já só debicava um ou outro bocadinho de filhó. Estava farto!
O rei voltou a chamar os pasteleiros. E, a partir daquele dia, só se comeriam filhós no Natal e no Carnaval.
Quando souberam das novas ordens do rei, os habitantes do palácio ficaram contentíssimos, pois já ninguém suportava o cheiro das filhós. E o rei, enquanto se deliciava com uma peça de fruta, passou a ter a alegre companhia da família a todas as refeições.
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