quarta-feira, 1 de setembro de 2010

COM A MÃE NO BOLSO

..
.
.
Todos os anos se repete o ritual. À escola chega uma vintena de novos alunos, passaritos de asas curtas em busca da carta de alforria no voo. A professora, ao recebê-los, tem como preocupação que façam daquele o seu espaço, que criem laços afectivos e cumplicidades, ao mesmo tempo que lhes vai incutindo regras e formas de estar, fundamento básico para lhes começar a introduzir, paulatinamente, os rudimentos da interpretação dos diversos códigos que lhes proporcionem a melhor ligação possível com o mundo que os espera lá fora: na língua materna, na matemática, no conhecimento do meio envolvente, ao mesmo tempo que lhes vai estimulando a solidariedade, a civilidade, a amizade e outras ade.
Os olhos da maioria não escondem o entusiasmo. Parecem potrinhos sem freio, ávidos de galopes intermináveis por territórios bem delineados no sonho, apenas apaziguados por sono retemperador.
Mas há sempre um ou dois que não trazem as defesas necessárias para conviver harmoniosamente num grupo com tanta energia à solta, ávido de se manifestar e de deixar marca de si. Sentem demasiado a mudança de território, e o desconforto fá-los recordar, constantemente, a segurança das mãos da mãe, o seu cheiro, a sua protecção...
O Tiago é um desses casos. A vivacidade dos colegas não o tranquiliza, e cada gesto mais exuberante é uma ameaça para o precário equilíbrio do seu pequeno mundo. A professora, percebendo-lhe a insegurança, tenta apaziguar-lhe as angústias e, após ouvir-lhe a invocação da progenitora pela enésima vez, sugere-lhe que traga para a sala a fotografia da mãe.
No dia seguinte, com um esboço de sorriso nos lábios, o Tiago apareceu na escola com uma moldura com a fotografia da mãe, e mostrou-a à professora. Esta, com a cumplicidade estampada no olhar, elogiou-lhe a beleza, e encorajou-o a colocá-la em cima da mesa de trabalho.
Embora recorrendo a frequentes olhares para a fotografia, o Tiago começou a encarar a escola de forma mais tranquila. As tarefas deixaram de ser penosas, as caras dos colegas começaram a ter contorno de amigos, ousou aventurar-se nas movimentações do recreio...
O pior era quando chegava a hora do almoço. O miúdo, que até aí continuava a trepar degraus na sua integração, quando chegava o meio-dia não conseguia evitar o aparecimento dos seus fantasmas. Apavorava-o o ambiente do refeitório, sem a presença da professora, não conseguindo lidar com a exuberância dos colegas mais velhos, com outro traquejo na arte de lidar com os outros.
Quando a angústia da hora do almoço ameaçava tornar-se um hábito, foi o próprio Tiago a encontrar a solução. Um dia destes, ao chegar a temida hora, aproximou-se da professora e pediu-lhe, baixinho:
- Professora, posso levar a minha mãe comigo?
Perante o acenar positivo, o pequenote pegou na moldura, meteu-a no bolso com todo o cuidado e lá partiu, mais confiante, em direcção ao refeitório.
Nesse dia, na reconfortante companhia da mãe, o Tiago comeu a sopa toda.
.

..

Reedição
.
.

55 comentários:

  1. A Escola é, por vezes, um lugar estranho e não devia ser. Talvez ainda haja resquícios dos tempos em que os pais se dirigiam aos professores dizendo: "Sr(a) Professor(a) faça do meu filho(a) um Homem/Mulher e, se ele(a) se portar mal, não lhe doam as mãos. Entregue-me só as orelhas". O pavor da criança com este responso do pai/mãe não poderia ser mais assustador. Depois os dias iam passando e a escola era uma festa porque era o local onde se encontravam os amigos, se brincava à tripa forra, se demonstravam destrezas individuais.
    A criança, hoje centro do Mundo é, ao mesmo tempo sua prisioneira. Vive com o medo que lhe é incutido pelos pais com o sentido de os proteger. "Não se fala com desconhecidos"; "não se vai com ninguém"; "espera sempre pelo pai ou pela mãe"; etc. etc.
    Isto retira à criança uma das suas características fundamentais: ser espontâneo.
    Correr, saltar, aventurar-se em mundos desconhecidos fazem parte do crescimento. O Mundo, porém, tão evoluido numas coisas, continua tão retrógrado noutras e em vez de avançar regrediu. O Tiago é um exemplo vivo destas contradições. Vale, na circunstâcia, a atenção, dedicação, carinho do(a) Professor(a) Primeiro.
    Muito bem analisada, como sempre, esta situação da vida real.
    Um forte abraço
    Caldeira

    ResponderEliminar
  2. Me deu vontade de abraçar bem forte o Tiago sabia? Por sua fragilidade.
    Nosso primeiro dia de escola é sempre muito difícil, ainda mais quando temos as nossas diferencças. Algumas crianças são extrovertidas, alegres, falam pelos cotovelos(tagarelas). Outras já são mais recatadas e assustam-se com certas folias.
    O importante é que Tiago arrumou uma maneira de sentir-se seguro e isso é muito importante.

    Beijo AC.
    Fernanda.

    ResponderEliminar
  3. Olá A.C,
    Quanta saudade ao lembrar o primeiro dia de escola...
    Fico contente com o método encontrado pela professora do Tiago!
    E parabéns a si por mais um magnifico texto!

    Bjs dos Alpes

    ResponderEliminar
  4. Que história gostosa, o Tiago naquele mundo novo, a escola. Quantas crianças se sentem como ele não é? Já vi várias que choram tanto para entrar na escola que se pudessem levariam a mãe com certeza.

    BeijooO*

    ResponderEliminar
  5. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  6. Correr os olhos por este texto foi como caminhar segura, dentro de casa.
    Que dizer destes episódios tão marcantes para a criança, para a família para o professor...
    Um dia escreverei todas as histórias similares que guardo num cantinho da alma.

    Um beijo

    Um Bom Ano!

    ResponderEliminar
  7. Lindo e tão doce esse texto.Quantas recordaçõeslegais me vieram...beijos,chica

    ResponderEliminar
  8. Ficam frágeis as crianças e as mães, em dias assim. Gostei muito do texto. Beijos.

    ResponderEliminar
  9. Lindo texto, emocionante.

    A imagem, perfeita. Gustav Klint tem muitas telas de mulheres... cada uma mais linda que a outra. Adoro "O Beijo"... tenho uma cópia. bjs

    ResponderEliminar
  10. Receios que cedo começam quando se perde a segurança do abraço de leite.
    Gostei muito da sensibilidade que o texto revela.
    Um beijo

    ResponderEliminar
  11. A areia do tempo escorre entre meus dedos...Quando consigo reter um grão, venho aqui...

    Adorei o texto!

    Abraço!

    ResponderEliminar
  12. REGRESSEI E OS PRIMEIROS COMENTÁRIOS NO MEU ESPAÇO FORAM OS TEUS...MUITO OBRIGADA PELA ATENÇÃO ...FOI UM PRAZER...É E SERÁ SEMPRE!

    VIM VISITAR-TE E DOU DE CARAS COM UM TEXTO QUE EMOCIONA..."ANDAR COM A MÃE NO BOLSO"... É SEM DÚVIDA UMA FORMA TERNURENTA DE TÊ-LA MAIS PRÓXIMA...DE SENIR-SE MAIS SEGURA...MUITO POÉTICO...MUITO PERFUMADO... DE COLO DE MÃE...

    FOI MUITO BOM TER-TE LIDO...

    ADMIRO IMENSAMENTE O QUE ESCREVES E COMO ESCREVES

    BEIJO DE VERÃO

    ResponderEliminar
  13. Trazer assim no bolso esse amor que proporciona tanta segurança... Que sorte, a do Tiago, por ter uma professora capaz de compreender-lhe as angústias.

    Texto que mexe nas memórias... Fez-me lembrar os primeiros dias de escola da minha filha e da minha netinha.

    Sempre um prazer "te ler"

    Bjs e inté!

    ResponderEliminar
  14. PUtz, regressei ao meus primeiros dias de aula e era exatamente isso o que eu passei...
    Maravilho...bem real!

    Tem um selinho lá pra ti...ok?
    bjinho

    ResponderEliminar
  15. Interessante como a figura materna exerce um grande poder em nossa vida.
    O texto foi sendo lido e as imagens tomando vida em minha mente!

    Um abraço carinhoso

    ResponderEliminar
  16. Olá AC!

    O momento de sair de baixo da asa protectora da mãe para um universo novo, povoado por gente desconhecida, é sempre a primeira aventura a solo, e que poderá "assustar" alguns, talvez aqueles que sempre foram mais protegidos, ou os que pela sua própria natureza são assim mesmo, mais tímidos, precisando de mais tempo de adaptação ... mas nada que o tempo não resolva.
    A história está lindamente contada, e é, ainda quede forma indirecta,uma bonita homenagem a todas as mães, anjos protectores, ainda a que à distância.

    Um abraço.
    Vitor

    ResponderEliminar
  17. Querido menino Tiago, quanta empatia provoca na gente! Hoje postei sobre a relação mãe e filhos, e usei a mesma imagem! rsrs...
    Juro que não tinha visto teu post ainda,rsrs...
    estas coincidências vivem a acontecer na internet...
    Beijos

    ResponderEliminar
  18. AC,
    passei para agradecer o presente (presença. Obrigada amigo!
    Amei tudo que escrveu para mim.

    Beijinho.
    Fernanda.

    ResponderEliminar
  19. Texto lindo!!!
    Beijossss em teu coração e uma semana Maravilhosa!

    ResponderEliminar
  20. ...e a mãe
    também comeu a sopa? :))

    bonita a professora do Tiago!

    porque de todos os "ades" que lhe ensinou

    soube repeitar as saud.ades que ele tinha...

    um beijo

    manuela

    ResponderEliminar
  21. "respeitar", peço desculpa...

    a minha primeira professora
    não me ensinou a escrever lá muito bem!

    manuela

    ResponderEliminar
  22. Ohhhhhhhhhhh

    tts Tiagos nesta nossa Vida de Professor!!!

    BELO TEXTO!!
    Mui beLO!!!

    bjs de Boa Noite!!!

    ResponderEliminar
  23. Voce também é uma grande escritora.
    Este texto ressalta a importância da mãe preparar bem seu filho para o primeiro dia de aula.
    Parabens
    Com carinho MOnica

    ResponderEliminar
  24. A carência do aluno + a sensibilidade de uma professora que gosta do que faz + a mãe no bolso = um trinômio que tem tudo para dar certo, mas...

    vem o doce poeta e transforma isso nesse texto delicioso.

    Beijo, AC.

    ResponderEliminar
  25. As crianças são pequenos e ternos poemas com olhinhos e perninhas!

    Um abraço

    ResponderEliminar
  26. Que texto lindo *-*
    Sempre fui muito apegada a minha mãe, mas acredito que desde pequena sou um pouco orgulhosa, então não deixava que isso interferisse no meu momento escolar!
    Até hoje durmo com ela vez ou outra :)
    rs =*

    ResponderEliminar
  27. AC:
    enterneceu-me ler o teu texto. tenho um caso similar, mas ainda não é tempo de o contar.
    beijo

    ResponderEliminar
  28. AC
    Obrigada por nos recordar que, na vida, um pequeno pormenor faz toda a difrença. É necessário estar atento, ser flexível e facilitador de modo a que para cada caso se encontre a solução adequada para os problemas que se nos colocam.
    Porque não poderia o pequeno Tiago levar a mãe no bolso? :))

    Abraço amigo
    MariaIvone

    ResponderEliminar
  29. AC, que beleza esse texto! Tão bom saber que podemos levar no bolso (e na alma) aquilo que nos dá segurança.

    beijos pra ti

    ResponderEliminar
  30. Afinal, a razão está no coração de Tiago,pois a mãe é e será sempre o nosso porto seguro.Um abraço

    ResponderEliminar
  31. Eu era extremamente semelhante ao Tiago... não sei se não terei, com o passar dos tempos, transferido alguma dessa agitação para a vida diária e para as relações encetadas... Não obstante, é bom saber que, ao contrário daquilo que vivenciei há professoras que acolhem os alunos, ao invés de os repudiarem pela diferença.

    Um abraço Romeu (Me Hate)

    ResponderEliminar
  32. AC, meus olhos encheram de lágrimas por este texto. Que sensibilidade!!


    Beijos

    PS: E quem não carrega a sua mãe?

    ResponderEliminar
  33. A.C.,
    uma professora assim , não só consegue que os Tiagos desta vida levem a mãe para a escola , como também fiquem , possivelmente , com a escola no coração .
    O texto está óptimo .

    Um beijo ,
    Maria

    ResponderEliminar
  34. Genial! Espio aqui tem uns poucos dias e não havia deixado rastro ou impressões [digitais]... maravilhado com a leitura, a idéia por trás dela e o bem-casar do título com ela... existem alguns trabalhos interessantes no Brasil e mundo afora... a escola da Ponte em Portugal é bom exemplo... integração família escola, as crianças votam e tem voz e vez [podem decidir por exemplo se levam animais de estimação à escola, os adultos só catalizam as discussões delas próprias quanto ao que será melhor ou pior pra elas mesmas, mas elas decidem e ponderam e aprendem a pensar-se desde cedo... é interessante...

    A.prece.ando cá...

    Forte abraço!

    ResponderEliminar
  35. Ah!... que história fantástica AC!
    "a mãe dentro do bolso"... que coisa maravilhosa!
    Adorei!
    Obrigada amigo, adorei partilhar"
    Beijos!

    ResponderEliminar
  36. que lindo! Teu texto me transportou prio meu pssdo... Excelente.

    ResponderEliminar
  37. Maravilhosa história hoje reedita, amigo AC! Cheio de oportunidade, também, neste tempo em que tantas crianças são obrigadas a enfrentar esse mundo novo para elas!
    A imagem da mãe, esse anjo protector que nunca abandona seus rebentos, a sua voz sempre segredando ao ouvido, serão sempre a força capaz de ajudar a ultrapassar as dificuldades da vida!
    Abraço

    ResponderEliminar
  38. Uma história ternurenta e oportuna, agora que o regresso às aulas se aproxima a passos largos. Já lá vão os anos dos primeiros dias de escola do meus filhos ainda pequenos. Então ansiavam pelo recomeço. Agora, o seu desejo era que as férias continuassem para aí até ao Natal ... :)

    ResponderEliminar
  39. É tudo tão marcante e segue vida afora, determinando tudo. Excelente texto!

    ResponderEliminar
  40. Braços e abraços de afetos, braços do meu aconchego. Que nunca me falte assim por inteiro, pois que ainda que seja em simples fotografia
    essa imagem me sorria e assim eu sentia,
    uma pontada de alívio, um beijo...

    AC meu querido, quão profundo e verdadeiro
    são teus escritos. Nos eternece
    quando mesmo que seja em retrato, olhos reconhecem na imagem o amor primeiro.

    Bjs

    Livinha

    ResponderEliminar
  41. O meu filho foi um "Tiago"...para além dos cuidados da mãe, tinha todo o dia a ternura da avó só para ele...Foi um sofrimento grande para todos. Felizmente há Educadoras que fazem milagres... Apercebendo-se que ele não brincava com os outros meninos...chamou-o sózinho para o seu gabinete e deu-lhe brinquedos para se entreter. No dia seguinte ele levou brinquedos de casa e a Educadora disse-lhe que os dele eram mais bonitos. Andou nisto mais de uma semana...Ao fim deste tempo, chamou apenas um outro menino para brincarem no Gabinete. Dias depois...chamou mais outro até prefazer um grupo de dez crianças...e depois, abriu a gaiola e estava feita a adaptação ao Jardim-Escola. Nunca me esqueço desta Educadora que era Luzinha e foi mesmo uma luz no caminho do meu filho.
    Bjs
    Graça

    ResponderEliminar
  42. Trazer a mãe para a escola foi uma excelente ideia. Levá-la no bolso, ainda melhor! Quando as mães são mães é assim mesmo: a sua omnipresença faz toda a diferença nas nossas vidas.
    Bonito texto :)

    ResponderEliminar
  43. Vim da um beijo no meu amigo.

    Beijo!
    Fernnda.

    ResponderEliminar
  44. Docemente, recordo os meus próprios dias de escola e sinto que não foi assim há tanto tempo. Sorri de ternura.

    ResponderEliminar
  45. Um texto lindo, envolvente e terno.

    Parabéns!
    Abraço.

    ResponderEliminar
  46. AC que texto maravilhoso...amei...

    Beijo :-)

    ResponderEliminar
  47. Que posso eu dizer que acrescente algo de novo ao que foi dito?
    A noite não pára de crescer...
    Abraço, Agostinho.

    ResponderEliminar
  48. Gostei tanto do texto, AC!
    são momentos difíceis, quase sempre momentos de grande crescimento interior para mães e filhos.
    adoro esta pintura, aliás adoro tudo o que seja de Klimt.
    beijinho :-)!

    ResponderEliminar
  49. Que lindo! Vou te contar algo pessoal, minha cria quando começou a estudar ainda no pré. Tive que que me matricular, numa academia proximo a escola,(nem era pela academia e sim por estar proxima) só assim ela se sentiu segura e parou de chorar. E lá se foram bons anos e hoje mesmo com asinhas, ainda me pede, mãe me põe pra dormir. Se tem algo que agradeço todos os dias e por ser mãe!!
    Teu texto de tocou profundamente.

    Beijos meu querido

    ResponderEliminar
  50. Ano após ano há uma história de um qualquer Tiago para contar, e são tantas as histórias...
    Beijos

    ResponderEliminar
  51. Me emocionei. Como a professora foi sábia. Quantos comportamentos tidos como inadequados seriam evitados se os educadores (que nem sempre podem ser chamdos assim)tivessem essa sensibilidade, essa inteligência em lidar com as crianças.

    Lembrei dos escandalos que eu dava, do medo que eu tinha da freire com a roupa preta, e me parecendo gigante...minhas pernas travavam na hora de ir a escola.

    E você escreve de uma forma muito boa de ler.

    ResponderEliminar
  52. Adorei o texto.
    E inclusive já vivi esta história.
    Obrigada pela visita e parabéns pelo seu blog.
    Ótimos textos e imagens.

    Boa tarde.

    ResponderEliminar