sexta-feira, 29 de outubro de 2010

MADRUGADA

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Margarida Cepêda, Leves São os Pássaros
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Sinto-te à distância, mas perto de mim.
O teu respirar é fonte abundante, ainda desconhecedor do manancial da nascente, mas que, enquanto trauteia, imitando os pássaros, cultiva a secreta ambição do conhecimento dos segredos.
Sinto-te o nascer da inquietação, tecida no mais fundo de ti. E isso perturba-me. Talvez porque deseje descobrir as aflições e as tempestades que se escondem sob o teu manto, ainda sem os suaves contornos do leito.
Mas a água jorra, fecunda. E, por ora, é quanto basta para dar cor ao meu anseio.
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terça-feira, 26 de outubro de 2010

ARROUBO OUTONAL

.Imagem tirada daqui
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Quando subias
Pela manhã
O caminho dos castanheiros
O vento
Atrevido
Insinuava no teu cabelo
A vontade profana
De avivar
O cheiro a maçãs maduras
Que inundava
A casa dos teus sentidos.
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sábado, 23 de outubro de 2010

DESTINOS PARALELOS

.Hélio Cunha, A Caixa da Felicidade
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É por demais comum a pergunta: e se...?
Mantendo a estrutura do último texto aqui publicado, com a etiqueta "bloco de notas" (textos para serem desenvolvidos, mais tarde, com outra profundidade) nada mais natural que tentar (re)escrever o destino, dar-lhe novos contornos.
Quanto a mim, criatura de poucas certezas, faz todo o sentido.
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Nasceram em geografias diferentes. Mas ambos caminhavam desde que tinham consciência de si. A princípio muito atabalhoadamente, fase em que o dogma tivera muito peso, mas a pouco e pouco foram conseguindo resgatar as cortinas do pensamento. Curiosamente, quando perceberam que nunca deveriam ir pelo caminho mais fácil, começaram a encontrar cada vez menos pessoas. Mas prosseguiam, munidos da sua convicção.
O processo nunca fora fácil. Tinham ultrapassado abismos, atravessado desertos... Por diversas vezes tiveram que parar, pausas concedidas a si próprios para retemperar forças. Quando começavam a sentir o apelo de ficar, sinal de que estavam a baixar a guarda, sabiam que era chegada a hora. E partiam, cada vez mais por caminhos pouco percorridos. De quando em vez ainda olhavam para trás, sintoma de alguma dúvida, mas era coisa de momentos. Sabiam que tinham de continuar.
No início da subida da Grande Montanha, quando se julgavam sós, sentiram a aura um do outro, vindas de caminhos paralelos. Traziam os mesmos sinais do percurso, marcas profundas gravadas em constante esgravatar. Não foi preciso muito para se entenderem. Os olhos de ambos já tinham visto muito, qual filtro alquimista forjado no essencial.
Subiram a montanha de mãos dadas. O que encontrassem no cume já pouco importava. Tinham encontrado a sua luz.
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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

DEVANEIO

.Margarida Cepêda, Pedestal de Solidão e Luz
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Caminhava desde que tinha consciência de si. A princípio muito atabalhoadamente, fase em que o dogma tivera muito peso, mas a pouco e pouco fora conseguindo rasgar as cortinas do pensamento. Quando percebeu que nunca deveria ir pelo caminho mais fácil, começou a encontrar cada vez menos pessoas. Mas prosseguia, munido da sua convicção.
O processo nunca fora fácil. Tinha ultrapassado abismos, atravessado desertos... Por diversas vezes tivera que parar, pausas que concedera a si próprio para retempero das forças. Quando começava a sentir o apelo de ficar, sinal de que estava a baixar a guarda, sabia que era chegada a hora. E partia, cada vez mais por caminhos pouco percorridos. Sem nunca olhar para trás.
Ao iniciar a subida da Grande Montanha já não via ninguém por perto. Mas não ia sozinho. Uma estranha e doce paz interior começava a insinuar-se, tornando-se cada vez mais presente a cada passada.
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Final 1 - Quando, finalmente, chegou ao topo, sedento da bênção final, sentiu um enorme arrepio. A solidão, nua e crua, invadiu-o num longo e frio abraço de morte.
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Final 2 - Quando, finalmente, chegou ao topo, sentiu uma enorme torrente de luz invadir a sua alma. Tinha atingido o ponto de passagem para um novo patamar da existência.
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Escrevinhei este texto, como é habitual no bloco de notas, em parcos cinco minutos. No entanto, na altura de rematar a questão, surgiram-me dois possíveis finais. Tive que optar por um mas, para manter a coerência da forma como o texto surgiu, resolvi também colocar à consideração dos leitores a segunda opção. Que, de resto, é a minha preferida.
Aos leitores que entretanto comentaram apresento as minhas desculpas.
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sábado, 16 de outubro de 2010

VOO

.Vera Braga, Voo Solo
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Olhava para ti
Enquanto deslizavas
Em pleno deleite
Na graciosidade do voo
Olhando o ramo mais alto
Em sorriso primaveril
O respirar era ágil
Na perfeição do pino
E o alto dos pinheiros
Limite da iniciação
Não escondia a ambição
Dum voar mais amplo
Que sonhavas no distante
Cenário do teu destino
A segurança do ninho
Tecido com ternura
Já não te bastava
E lentamente sufocava
O enorme anseio
De tudo abraçar
Quando sentia
À tardinha
O teu olhar no longe
E via o apelo
Desenfreado
Dos trilhos impossíveis
Sabia que nada
Mesmo nada
Te faria perceber
Que o longo braço da vida
Não tem distância
Mas equilíbrio
Em porfiada harmonia
A partida era iminente
A favor ou contra a corrente
Alheia à palavra calma
Mas só tu poderias descobrir
Nas teias do porvir
O verdadeiro lugar
Da dimensão da tua alma.
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Março de 2010
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terça-feira, 12 de outubro de 2010

O OUTRO LADO DO EU

.Victor Lages, O outro lado do eu
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Enquanto dormitava, sentia o pensamento deslizar para lá de si, esgueirando-se das prateleiras onde estava arrumada uma infinidade de ideias por eclodir.
Este, contudo, parecia ter vontade própria. Galgava, com o maior desplante, as fronteiras visíveis, e criava novos horizontes com a maior das naturalidades.
Não, aquele pensamento não era seu. Havia algo a movê-lo que o ultrapassava, que rompia as fronteiras do medo. E ele via-o ir, impotente, desenhando novas paisagens, novos sentires...
Mas, se não era seu, porque lhe doía tanto a sua impertinência? Porque o perturbava o seu bater de asas?
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sábado, 9 de outubro de 2010

A PARTIDA

.Hélio Cunha, Nascimento de um planeta
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Para a Hanah, do blog ......
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A nave tinha acabado de partir. O comandante, cumprindo o acordado, orbitou o decrépito planeta fumegante, onde as chuvas ácidas e as elevadas temperaturas se tinham tornado um hábito. Já pouco havia a fazer por aquela carcaça malcheirosa, com população a mais e os recursos praticamente esgotados. O verde, o saudoso verde, há muito tinha desaparecido, e apenas podia ser observado nos registos de outrora.
Era ele pouco mais que menino de colo e já se lembrava de ouvir o pai, ao serão, a falar da necessidade de se encontrar uma solução para a Terra. Nessa altura os problemas já eram tantos, que a única saída para o homem era recomeçar tudo num qualquer outro ponto do universo. A vida, dizia ele, é o resultado dum número sem fim de recomeços, e este seria apenas mais um.
Fora devido a essa visão que o pai tudo fizera para que ele se especializasse em biologia, mineralogia espacial, física, química... A ida para o espaço era a grande esperança de sobrevivência de toda a humanidade e, quando o Conselho aprovou o plano de saída, tinha sido dos primeiros a ser escolhido. E agora ali ia ele em direcção a Utopia, um planeta com as mesmas características da Terra, descoberto noutra galáxia, e que tinha sido profundamente estudado. Fazia parte de uma equipa que ultrapassara duras provas para testar a sua capacidade, e a sua tarefa era dotar o planeta das condições mínimas para receber os primeiros colonos da Terra.
A órbita já tinha sido completada, e a nave rumava agora para o futuro. Para trás ficava um planeta desesperado, cheio de problemas de toda a espécie, mas esperançado numa nova oportunidade. Que seria apenas para alguns.
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Parcas palavras para um simples alerta. Ainda estamos a tempo.
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Reedição

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terça-feira, 5 de outubro de 2010

AURA

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Pintava a tela
Em suave colorido
Delicada clave
Da ária interior
Reveladora
Dum tempo maior
Que transportava
Em sorriso sereno
Etéreo violeta
Alma de poeta
Em jardim ameno.
Ao mundo espalhava
Em voz informal
A doce alternativa
E alimentava a corrente
Necessária e urgente
De insuflar na vida
A ideia positiva.
Descia a rua
Em delicada postura
Com música de fundo
E a brisa suave
Era cúmplice da ave
Na vontade madura
De abraçar o mundo.
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Reedição
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sábado, 2 de outubro de 2010

VISLUMBRE UTÓPICO

.Tony Stanovich, Utopia
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Os tempos tinham sido conturbados, mas encontrara-se um rumo.
A memória do grande mergulho colectivo ficara gravada, a letras de fogo, na nascente mais profunda, passando a fazer parte do espólio de cada um. A tela da madrugada fora pintada com as emulações do novo sentir, purificado na descoberta da composição do caldo amniótico inicial. Até os destroços da antiga ordem pareciam ter outra tonalidade.
Tinha-se instalado a era da alma.
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