terça-feira, 27 de dezembro de 2011

(DES)OLHAR

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Margarida Cepêda, Morrer e renascer na grande câmara
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Olhavas para ti
E vias
Em pânico
O tempo a escoar
Qual ampulheta
Meteórica
Sem vontade de parar
E não sabias
Confundida
Que tecla tocar
Para refrear
A angústia premente
Que minava
Continuamente
A verdade instalada.
Se ponderasses
Para além do ego
Talvez notasses
Sem desatino
O fio de água
Cristalino
Que corria
Galgando a frágua
Para abraçar
Por inteiro
A razão do seu destino.
Então talvez pudesses serenar.
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sábado, 17 de dezembro de 2011

CUMPLICIDADES

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 Imagem tirada da net
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Os teus olhos, temperados em procuras, deslumbramentos e esperas, dizem-me que é tempo de repousar da vertigem da viagem, de soltar os idiomas interiores alheios às palavras desenhadas na poeira.
Falas-me, baixinho, da liberdade que mora no silêncio do deserto, mas os corpos são seara sequiosa de amadurecer no respirar da poesia que se solta da pele.
Dou-te a mão, dás-me a mão. Ainda me falas de liberdade, mas nos teus olhos a luz do deserto adquire outra tonalidade com o aroma do trigo maduro.
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sábado, 10 de dezembro de 2011

ECOS

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Fotografia de AC
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A grande montanha parece logo ali, à distância de um gesto, mas o seu piscar de olho é ilusão para os apressados.
Apesar das cautelas, o caminho inicia-se com o bolso repleto de verbos, na confiança do seu aconchego, mas poucos são os que ganham vida com o jorrar do silêncio dos pinheiros. O local tem vida própria, exige do intruso que se dispa, se liberte das marcas doutro linguajar. A brisa, habituada a tais aromas, sussurra ao de leve a importância de saber ouvir, de deixar de lado as encruzilhadas do ruído. E o canto da rola é garante da comunhão com o lugar.
Só tu, refém dum tempo em contratempo, pareces não entender a leveza etérea do meu sorriso.
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sábado, 3 de dezembro de 2011

EM BUSCA DO FUTURO

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Imagem retirada da net
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Margarida Cepêda, Berço
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Eram nómadas por convicção. Traziam consigo, coladas no dorso, conchas de outras eras, medalhas naturais adquiridas no seu viajar.
Vislumbraram há muito o padrão das estrelas, mas continuavam sem encontrar a correspondência nos seus passos.
Sabiam dos limites da explicação do claro-escuro, perpetuadora de fronteiras, e percorriam os caminhos em busca de novas tonalidades. Tentavam de todas as formas geométricas, mas o brilho total, sem eclipse, teimava em não se revelar.
Na sua tentativa de descobrir o futuro, ser nómada tornara-se condição e estado de espírito. E, por entre a carícia do vento, a música e a dança tendem a suavizar o caminho.
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Reformulado. Para Zerafim e as 5 cozinheiras Vurdón.
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sábado, 26 de novembro de 2011

OXIGENAÇÃO

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Fotografia de al-Farrob
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Desmontou da bicicleta no cruzamento que dá acesso à Pedra d'Hera, no caminho rural que liga o Souto da Casa a Alcongosta, e prendeu-a com o cadeado no tronco carcomido dum velho castanheiro. Olhou em volta e, por momentos, deixou que a vista se espraiasse na tonalidade outonal dos cerejais que se espalhavam pelo vale do Alcambar, verdadeira sinfonia pinturesca em tons cambiados de verde, amarelo, castanho, laranja... Resistiu à tentação de se perder naquela beleza e iniciou a marcha que a levaria ao Picoto, local privilegiado onde costumava sentir uma serenidade que estava longe de encontrar na cidade.
À medida que subia apercebeu-se que as surribas feitas pelos plantadores de cerejeiras continuavam a trepar a serra com uma avidez feroz, pondo a nu as fragilidades da política ambiental para aquela zona, se é que realmente havia alguma. Aquilo doía-lhe profundamente, pois a mancha de castanheiros e de carvalhos, que caracterizavam a Gardunha, estava a desaparecer a olhos vistos, com o silêncio cúmplice duma opinião pública que nunca se assumiu como tal.
Tentou alhear-se do problema, pois estava ali com outros intuitos, e alargou o olhar. Em volta, para seu deleite, e impregnando a paisagem de uma dignidade nostálgica, os castinçais começavam a mudar de cor, com uma policromia que tocaria a mais indiferente das criaturas. Inês começou a sentir o efeito da atmosfera envolvente e, a pouco e pouco, foi apaziguando os seus pequenos demónios interiores. Nem a carcaça duma velha máquina de lavar, a cinco metros do caminho, lhe conseguiu desfazer aquela sensação reconfortante. Os diabinhos do seu descontentamento ainda deitaram a cabeça de fora, tentando explorar a pouca fé que lhe restava na espécie humana, lembrando-lhe a notícia sobre os detritos perigosos que alguém, com certeza com as mãos muito bem untadas, andava a depositar na Serra dos Candeeiros. Mas Inês estava a entrar no seu território, e ali era-lhe relativamente fácil resistir a negativismos. Continuou a subir, sentindo-se cada vez mais ligada à paisagem.
Quando chegou ao Picoto, o seu refúgio de eleição, trepou os rochedos e instalou-se no cume. À sua frente tinha a majestosa Estrela, o enorme gigante adormecido, e entre as duas serras espalhavam-se os promissores campos da Cova da Beira, iludidos durante décadas com a promessa de um regadio que já usava bengala carunchosa. Assomando dos lados de Belmonte, vindo duma Estrela generosa em recursos hídricos, o Zêzere era um arremedo do rio cheio de vida de há uma trintena. Vítima de uma mistura explosiva - ignorância, incompetência e ganância - em poucos anos transformara-se num rio moribundo, suscitando nas populações ribeirinhas a nostalgia dos refrescantes banhos estivais e de frutuosas pescarias que patrocinavam animadas tertúlias. Reparou, sem surpresa, que o casario entre o Fundão e a Covilhã era cada vez mais intenso, trazendo à liça da memória as previsões daqueles que auguram, a médio prazo, a formação de uma pequena metrópole.
Inês recostou-se sobre um grande bloco de granito e deixou-se invadir pela quietude do local. Quando ali estava os pequenos dramas da sua vida relativizavam-se, como se tudo fosse ínfimo perante a transcendência da vida. Acabara há pouco tempo a relação com o Fernando, e precisava de oxigenar o cérebro. O antigo companheiro, que tanto prometera nos tempos de enamoramento, fora uma desilusão. No final, quando tudo se resumia a nada, Fernando refugiara-se no sofá da sala, base da sua central de zapping. Pôr-lhe as malas à porta, mais que o corolário de uma relação falhada, fora o sinal de que continuava a lutar contra a resignação, que não desistia de encontrar o seu lugar no mundo.
O espírito do local invadia agora Inês na sua plenitude. Deixou que a alma absorvesse aquela amálgama de tranquilidade, sentindo um equilíbrio interior que a fazia estar de bem com o mundo, e deixou que a noção de tempo se fosse esvaindo, a pouco e pouco, até desaparecer por completo.
Enquanto descia, liberta dos seus diabinhos, foi enchendo a pequena mochila de castanhas. Juntamente com uma boa jeropiga, seriam um excelente pretexto para, ao serão, juntar meia dúzia de amigos. A felicidade, estava cada vez mais convicta disso, também passa pelo usufruto dos pequenos prazeres da vida.
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reedição
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sábado, 19 de novembro de 2011

AMARRAS

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Serra do Gerês - Subida no nevoeiro (desconheço o autor)
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Pegas na revista, máquina sedutora premiada na venda de paisagens a sorriso. Entras, pagas, sais, durante uns dias fazes por sentir que desbravas novos horizontes. Tentas prolongar o efeito, esperando dos que te ouvem, na ressaca, um assentimento tácito, mas nem tens tempo de entender o bocejo. O relógio, implacável no garante da manutenção do edifício, emite o sinal de sempre. Transpiras ao som de música repetitiva, monocórdica, o teu passaporte para a próxima montra de evasão. Dormes, corres, comes, os ponteiros são o teu guia. E a promessa do sorriso, à distância de um ano, é almofada onde adormeces os anseios de que já mal te lembras. Dormes, corres, comes. Dás graças por te sentires a salvo na margem certificada e agradeces. Nem por um momento te ocorre rasgar as amarras e ousar arriscar a subida no nevoeiro. Nunca saberás que as mais belas flores se forjam na luta contra o medo.
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sábado, 12 de novembro de 2011

A GARGALHADA DO MELRO-AZUL

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José Pio, Serra da Gardunha
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Nas encostas da Gardunha as folhas vão-se despedindo, lentamente, dos carvalhos e dos castanheiros, atapetando os passos em busca da linguagem do silêncio. Piso-as, agora mais expostas que nunca, quase com receio de as magoar na sua dignidade final. Mas tudo parece tranquilo no seu destino, até o ruído do esmagar das folhas aparenta fazer parte da harmonia envolvente, um quase agradecimento pelo acelerar da passagem a matéria orgânica que sustentará outros crescimentos. A grandeza adormecida das penedias da Estrela, mesmo em frente, é testemunha tranquila do equilíbrio das coisas. A natureza, porém, é livro sempre aberto, lembrando-nos constantemente que tudo é efémero. Não muito longe, a aconselhar prudência, sente-se o fossar dum javali, e a tensão do perigo altera as tonalidades do silêncio. A sensação do todo, aliada da quietude da alma, esvai-se no instinto de sobrevivência, e o bom senso aconselha a retirada. Do alto de um pinheiro, em nota de epílogo, irrompe a presença dum melro-azul, em canto com sabor a gargalhada.
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sábado, 5 de novembro de 2011

MEMÓRIAS DA CHUVA

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Dizes-me que a vida não tem sempre o mesmo tiquetaquear, embora se decore, por vezes, de lembranças e memórias. Apenas às vezes, salientas, pois ela não se circunscreve ao olhar saudoso de alguém sentado num rochedo debruçado sobre o mar. As memórias ajudam, mas como porto de abrigo de afectos desencontrados, nunca como cemitério de ilusões perdidas. Afinal, rematas, o despertar de uma flor, principalmente em local adverso, não abre as mais ínfimas portas da esperança?
A esperança tece-se de muitas formas, replico, e nenhuma é melhor que a outra. Sabes, só aspira à esperança quem vê o horizonte sombrio e não se conforma. Por vezes até os pássaros parecem ter esquecido o seu cantar, mas isso só acontece quando apenas nos concentramos no nosso lamento.
Gostas da chuva a cair-te no rosto, não gostas?, concluis, em sorriso esmeralda.
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sábado, 29 de outubro de 2011

NUVENS - II

.Margarida Cepêda, Pedestal de Solidão e Luz
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Sim, eu sei quanto é reconfortante a ideia do alastrar da terra segura enquanto complemento às nuvens. Nestas navegamos com o sonho por lastro, nela plantamos as conquistas resultantes do enfrentar dos medos.
Precisamos de nuvens, precisamos de terra. Sem amarras nem fronteiras. Então, com as pontes da solidão a tiracolo, talvez o cavalgar das nuvens seja o mais nobre dos destinos.
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sábado, 22 de outubro de 2011

ETERNA CONSTRUÇÃO

.Hélio Cunha, As diversas formas da matéria
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As tuas palavras ganham vida em contornos, esboços de abraço em construção poética, música forjada em nuvens imunes ao ruído. O choro é, em simultâneo, sal e mel, a solidão tem a dualidade fotográfica do positivo negativo. Mas não te basta, não nos basta, queremos respirar por inteiro. Rebobinamos memórias, recordamos babel, o labor da formiga, a beleza fria da estátua. E, dentro da incerteza, uma convicção é possível: queremos calor, queremos horizontes sem muros.
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QUINTAL DA SAUDADE

.Hélio Cunha, Bodas de Sombra
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Uma nova arrumação das palavras, após sugestão da Isabel Fidalgo, do Frutos de Mim e Mar.
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Há sol
muito sol
mas os olhares
teimam em fixar-se
na sombra.
Respiram-se memórias
algumas delas bolorentas
mas não se descobre
o segredo da seiva renovadora.
O meu país
é um sonho permanentemente adiado
tecido em oportunidades perdidas
consumidas em balofas vaidades.
Há sol
muito sol
mas a tristeza
mora no coração das pessoas.
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O meu país teima em ser o quintal da saudade
embalado em lendas de manhãs de nevoeiro.
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sábado, 15 de outubro de 2011

MURMÚRIOS

.Paul Klee, Jardim de rosas
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Chamei-te. Queria partilhar contigo o voo das borboletas. Cansado de esperar que viesses, segui o rumo alado, efémera quimera de fim de tarde. No regresso, já feito lua, senti o perfume das rosas que levava ao teu quintal. Foi então que percebi a promessa do teu voo, enquanto murmuravas as palavras que encantavam a noite.
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Reedição
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sábado, 8 de outubro de 2011

ACERCA DA CUMPLICIDADE

.Hélio Cunha, Illuminata
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Questionam-te acerca da partilha, e tu sabes qual a resposta a dar. Afinal, pormaior inatacável, tens o sustentáculo da leitura dos clássicos, é-te fácil encantar a plateia. Mas não basta. Os clássicos fornecem-te pistas, testemunhos, mas há algo que, para fazer parte do teu edifício, terás que ser tu a trilhar, a descobrir a química apropriada. Olho-te nos olhos e sinto que não te libertas para lá das palavras. Falta-te a chama, o brilho da convicção profunda. E essa só é possível nos andarilhos, naqueles que ousam partir em busca das suas convicções. Muitas vezes, é certo, elas esfumam-se nas pedras do caminho, mas se souberes de que matéria é tecida a coragem irás descobrir que a reformulação é condição dos humildes. Talvez seja, vá lá saber-se, a altura em que descubras que o equilíbrio é sempre coisa ínfima e que, quanto mais souberes, mais estreito ele se torna. Mas a partir daqui já estás noutro patamar. E, apesar de nalguns momentos se insinuar o fel, cada cumplicidade que conseguires almejar terá o sabor da terra do leite e do mel.
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sábado, 1 de outubro de 2011

ECLIPSE

.Hélio Cunha, Eclipse
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Sente-se a inquietação que devasta o respirar de vales e montanhas, perturbando buscas de equilíbrio há muito escritas no livro dos assentos. Socorro-me das memórias do vento, e este sopra-me, como se houvesse forma definitiva, que a verdade vem sempre à tona d'água. Revisitam-me as histórias de serão, onde se cultivava o respeito pelas eólicas barbas brancas, mas as águas são mais de mil, tornando labiríntico o canto da conformidade. Na ágora, cujo respirar ecoa muito para lá das colinas, vigora a apreensão. Sentem-se movimentos de barata tonta, incapazes de lidar com a desdita, mas há quem, munido de sete chaves, aproveite para aprovisionar o bunker. Adivinha-se o apelo da rua, legítimo fôlego dos despojados. Implodido o pombal, mais não resta à pomba que enfrentar as garras do gavião e redescobrir-se em permanente partilha.
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sábado, 24 de setembro de 2011

JANELAS DO TEU RESPIRAR

.Margarida Cepêda, A criação de Eva
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Há linguagens que vão para lá da agitação do vale, que requerem o recato das plantas raras. É assim, como se folheasse pela primeira vez o livro dos segredos, que ouso descodificar o teu respirar, que tento perceber a mais leve alteração na sua cadência.
Dizes-me que todo o equilíbrio é tecido em ténue fio, que é ínfima a distância entre o riso e o choro. E, de olhos nos olhos, ofereces-me uma flor.
O meu desassossego aquieta-se, anulam-se as mil formas de subir e descer montanhas. Talvez seja por isso que, por momentos, a tua respiração se cale, abrindo janelas à ternura partilhada.
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sábado, 17 de setembro de 2011

ESBOÇO

.Hélio Cunha, Hécate
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Das aves aprendi serem sabedoras do seu percurso, lúcidas viajantes avessas ao brilho do néon. Delas também sei das pausas, dos raros momentos em que deixam rasto das ilhas que sobrevoam. Foi assim, num fim de tarde, que me chegaram novas da almoeda das tuas lágrimas, cansadas que estavam de corcéis sem rumo e alheios à linguagem do vento e das marés.
Partiram as aves, ficou o esboço da tua escultura. Mas ainda sem vida, sem o sal das tuas lágrimas.
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sábado, 10 de setembro de 2011

CLAREIRAS

.Hélio Cunha, Em direcção à claridade
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Ontem falaste-me de luzes, de pequenas manifestações avessas ao comum dos dias. Os teus olhos acentuavam o brilho à medida que falavas em clareiras naturais, portais de entrada em realidades que se acentuam à medida da rejeição do olhar descrito nos manuais.
Tentei seguir-te, pois sei que há muito enveredaste por trilhos já empoeirados na memória dos outros, mas que em ti têm cada vez mais a alvura do linho e a limpidez das águas. Optaste pela solidão em detrimento da cegueira, mas uma solidão selectiva, tecida em cumplicidades raras.
Ontem falaste-me de luzes e eu acreditei. Sem te dares conta, há um discreto brilho que emana da simplicidade dos teus gestos.
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sábado, 3 de setembro de 2011

TRÉGUA

.Imagem tirada da net
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Durante a noite a chuva tocou acordes sem rédeas, impelindo a manhã a abrigar sinfonias urdidas na química da terra.
Sentes o apelo e não resistes. Imbuída em tão único momento, abres as janelas e deixas que a inquietude se evapore, a pouco e pouco, na barrela de cheiros e aromas. É uma simples trégua, tu sabes, talvez por isso a sintas com tanta intensidade.
Deliciada com o manjar inesperado, desta vez a cotovia não cantou...

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sábado, 27 de agosto de 2011

ACERCA DO VINHO DA VIAGEM

.Pintura de Margarida Cepêda
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Estás a ver aquele besouro, com uma enorme bola de argila, a subir uma acentuada rampa granítica? A massa que transporta é excessiva para a inclinação e, por mais que se esforce, a bola acaba por vir fraguedo abaixo. Repara, ele não desiste. E, sempre na posse do seu pecúlio, ei-lo a tentar de novo, repetindo a empreitada até à exaustão.
No labor do sisífico besouro me revejo, retrato de inquietudes em constante demanda. Sabes, a honra é nunca desistir, por inultrapassável que seja o muro que se nos depare. Mas há algo que dele nos diferencia, e que atenua a dureza da viagem: o bálsamo do calor das nossas mãos.
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quinta-feira, 18 de agosto de 2011

CRÓNICA ESTIVAL

.Fotografia de Jorge Soares
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As costas do areal eram largas, sustentando milhares de formiguinhas que substituíam a canga de todo o ano com uma tagarelice displicente, mas sempre de olho no vizinho do chapéu do lado. Nem a forte luz do sol conseguia ser aliada do lugar, pois poucos eram os que se atemorizavam com tal fragor. Férias eram férias, programadas ao mais ínfimo cêntimo na relação custo preço das etiquetas dos fatos de banho. E cada minuto de sol entrava na contabilidade.
A mulher descabelada parecia alheia a toda a azáfama do formigueiro. A aparente indiferença era tal que não se preocupava em esconder que tinha apenas um seio. A sua preocupação virava-se apenas para os dois filhos, que orientava como se tudo dependesse dela. E dependia. A natureza às vezes tem destes caprichos, como que a testar a nossa crença na vida, e a deficiência óbvia dos rapazes tornava-os totalmente dependentes do desvelo da mãe, ela mesma uma prova viva dos desfavores do destino. Duas vezes por dia, a horas certas, levava-os a refrescar nas águas mansas do oceano. E a mulher-sem-cabelo-e-de-um-peito-só e os dois filhos lá iam, disciplinados, transportando consigo uma dignidade só ao alcance dos que não se resignam com os caprichos do infortúnio.
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As gaivotas já não são como eram. Habituaram-se à invasão do estio e, quando regressam à praia ao fim da tarde, já não se mantêm à distância, como que a dizer aos bípedes invasores que está na hora de deixarem o areal aos seus legítimos moradores. Uma mulher solitária mete a mão num saco e atira-lhes comida como quem deita milho aos pombos, e elas não se fazem rogadas. Mas é caso único. A maioria, invertendo os papéis, sente-as como invasoras, e um ou outro, vestindo o uniforme corporativo, tenta afugentá-las, mas o máximo que consegue é um curto voo. E elas acabam por vencer.
A mulher-sem-cabelo-e-de-um-peito-só já não está na praia. Mas, se estivesse, gosto de pensar que as gaivotas abririam alas à sua passagem.
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sábado, 30 de julho de 2011

NUVENS

.Imagem tirada da Net
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Por que insistes em falar de ventos contrários? Por que te refugias no tanger da viola?
Sim, eu sei que as nuvens podem surgir a qualquer momento, mas, se reparares, elas podem ter várias formas. Nem sempre são as que mais gostas, eu sei, mas não queiras ter a veleidade de as domares. Elas são apenas sinal da diversidade das coisas, do muito que nos ultrapassa, e se as quiseres cavalgar tens primeiro que as olhar, sentir, perceber...
Sabes, uma nuvem nunca é um fim, é simples sinal da nossa inquietação.
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sábado, 23 de julho de 2011

ADEUS

.Domicílio Ferreira, Equilíbrio e Harmonia
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Há aves que têm a capacidade, forjada no enfrentar de ventos contrários, de ir burilando o seu voo e chegar muito próximo da perfeição. E fazem-no com tal suavidade que acabam por fomentar, à sua volta, um equilíbrio propício ao desabrochar da harmonia.
Mas o tempo, esse paciente escultor, traz sempre consigo o último e incontornável dos obstáculos, o tal que não é possível vencer: a morte.
Uma destas aves encetou, por estes dias, o voo final, cumprindo a derradeira prova de olhos nos olhos com a inevitabilidade. Fica o seu legado.
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Brotaste num meio
Muralhado
Em amordaçada verdade
Preconceito angular
Petrificado
No deixar arrastar
A máscula vontade.
As voltas que deste
Ao ícone cinzelado!
Com riso gaiato
Bordado com muito tacto
Apanhaste a linha solta
Chave da reviravolta
E contrariaste
O fado traçado.
Forjaste o teu destino
Amparada na visão
Indestrutível
Do equilíbrio da vida
(Na chegada e na partida)
Reforçado
Na prática sentida
De saber dar a mão
Em busca da solução
(Solidária desmedida).
Esculpiste as crias
Acto inventor
Tela de projecção
Permanente
Do afecto partilhado
Em respeito definido
E com risos temperado
Futuro bem delineado
Do fruto amadurecido.
Olhavas para o mundo
Eterna paixão de viver
Todos os dias sentida
Equilíbrio permanente
Nos eleitos residente
Menina para toda a vida!
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sábado, 16 de julho de 2011

O DESPERTAR DAS PALAVRAS

.Pormenor de tela de Margarida Cepêda
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Pudesse o poeta aquietar alguns ventos, amainar certas marés, e talvez o constante desassossego encontrasse vazão para o seu eco. Mas os ventos e as marés não o ouvem, apenas o encantam.
De quando em vez, apiedados do pobre aprendiz de feiticeiro, sopram-lhe ao ouvido que há coisas que não são da sua condição mudar, apenas sentir e tentar entender. É quando as palavras se insinuam, ganham vida, e o poeta as devolve ao vento, na esperança de chegarem ao lugar mais profundo do vale...
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sexta-feira, 8 de julho de 2011

O RESPIRAR DAS PALAVRAS

.Margarida Cepêda, Observando para lá de cá
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As letras, qual labirinto, apontam mapas sem fim, enquanto os olhos se perdem nas nuvens em busca de sinais que seduzam a inquietação.
Teimas, para lá do rugido das águas, em dissecar as palavras, uma por uma, como se em busca da textura perdida da ternura que amacia a respiração da pele.
Na cumplicidade das ilhas vais descobrindo o sentido do suor das letras, da sua respiração. E, quase sem te dares conta, as palavras começam a dançar...
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sábado, 2 de julho de 2011

ACERCA DO APLAUSO

.Hélio Cunha, Reflexo da Indecisão
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Tu tentas, mas o mundo não te sorri, não recompensa o teu esforço. E, quanto mais te empenhas em prol do aplauso, do tributo alheio, mais as sombras inundam o teu varal.
Sabes, por mais aplicada que sejas, talvez o rumo não seja seguir, sem questionar, o rasto do bando. Tu não tens, em primeira instância, que agradar aos outros, mas sim a ti mesma. As palmas, se as houver, vêm por acréscimo.
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sábado, 25 de junho de 2011

QUANDO A VONTADE SE INSINUA À TONA D'ÁGUA

.Hélio Cunha, A Porta do Infinito
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Quero despir-me destas roupas, desta opressão, sentir de novo a leveza do cavalgar das nuvens.
Houve um tempo em que os aromas me beijavam logo pela manhã, tecidos em leveza e envolvência, e acompanhavam-me em risos despreocupados forjados na arquitectura do coração.
Quero resgatar as memórias, reencontrar algures o tempo perdido.
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sábado, 18 de junho de 2011

FLOR

.Hélio Cunha, O Abismo do Paraíso.
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Era no tempo da intensidade dos dias, quando o alegre murmurar do regato abafava a teia do asfalto. Bebia ocasos e madrugadas a olhar as aves, a senti-las, a entender a sua bússola.
A inquietude não se desfazia, nunca se desfez. Aprendi a sentir-lhe a respiração, a conhecer-lhe as manhas, a rir-me com ela. Mas há apelos que nunca se aquietam. E parti.
Quando me despedi, num vislumbre, atiraste-me uma flor.
Ainda hoje lhe sinto o aroma.
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domingo, 12 de junho de 2011

O LADO NEGRO DA LUA

.Hélio Cunha, A Lua do Caçador
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Ouves?, nunca a voz do cuco se insinuou como agora. Diz que a divisão do pão está ameaçada, que a culpa é exclusivamente nossa. Que cantamos de mais, choramos de mais, amamos de mais.
Estava ele no sádico prazer de pôr ovo em ninho alheio quando umas vozes, vindas não se sabe de onde e enquadradas em raios e trovões, lhe gritaram ao ouvido que, se quisermos a ração diária, teremos que ser soldados obedientes, frugais, dar sempre o máximo, beijar a mão de quem nos propicia tal bem. Pois não é verdade que, acossada pelos abutres, há sempre uma multidão desejosa de ocupar o lugar do soldado caído por exaustão?
Os pardais riem-se, pois são imunes a fronteiras e convenções, mas a maioria das espécies prepara-se para o dobrar da cerviz.
A águia altaneira, pugnando pela dignidade, voa para cada vez mais longe. Em breve estará extinta.
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sábado, 4 de junho de 2011

GOSTO

.Pintura de Margarida Cepêda
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Gosto, mas, acredita, às vezes nem sei porque gosto.
Olho para os teus gestos e vejo-te em contínua peregrinação. Ia a dizer que se fosse forjada em olhar interior era acto que requeria um profundo fôlego, mas as aves não voam dessa forma, limitam-se a seguir o rumo natural das coisas.
Navegas assim, à bolina, sem preocupação com a cor das nuvens. Delas absorves o melhor, encontras sempre razões para suspiros de admiração e apaziguamento. E cantas.
Sabes, gosto de ti porque gosto. Isso basta-me.
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sábado, 28 de maio de 2011

O SABOR DAS COISAS

.Imagem tirada da Net
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A vida é percurso imprevisível, nunca se sabe o que está para lá da próxima curva. Planificar e organizar ajuda muito, mas não basta. Há sempre factores que nos ultrapassam e que, quando se manifestam, têm o condão de nos recordar as nossas imensas limitações.
Sinto, de há muito, que o contacto com a natureza nos devolve ao nosso verdadeiro lugar. O despontar de uma semente é fragilidade sempre presente, pois requer equilíbrios forjados em mil incertezas, mas o milagre da vida acaba sempre por prevalecer. É isso que, pacientemente, vou observando na horta que cultivo no meu pouco tempo livre. E, quando os legumes chegam à mesa, a harmonia das coisas certas irrompe quase sem darmos conta.
Ontem, entre Estrela e Gardunha, o céu resolveu manifestar-se com estrondo. No final do dia, por entre raios, relâmpagos e granizo, uma chuva intensíssima desabou sobre a horta, menina dos meus olhos, e fustigou-a violentamente. Em poucos minutos o terreno ficou completamente alagado, enquanto o granizo não parava de chicotear as frágeis plantas: tomateiros, alfaces, couves, cebolas, alho francês, beringelas, abóboras, espinafres, pimentos, salsa...
Após a intempérie, o cenário era desolador. A horta, até aqui espaço de reencontro após actividade intensa no mundo lá fora - o tal, pleno de paradoxos, mas que vai garantindo a sobrevivência - transfigurara-se em cenário de quase pesadelo: os regos desapareceram com a erosão da água; muitas plantas partidas, outras dobradas; fruta, ainda em formação, espalhada pelo chão...
Hoje, pela manhã, ao analisar os estragos, a primeira sensação foi de impotência. Mas, lentamente, o espírito das coisas começou a falar mais alto. Apanharam-se as plantas partidas, estacaram-se outras, refizeram-se os regos.
A minha horta não está como estava, mas vai sobreviver. E, chegada a hora de se apresentar na mesa, o sabor vai, com toda a certeza, ser diferente para melhor. Porque forjado na adversidade.
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sábado, 21 de maio de 2011

AVE DE EXTENSAS PLUMAS

.Hélio Cunha, A Menina Atómica
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No início, quando a expectativa se desenhava em cores palpáveis, a espada era aceitável na paisagem.
Mas o olhar cultiva-se na química do coração e da alma, avesso ao cercear de outras respirações. E novas tonalidades, quase indecifráveis, começaram a reformular o rumo...
Acalentado em naturais aromas e cantos, abri as portas do pouco que sei, do pouco que tenho. A vida, matéria frágil e delicada, alimenta-se da partilha para sustentar equilíbrios, por ténues que sejam. E esse cenário abarca o riso e o choro, o canto e o desespero. Mas não a altivez.
És sagaz, hábil contorcionista, mas não estás preparada para transitar por casas sem porta. O universo, na sua grandeza, é intransigente no banho de humildade.
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sábado, 14 de maio de 2011

MOMENTO

.Hélio Cunha, Anjos e amantes
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Entraste quando ainda digeria palavras sobre a transparência das águas. Esbocei um sorriso, uma convicção, mas os teus olhos diziam-me que não querias ouvir. Apenas sentir.
Recebi-te, recebeste-me. O conceito de transparência das águas mudou de tonalidade.
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sábado, 7 de maio de 2011

DÉDALO

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Margarida Cepêda, O fio de Ariadne
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Há no exercício da escrita algo que te aquieta, te redime. As palavras, a princípio contraídas, vão-se libertando à medida que resolves o enigma do jogo de espelhos. E, qual milagre animado, cada uma parece ganhar vida própria dentro do todo. Um todo circunscrito, é certo, mas ainda assim um todo. Embora ínfimo. Sentes-te bem, a inquietação apaziguou-se. Mas a perversidade do labirinto apenas se esbateu. Amanhã, quando olhares o horizonte, vais voltar a sentir estreiteza na encruzilhada dos rumos.
Gostaria de te dizer que olhasses para as rosas, que absorvesses a arquitectura dos plátanos, mas a tua obsessão não me ouve. Precisas ser tu a descobrir.
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sábado, 30 de abril de 2011

PARA LÁ DAS BRUMAS

.Hélio Cunha, A Ilha
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Sinto que me ouves, que entendes a obsessão pela transparência das águas.
A terra queimada, enfeitada em acordes ruidosos, é propícia à cegueira. Sente-se a agitação da turba, clamando por eructação e riso, e até o artesão se recolhe na tigela da sobrevivência. A dor da dilaceração dos seixos ultrapassa as fronteiras da física, todo o sentir da alma é chaga em carne viva.
As palavras, por mais acertadas, não encontram eco, e poucos são os que ousam arrastar-se para lá do pesadelo. Só os pássaros, na angústia da construção do ninho, parecem pressentir as brumas dos novos tempos.
A história repete-se. Uma ilha embrião, o cuidar das feridas, o renascer duma ideia. Ainda que, por enquanto, em banho-maria.
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terça-feira, 26 de abril de 2011

RIO SEM FOZ

.Hélio Cunha, Estranha Melodia
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Procuras, na penumbra, indícios das minhas mãos, mas a água do meu rio corre em múltiplas direcções. A ânsia de tudo querer absorver há muito ficou para trás, e há na sua inquietude uma espécie de serenidade, pois sabe da importância do verdadeiro nome das coisas. É por isso que no meu silêncio há sempre vestígios de aromas silvestres e do canto dos pássaros.
Tu, que queres entender, diz-me: haverá maneira de encontrar um rio sem foz?
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sexta-feira, 22 de abril de 2011

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Após amável convite da Suzana Martins, hoje poderão encontrar-me no
Entre Marés
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A vossa presença será bem-vinda.
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quarta-feira, 20 de abril de 2011

ASAS

.Margarida Cepêda, Sobre o rigor da geometria, o véu diáfano da fantasia
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Quando chegava o verão
Sentavas-te
À tardinha
Debaixo da figueira
Onde a brisa
Suave
Anunciava
O rumor das cotovias
Então pegavas
Delicada
Na minha mão
E contavas
Baixinho
Era uma vez um potrinho
Que adormecia
Feliz
A ouvir
As histórias do vento...
Sentia-te perto
E o tempo
Adormecido
No cantar do ribeiro
Parava
Enlevado
Para nos ver
Assim eram os dias
No tranquilo paraíso
Em que desenhavas
Minuciosa
O crescer das minhas asas
E eu sentia
Maravilhado
O vigor do teu voar.
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Reedição
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sexta-feira, 15 de abril de 2011

BANDEIRAS

.Margarida Cepêda, A bela e o bélico
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A procura de ti leva-te a múltiplos devaneios, que enfeitas com cores capazes de seduzir outras ilhas. É esse o instinto primeiro. Mas, dissimulado no brilho efémero, o abismo espreita. De tão preocupada com os outros, esqueces que o que de mais precioso tem a nudez interior é para ser sentido, não para ser usado como bandeira. As bandeiras íntimas insinuam-se por si, não se manipulam.
Sabes, os guerreiros tanto chegam como partem. Que se saiba, ainda não foi descortinado o horizonte que sacie a sua sede. Talvez, no mais fundo deles, apenas aspirem à cumplicidade para o calcorrear do caminho. O verdadeiro guerreiro não te olha como um final de jornada, mas como um igual capaz de partilhar o riso e o desassossego.
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sábado, 9 de abril de 2011

À PORTA DO REINO DOS AFECTOS

.Margarida Cepêda, À porta do reino dos afectos
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Estavas numa encruzilhada. Sabias há muito que o brilho das pedras tinha seduzido os homens, e que a fealdade que irradiava da sua posse não augurava horizontes agregadores. Não era esse o cenário que sonhavas.
A harmonia era possível, sim, mas não bastava a vontade dos afectos. O mundo onde querias depositar o melhor do teu respirar não era um microcosmo, requeria envolvência plena: que as ilhas tomassem consciência das outras ilhas, que o aroma das flores fosse partilha colectiva. Só assim o teu vinho mais íntimo revelaria o melhor de si.
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sábado, 2 de abril de 2011

AREIA

.Margarida Cepêda, Enfrentando-se
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Sinto a tua inquietação, a ânsia de domares as sombras que perturbam os teus dias.
Quando desponta a aurora, pegas no melhor de ti e vais ao encontro do marulhar das ondas, ritual primevo do decifrar da essência apaziguadora. É a hora de te despires, de enfrentares a tua efemeridade.
Quando começas a entender o voo das gaivotas, há sempre algo que as impele para longe. É grande a tua sede de infinito, perpetuação do teu desassossego, mas não te basta entender, tu queres o poder do voo. E, sem te dares conta, apesar de mais forte, ficas cada vez mais só.
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sábado, 26 de março de 2011

O CALOR DAS MÃOS

.António Tapadinhas, Azul, azul
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Desligam-se as amarras do convencional, passo irreversível para o vislumbre da arquitectura do entendimento.
O confronto com a nudez, em paisagens pouco definidas, resgata o choro umbilical. O olhar vai-se fixando em minúsculas crateras, pequenos vales, grutas dispersas, instantâneos orientados em convergência disforme. A visão começa a construir referências, integrando os ventos num campo cada vez mais nítido. A pouco e pouco insinua-se a textura do barro, e o choro mistura-se com o riso. Aumenta a dimensão do olhar. A percepção do barro amaina o vento, mas não faz desaparecer a inquietude. São tantas as estrelas perante um pedaço de argila...!
É então que se sente o desabrochar da flor, rompendo a ténue fronteira da solidão. As estrelas continuam longe, mas há um calor novo que renova o sentido das coisas. O calor das tuas mãos.
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domingo, 20 de março de 2011

ESPERA

.Hélio Cunha, Movimentos de um visionário
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Pudera eu amainar as tuas inquietações, vesti-las com as cores mais sublimes e tranquilizadoras. Mas, sabes, eu não posso percorrer o caminho por ti e oferecer-to numa bandeja. A convicção, na sua aparente disponibilidade, requer olhares plenos e pegadas profundas.
As flores, em apelo mudo, gritam aos quatro ventos a simplicidade dos aromas, mas apenas as sandálias do artesão parecem estar em harmonia com a mensagem.
Espero, mas não desespero. Por aqui há muito que as mimosas estão em flor.
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segunda-feira, 14 de março de 2011

SOBREVIVÊNCIAS

.Margarida Cepêda, As nossas teias
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Os tempos não iam para grandes assomos de liberdade.
O trabalho no terreno, verdadeiro sustentáculo de todo o edifício, gemia até mais não com a carga opressora. A cúpula, por seu lado, nunca se dava por satisfeita, enfeitiçada que estava na análise dos gráficos. E, na lógica do gabinete, mais um ponto percentual não custava nada. Todos sentiam o cheiro do medo, e as chefias intermédias, entaladas que estavam entre o coração e a razão, tentavam encontrar pé no mar da sobrevivência.
O Teles, chegado há pouco a um cargo de chefia - na verdade não mandava nada, era apenas um mero transmissor - começou por sentir cócegas no ego aquando da sua nomeação. Mas em breve o sorriso deu lugar à angústia quando se apercebeu do seu verdadeiro papel.
O tempo, contudo, faz milagres. E o Teles, qual ovo de Colombo, julgou encontrar a solução para anular a sua estreiteza. Forjou um projecto que agradasse às instâncias superiores e, em simultâneo, piscasse o olho às bases.
A cúpula, sorridente, bateu-lhe nas costas como quem elogia um menino. As bases, porém, já há muito tinham perdido a vontade de sorrir. O Teles era apenas mais um que tinha vendido a alma ao diabo.
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segunda-feira, 7 de março de 2011

BRISA

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.Margarida Cepêda, Prescrutando
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Princípio da noite. As primeiras estrelas, holograma de outros lugares, encenam o convite à transcendência. A lua, quarto crescente de lendas encantadas, é farol da veia poética, despertar de sentidos adormecidos. Tudo muito curvilíneo, muito sensual, o universo a conspirar no feminino. E a alma, carente de novos desbravares, acede ao desafio, embarcando em percursos de descoberta, no revolver das partículas onde assenta o livro da vida.
Uma brisa leve, um arrepio, uma ausência sentida.
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domingo, 6 de março de 2011

(DESAS)SOSSEGADAMENTE

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Os devaneios eram múltiplos, mas faltava-lhes o essencial, circunscritos que eram à margem de segurança. E parecia tudo tão bem delineado, tão bem colorido, que ficava admirada quando, ao fim da tarde, as promessas do horizonte não vinham ao seu encontro, bem deitada que estava na sua espreguiçadeira. E desacreditava. Mas esse era um estado de espírito fácil de sustentar. Sempre bem instalada, pegava no Livro do Desassossego e começava a folhear. Encontrava ali matéria abundante para, com um encolher de ombros, justificar que a linha do horizonte era um mito.
O poeta, convenhamos, merecia melhores leitores.
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domingo, 27 de fevereiro de 2011

TECLADO

.Pintura de Margarida Cepêda
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Olho o horizonte para respirar e, por norma, apenas sinto o vibrar dalgumas teclas do teclado.
Mas algo muda quando me chegam as tuas palavras. Sente-se uma música no ar, inventam-se novos aromas. E o teclado redescobre-se, dando vida às teclas adormecidas.
É então que se insinua a sinfonia, a hora de descobrir que todas as teclas são necessárias para se soltar a orquestra.
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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

PAUSA

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O cansaço já se insinua há muito, mas fui protelando, até porque o gosto pela blogosfera é real. Mas cheguei a um ponto em que se tornou impossível conciliar esse gosto com uma actividade profissional intensíssima. E a solução é parar.
É provável que vá publicando um ou outro texto, mas, até nova avaliação da situação, as visitas aos blogues amigos irão ressentir-se. Para meu lamento, pois quem fica a perder sou eu.
Espero que compreendam. Até já.
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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A MULHER QUE GOSTAVA DE LIVROS

.Pablo Picasso, Meninas lendo
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Nascera em época de míngua, e isso moldara-lhe o ânimo.
Nunca tivera muita paciência para aturar as conversas das colegas, tinha mais que fazer que estar a falar da vida alheia. Gostava de sair, ai se gostava, mas as suas debandadas cingiam-se às compras do dia a dia. Para além disso satisfazia-se com uma passagem rápida pela pastelaria, onde uma bica bem quentinha lhe reforçava o ânimo. Às vezes concedia dois dedos de conversa à D. Fátima, que lhe contava as últimas novidades, e ala para casa, que a vida não se arranja no paleio.
Dentro de paredes era Maria quem fazia e desfazia, e o marido há muito se resignara a tal facto. Conhecia bem a determinação e a energia da mulher, e não adiantava lutar contra tais armas. No fundo admirava aquela força da natureza, que delineava o contorno das suas vidas de forma implacável.
Os filhos conheciam-lhe bem a voz de comando, e foi-os instruindo no caminho do trabalho e do esforço. O percurso deles foi-lhe mostrando que tinha razão.
Do dinheiro do orçamento familiar, rigorosamente gerido, apenas se lhe conhecia uma extravagância: comprar um livro de vez em quando. Lia-o à noite, depois da lida da casa, e o marido nem sempre entendia aquela bizarria. Era a única altura do dia em que a via longe dali, como se a sua realidade controlada, por momentos, não existisse.
Mas os anos já iam pesando, apesar de continuar mexida e desembaraçada. Com os filhos em casa própria, começou a ter mais tempo para si, e a dar largas ao seu gosto pelos livros. Lia, lia muito...
O neto começou a frequentar a casa, adoçando-lhe os dias, fazendo cócegas àquela capa de austeridade. O companheiro, porém, via-lhe nos olhos uma espécie de insatisfação. Bem tentava sondar, mas um seco "não se passa nada" cortava toda e qualquer inquirição.
Uma manhã o marido saiu cedo. Maria, habituada ao seu rosto tranquilo e resignado, notou-lhe uma determinação pouco habitual, mas encolheu os ombros. Retomou a leitura de "Veneza", de Jan Morris, e não pensou mais no assunto.
Depois do almoço, após arrumar a cozinha, voltou para a sua leitura. Ajeitou a almofada, sentou-se, e esboçou o gesto maquinal de pegar no livro. Só então reparou no invólucro, com o logotipo de uma agência de viagens, deixado em cima da capa do livro. O marido olhava, num misto de apreensão e ansiedade. Mas, quando lhe viu o brilho de satisfação ao ler a palavra Veneza, percebeu que tinha acertado em cheio.
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reedição
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