domingo, 30 de janeiro de 2011

PARA LÁ DAS NUVENS

.Imagem tirada da net
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O caminho tinha demasiadas pedras soltas, mas o jipe dava garantias. Sempre com o nevoeiro por companhia, de tal forma cerrado que mal deixava perceber a rama dos pinheiros, a ascensão era feita com as devidas cautelas. Sabia de cor os sítios por onde passava, mas aquele cenário cingia-o à solidão do cego, tentando desenhar contornos no meio da penumbra. Havia apenas os mapas da intuição, ali nada mais contava. A certa altura, já próximo do cume, a luz começou a penetrar as trevas. A tensão diminuiu, dando lugar ao júbilo da luz no fundo do túnel. E um sorriso quente começou a amaciar as paredes do estômago. No cume, o sol esplendoroso é autêntica apoteose. O olhar, finalmente liberto, espraia-se em todas as direcções, e a sensação é a de estarmos numa ilha recôndita, acima das nuvens, qual Olimpo fora das preocupações terrenas. Os pequenos problemas diluem-se em nada, dando apenas lugar às grandes questões. Lá no alto, longe da pequenez da falta de horizontes, fica a sensação de que tudo se resume à envolvência do abraço...
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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

JANGADA

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.Margarida Cepêda, Morrer e renascer na grande câmara
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Socorro-me das palavras, companheiras de sempre, para dar cor aos percursos que me atormentam.
Desta vez, como se pressentissem os alvores da terra queimada, insistem no cinzento como pano de fundo, com o medo a querer assomar das profundezas da masmorra.
Insinuam-se desenfreados galopes na caixa negra do pesadelo colectivo, e é de tal forma a intensidade do eco que este cobre toda a terra, funcionando como toque a rebate para o despertar dos velhos feiticeiros.
Enquanto, por todo o lado, se afia o gume da espada, na margem do rio o pequeno Tito prepara a jangada para a demanda da palavra primitiva.
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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

VIOLETAS

.Imagem tirada da net
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Nunca é de mais reincidir
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Já era tarde, mãe
E a translação
Em relógio solar
Deixava sulcos
Calados e profundos
Na vontade
Do teu respirar.
Ainda falavas
Com entusiasmo
Da Maria menina e moça
Quando à tardinha
No fontanário
Em apelo de mulher
Trocava olhares
Dissimulados
Com o príncipe aldeão
E as violetas
Deslumbradas
Davam as mãos
Na elaboração do cenário
Que formalizava
As razões do coração.
O sol já se despedia
Para lá do monte
Mas ainda sentia
No teu olhar
O aroma das violetas
Que engalanou
Naquele fim de tarde
Com emoção e sem tino
O oráculo que descrevia
Num voar de cotovia
A luz do teu destino.
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sábado, 15 de janeiro de 2011

MESSAGE IN A BOTTLE

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.Aguarela de Fanny Vieira
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Ouço as palavras que desaguam de ti. Penetro no teu olhar, meço o alcance dos teus passos, recrio os percursos que desenhaste. Em vão. Os teus mapas têm uma química própria, única, e só tu poderás descobrir os caminhos que te levarão ao tesouro por descobrir. Na minha ilha, mais não posso fazer que lançar ao mar a mensagem numa garrafa.
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terça-feira, 11 de janeiro de 2011

KAFKIANDO

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Imagem tirada da Net
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Hoje a noite chegou de braço dado com a angústia. Trazia Kafka em contra mão, em busca do fio à meada num tratado de economia. Não houve metamorfose, pois o monstro há muito deitara a cabeça de fora, mas sentiam-se as garras da masmorra do castelo, em dimensão global. O negro da fome irrompia como cenário, mas o processo ainda estava incompleto. Na sombra, expectante, a besta esperava pelo seu momento, pronta a devorar qualquer resquício de sonho.
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Reedição
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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

FIM DE TARDE

.Margarida Cepêda, Pausa doirada
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A jornada tinha sido longa. O pó do caminho já bebera a cor dos pés, que imploravam por descanso, a cadência tornara-se mais lenta.
Quando cheguei ao alto da colina, as águas da ribeira, em baixo, insinuaram-se como merecida recompensa, e desci a encosta em sintonia com o prazer das coisas simples. Foi quando me chegou a tua voz, deliciada no apaziguar das águas, e o aroma a rosmaninho incendiou de fragrâncias aquele final de tarde...
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domingo, 2 de janeiro de 2011

SINAL

.Imagem tirada da net
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Aproximou-se, com ar de quem sabe o que está a fazer, e levantou a frágil tampa. Lá dentro, no meio dos detritos da abundância, uma ideia desprezada debatia-se, inconformada com a inevitabilidade dos tempos.
Pegou numa velha vassoura e varreu a zona contígua ao contentor, fazendo dele a estrela do beco. Sempre com ar convicto, apanhou uma placa, virou-a e escreveu algumas palavras. Depois de a colocar de modo a nela incidir a luz do candeeiro, afastou-se do local.
Quando os almeidas saltaram do camião para recolher o lixo, depararam com a placa onde, em letras gravadas a fogo, se podia ler: "AQUI AGONIZA O ESPÍRITO DE NATAL".
Naquela noite, no desconcertante beco, o lixo ficou por recolher.
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