sábado, 28 de maio de 2011

O SABOR DAS COISAS

.Imagem tirada da Net
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A vida é percurso imprevisível, nunca se sabe o que está para lá da próxima curva. Planificar e organizar ajuda muito, mas não basta. Há sempre factores que nos ultrapassam e que, quando se manifestam, têm o condão de nos recordar as nossas imensas limitações.
Sinto, de há muito, que o contacto com a natureza nos devolve ao nosso verdadeiro lugar. O despontar de uma semente é fragilidade sempre presente, pois requer equilíbrios forjados em mil incertezas, mas o milagre da vida acaba sempre por prevalecer. É isso que, pacientemente, vou observando na horta que cultivo no meu pouco tempo livre. E, quando os legumes chegam à mesa, a harmonia das coisas certas irrompe quase sem darmos conta.
Ontem, entre Estrela e Gardunha, o céu resolveu manifestar-se com estrondo. No final do dia, por entre raios, relâmpagos e granizo, uma chuva intensíssima desabou sobre a horta, menina dos meus olhos, e fustigou-a violentamente. Em poucos minutos o terreno ficou completamente alagado, enquanto o granizo não parava de chicotear as frágeis plantas: tomateiros, alfaces, couves, cebolas, alho francês, beringelas, abóboras, espinafres, pimentos, salsa...
Após a intempérie, o cenário era desolador. A horta, até aqui espaço de reencontro após actividade intensa no mundo lá fora - o tal, pleno de paradoxos, mas que vai garantindo a sobrevivência - transfigurara-se em cenário de quase pesadelo: os regos desapareceram com a erosão da água; muitas plantas partidas, outras dobradas; fruta, ainda em formação, espalhada pelo chão...
Hoje, pela manhã, ao analisar os estragos, a primeira sensação foi de impotência. Mas, lentamente, o espírito das coisas começou a falar mais alto. Apanharam-se as plantas partidas, estacaram-se outras, refizeram-se os regos.
A minha horta não está como estava, mas vai sobreviver. E, chegada a hora de se apresentar na mesa, o sabor vai, com toda a certeza, ser diferente para melhor. Porque forjado na adversidade.
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sábado, 21 de maio de 2011

AVE DE EXTENSAS PLUMAS

.Hélio Cunha, A Menina Atómica
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No início, quando a expectativa se desenhava em cores palpáveis, a espada era aceitável na paisagem.
Mas o olhar cultiva-se na química do coração e da alma, avesso ao cercear de outras respirações. E novas tonalidades, quase indecifráveis, começaram a reformular o rumo...
Acalentado em naturais aromas e cantos, abri as portas do pouco que sei, do pouco que tenho. A vida, matéria frágil e delicada, alimenta-se da partilha para sustentar equilíbrios, por ténues que sejam. E esse cenário abarca o riso e o choro, o canto e o desespero. Mas não a altivez.
És sagaz, hábil contorcionista, mas não estás preparada para transitar por casas sem porta. O universo, na sua grandeza, é intransigente no banho de humildade.
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sábado, 14 de maio de 2011

MOMENTO

.Hélio Cunha, Anjos e amantes
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Entraste quando ainda digeria palavras sobre a transparência das águas. Esbocei um sorriso, uma convicção, mas os teus olhos diziam-me que não querias ouvir. Apenas sentir.
Recebi-te, recebeste-me. O conceito de transparência das águas mudou de tonalidade.
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sábado, 7 de maio de 2011

DÉDALO

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Margarida Cepêda, O fio de Ariadne
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Há no exercício da escrita algo que te aquieta, te redime. As palavras, a princípio contraídas, vão-se libertando à medida que resolves o enigma do jogo de espelhos. E, qual milagre animado, cada uma parece ganhar vida própria dentro do todo. Um todo circunscrito, é certo, mas ainda assim um todo. Embora ínfimo. Sentes-te bem, a inquietação apaziguou-se. Mas a perversidade do labirinto apenas se esbateu. Amanhã, quando olhares o horizonte, vais voltar a sentir estreiteza na encruzilhada dos rumos.
Gostaria de te dizer que olhasses para as rosas, que absorvesses a arquitectura dos plátanos, mas a tua obsessão não me ouve. Precisas ser tu a descobrir.
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