sábado, 27 de agosto de 2011

ACERCA DO VINHO DA VIAGEM

.Pintura de Margarida Cepêda
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Estás a ver aquele besouro, com uma enorme bola de argila, a subir uma acentuada rampa granítica? A massa que transporta é excessiva para a inclinação e, por mais que se esforce, a bola acaba por vir fraguedo abaixo. Repara, ele não desiste. E, sempre na posse do seu pecúlio, ei-lo a tentar de novo, repetindo a empreitada até à exaustão.
No labor do sisífico besouro me revejo, retrato de inquietudes em constante demanda. Sabes, a honra é nunca desistir, por inultrapassável que seja o muro que se nos depare. Mas há algo que dele nos diferencia, e que atenua a dureza da viagem: o bálsamo do calor das nossas mãos.
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quinta-feira, 18 de agosto de 2011

CRÓNICA ESTIVAL

.Fotografia de Jorge Soares
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As costas do areal eram largas, sustentando milhares de formiguinhas que substituíam a canga de todo o ano com uma tagarelice displicente, mas sempre de olho no vizinho do chapéu do lado. Nem a forte luz do sol conseguia ser aliada do lugar, pois poucos eram os que se atemorizavam com tal fragor. Férias eram férias, programadas ao mais ínfimo cêntimo na relação custo preço das etiquetas dos fatos de banho. E cada minuto de sol entrava na contabilidade.
A mulher descabelada parecia alheia a toda a azáfama do formigueiro. A aparente indiferença era tal que não se preocupava em esconder que tinha apenas um seio. A sua preocupação virava-se apenas para os dois filhos, que orientava como se tudo dependesse dela. E dependia. A natureza às vezes tem destes caprichos, como que a testar a nossa crença na vida, e a deficiência óbvia dos rapazes tornava-os totalmente dependentes do desvelo da mãe, ela mesma uma prova viva dos desfavores do destino. Duas vezes por dia, a horas certas, levava-os a refrescar nas águas mansas do oceano. E a mulher-sem-cabelo-e-de-um-peito-só e os dois filhos lá iam, disciplinados, transportando consigo uma dignidade só ao alcance dos que não se resignam com os caprichos do infortúnio.
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As gaivotas já não são como eram. Habituaram-se à invasão do estio e, quando regressam à praia ao fim da tarde, já não se mantêm à distância, como que a dizer aos bípedes invasores que está na hora de deixarem o areal aos seus legítimos moradores. Uma mulher solitária mete a mão num saco e atira-lhes comida como quem deita milho aos pombos, e elas não se fazem rogadas. Mas é caso único. A maioria, invertendo os papéis, sente-as como invasoras, e um ou outro, vestindo o uniforme corporativo, tenta afugentá-las, mas o máximo que consegue é um curto voo. E elas acabam por vencer.
A mulher-sem-cabelo-e-de-um-peito-só já não está na praia. Mas, se estivesse, gosto de pensar que as gaivotas abririam alas à sua passagem.
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