sábado, 25 de fevereiro de 2012

MERGULHO EM PRAIA NÃO VIGIADA

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Pintura de Margarida Cepêda
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Cansaste-te dos muros de betão, e algo te impeliu a mergulhar nas profundezas da memória em busca do fio condutor.
Ignoraste as trombetas anunciadoras do brilho, pois do efémero já tu sabias, e ousaste penetrar nos segredos da caixa da dor. A tua segurança, forjada no cinzento dos dias, debateu-se, mas sentias que, para nela entrares em pleno, terias que abraçar os fantasmas do medo. E, nesse acto único, gritaste aos quatro ventos os contornos das brumas da fera, um grito que se transformou em sopro.
Quando regressaste, ainda combalida, sabias que as tuas vestes nunca mais seriam as mesmas. A tua nudez estava agora bem presente.
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sábado, 18 de fevereiro de 2012

RESPIRARES DA LUA NOVA - 1

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Aldeia da Luz, Alentejo
Pegou na bilha de água turva, acenou aos guardas e rumou ao acampamento. Sentia-se suja, a carecer de um banho, mas as antigas rotinas eram agora um  luxo. Umas gotas no rosto, outro tanto nos sovacos, e já estava no limite. O líquido, em constante escassez, era demasiado precioso para gastos supérfluos. Até os legumes, cuidadosamente cultivados nos terrenos contíguos, dependiam do gota-a-gota em garrafas de plástico, engenho forjado no esgravatar do apelo da boca. Poupava-se água, ganhava-se esperança.
A nascente que lhes fornecia o precioso líquido era o grande bem do grupo, mas também o seu lado mais vulnerável. Atraía toda a espécie de pessoas, bonecos errantes em busca de sobrevivência. Uns tentavam integrar-se, sabedores que eram da importância de se ligarem a objectivos comuns, mas outros, autênticos predadores, apenas desejavam a sua posse. Ter aquela fonte significava poder, e alguns tudo faziam para a ter. Estava-lhes nos genes. Era por isso que a nascente estava tão bem guardada, era o núcleo essencial da preservação do grupo.
Ana, antes da grande hecatombe, gastava os seus dias a leccionar numa universidade da capital, mas há muito que o prazer do trabalho se esgotara na rotina bafienta dos seus pares. A vida escapara-se-lhes por entre os dedos das mãos, mas teimavam em fazer de conta que eram o centro das coisas. E ganharam mofo. Entre o sair e o ficar, aconteceu o colapso que muitos previam. E viera ali parar, nem sabia bem como, a um local onde tudo se fazia para que houvesse uma nova oportunidade. Era por isso que, apesar da escassez, nunca faltava a água no canteiro, com um variado leque de flores, situado mesmo no centro do acampamento. E, em certas noites, quando o breu da lua nova irrompia, o som do saxofone dum músico poeta ajudava a atenuar os receios. Todos por ali sabiam que, por vezes, o ânimo carecia mais de alimento que o estômago.
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sábado, 11 de fevereiro de 2012

SEMENTE

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Margarida Cepêda, Semente
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As mães são conchas e mistério, elas apertam os filhos como rios sem margens no diafragma do Tempo, as mães têm braços que agarram por dentro o Amor com magnética nitidez. As mães são o regresso do mundo.
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Gisela Rosa, O Anel do Tempo,  A Matriz dos Sonhos
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Quando chegava o verão
Sentavas-te
À tardinha
Debaixo da figueira
Onde a brisa
Suave
Anunciava
O rumor das cotovias
Então pegavas
Delicada
Na minha mão
E contavas
Baixinho
Era uma vez um potrinho
Que adormecia
Feliz
A ouvir
As histórias do vento...
Sentia-te perto
E o tempo
Adormecido
No cantar do ribeiro
Parava
Enlevado
Para nos ver
Assim eram os dias
No tranquilo paraíso
Em que desenhavas
Minuciosa
O crescer das minhas asas
E eu sentia
Maravilhado
O vigor do teu voar.
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sábado, 4 de fevereiro de 2012

APELOS, HORIZONTES E OUTRAS COISAS QUE TAIS

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António Tapadinhas, A Cidade do Sol
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A tua alma sempre foi enorme, nem tu sabias da sua dimensão. De tal forma que, apesar dos receios, ela extravasava, insinuava-se para lá do teu pequeno mundo inicial. Sentias o seu respirar, é verdade, mas as histórias da lareira adormeciam esse apelo, qual feitiço tecido em tapetes de segurança. Apesar dos sinais, muitas vezes à flor da pele, ias resistindo.
Um dia partiste, mas uma parte de ti ficou. E, apesar das lutas interiores, alimentadas pelas promessas de novos horizontes, o teu ecrã teimava em filtrar cenários, confundindo amarras com liberdade.
Esbracejaste, socaste no ar, ressacaste. E começaste, com o que te restava, a ler a tua alma.
Ainda falas da lareira, mas já percebeste que a ternura não se confunde com a liberdade. Poderão ser complementares, mas vivem em dimensões diferentes, e a liberdade, por mais desejada, exige um preço para lá das vontades.
Quando começaste a subir a montanha, a beber das suas entranhas, sentiste que algo mudara em ti. Lembrarás sempre, com ternura, as histórias da lareira, mas a partir daqui tudo dependerá do vigor do teu voo. Seja lá o que isso for.
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