sábado, 26 de maio de 2012

RODOPIO EM SEMI-NOTA

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Margarida Cepêda, Vigília e sono
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Dentro de mim algo se debate, dentro de mim algo te reclama.
Não sei se a discreta música do vento no impelir das velas do moinho, se o apelo da terra, a sedução das estrelas, a tentação do aconchego no crepitar da fogueira. Pode ser tudo, poderá não ser nada. Sei apenas que dentro de mim algo revolteia, grita fundo, clamando por dias de sol. E que eles, quando chegam, me desafiam com dias de sede.
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sábado, 19 de maio de 2012

O INSUSTENTÁVEL TENTÁCULO DOS MODERNOS JARDINEIROS

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Gustav Klimt, Jardim com girassóis
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Gosto de flores. Dos seus aromas, das suas formas, das suas variedades.
As flores são seres sensíveis de forma singular, mas que precisam de quem cuide delas, de quem tire o melhor partido das suas características. São únicas, mas dependentes. Depois há as espontâneas, as mais preciosas. Gostam de ver o jardineiro à distância, apenas carecem de compreensão e respeito pela sua forma única de viver.
Um bom jardineiro gosta de partilhar, de sentir prazer na sua lida, de se identificar com a sua causa. De certa forma todos somos jardineiros, falta-nos é descobrir, ainda, uma causa comum. Nessa impossibilidade, e perante a necessidade de sentir a ramificação, cada um limita-se ao seu jardim. E fecha-se.
As verdadeiras razões das flores, contudo, não são preocupação geral. O observar do seu frenesim pressupõe caminhos vários, e a tentação de produzir flores num só sentido é demasiado premente. É assim que, na sombra, se forjam os novos jardineiros, modernos predadores de quem ninguém conhece o rosto, mas sente o aroma e a opressão. Na forma de poder.
Longos são os seus braços, que nos amordaçam e estrangulam sem nos darmos conta. Longe anda D. Quixote, em eterno entretenimento com moinhos de vento.
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sábado, 12 de maio de 2012

RESPIRARES DA LUA NOVA - 3

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Aproximou-se do centro da praça. O dia tinha sido intenso, a plantação de novos legumes mobilizara toda o acampamento. Ana sentia-se um pouco cansada, uma sensação comum a todos, mas era um cansaço agradável, de quem se sentia bem com a vida. Era por isso que, em noite amena, e apesar do árduo dos dias, o centro do acampamento se encontrava pleno de rostos sorridentes, disponíveis para a partilha duma causa comum.
Aguarela de Miguel Levy
Durante a noite conversou-se, soltaram-se risadas, absorveram-se os aromas de Maio. Os poemas, em manifestação quase espontânea, funcionaram como alimento daquilo que os unia. Que parecia pouco, mas era muito. E cantaram. Por fim, qual discreto convite ao recolher, o saxofone do músico poeta encarregou-se de distribuir harmonia enquanto unia as pontas das emoções.
Ana gostava daquela partilha, daquele sentir de quem sabia que dificilmente teriam uma nova oportunidade. E isso unia-os, fazia com que se soltasse o melhor de cada um. Às vezes sentia saudades das quatro paredes do seu antigo quarto, cenário de mil e uma divagações em que apenas existia ela em confronto com a vida, mas sabia que eram resquícios da liberdade condicionada da fera acossada. Ali libertara-se a pouco e pouco, aprendera que estamos muito longe de ser únicos, mas que há marcas que, apesar das novas navegações, perduram para sempre. O que não é, necessariamente, um mal. É bom que existam sentinelas que nos alertem para aquilo que não queremos, o caminho a percorrer torna-se mais claro. E ainda havia tanto a palmilhar!
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sábado, 5 de maio de 2012

NAVEGAR À VISTA A DESENHAR HORIZONTES

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Hélio Cunha, O anjo e a musa diante das ruínas da Europa
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- Gosto do teu jeito de sorrir, gosto do teu jeito de amainar tempestades. Mas, haja o que houver, o horizonte é sempre horizonte, o seu apelo será sempre irresistível. E ainda bem. É dessa massa que somos feitos, é essa capacidade de olhar que nos fará, sempre, ultrapassar qualquer tormenta.
- E o crescer das plantas? E o aroma das flores? Não gostas dessa harmonia?
- Claro, mas, se fosse apenas isso, ela esgotava-se em si mesma. A lição da harmonia surge a cada canto, mas o que a determina tem longos braços. Tão longos, tão susceptíveis, que a sua amplitude continua por determinar.
- Mas há muitos exemplos de gente que conseguiu alcançar a harmonia…
- As tuas palavras estão certas. Há muitos exemplos de harmonia, é verdade, mas todos eles são individuais. Eu falo de uma outra ideia, a harmonia colectiva.
- Espera lá! Mas não é o somatório das atitudes individuais que faz o colectivo?
- Essa é uma velha questão, para a qual não tenho resposta. Sinto apenas que as flores têm que ter o aroma das flores, as águias precisam de voar alto, as marés não se fazem por decreto. Mas só consegue ser sensível a isso quem não sentir a falta duma tigela de arroz.
- Creio que te entendo. Gostarias que, em tempo de trevas, houvesse a perspectiva duma qualquer luz. Mas para todos.
- Esse teu navegar alegra-me, pois estamos todos no mesmo barco. Difícil é que, apesar das naturais diferenças, todos o façam na mesma direcção.
- Difícil tarefa, essa!
- Tremenda, pois ninguém quer prescindir da sua forma de respirar, ainda por cima quando todos os ventos parecem soprar em direcção contrária. Mas o teu sorriso faz milagres, sabias? Anda cá. Hoje é hoje, amanhã será um novo dia.
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