sábado, 30 de junho de 2012

OLHARES

.
Fotografia da Sara, do blogue Etnografia de Circunstância(s)
.
.
.
De repente, a coberto da sombra, alguém carregou num botão e tudo acelerou.
O homem, eterno adolescente na compreensão das coisas, iludiu-se no canto da moderna sereia, adornada de luzes inebriantes como se o amanhã não existisse. Tudo parecia pouco, o muito que se tinha era nada. Já não bastava o recanto, o olá do vizinho. Invocando o direito de posse, renegou as memórias, arduamente construídas em tecelagem ancestral no confronto com o humor dos deuses.
Muito se foi, algo ficou. O rio continua a correr, impassível, perante o refluxo de tanto tactear.
O discreto murmurar das águas é eterna mensagem.
.
.
.

sábado, 16 de junho de 2012

PÁRA-RAIOS DE DESASSOSSEGOS

.

.
A seara ondulava, obedecendo aos caprichos do vento, salpicada aqui e ali com o vermelho das papoilas. A colheita prometia fartura, e já se adivinhava o chiar do velho moinho de água, entretanto recuperado, a debitar a farinha de todos os contentamentos.
A quinta, desde que chegaram, parecia outra. As paredes da velha casa, devidamente reparadas, sustentavam agora um sólido telhado. Não era a casa de ninguém, que o conceito de propriedade estava bem definido, era a casa de todos. Ali reuniam, ali funcionava a escola, ali estavam todos os livros que trouxeram. De dinheiro não se via rasto, todos sabiam que não era nessa base que deviam construir o seu futuro. Nas reuniões procuravam esbater as diferenças, e às vezes a discussão era acalorada. Mas acabavam sempre por se entender, pois todos respiravam o sentido de partilha. O dia a dia ensinara-os, mais que a teoria, que tudo era relativo, estavam mais interessados em encontrar pontos de encontro, por mais ínfimos, que em provocar tempestades. Conviviam bem com as diferenças.
Em volta novas edificações foram surgindo. Pedra não faltava por ali, e alguns descobriram, pela primeira vez, um particular deleite na construção das paredes de xisto. Talvez fosse a ideia arreigada de estarem a começar algo, talvez fosse a ideia do cultivar do espírito de partilha. Ou ambas em simultâneo. O certo é que, a pouco e pouco, os redutos foram surgindo. Para cozinhar, para dormir, para guardar alfaias e colheitas.
Tiago e Diana eram diferentes, a inquietação vivia neles como quem respirava. Ela acabara por partir, não resistindo às sugestões do para lá do sol-posto, mas ele ficara. Não fazia nada de especial. Ajudava a semear, mas não mondava, não moía. E falava pouco. Quando o fazia falava de angústias, de equilíbrios, de dores de alma. Estando sempre presente, o seu olhar perdia-se algures. Mas encontrava-se no voo dos pássaros. Era capaz de subir e descer montes só para acompanhar o voo de um melro, prender-se naqueles movimentos que o fascinavam. Também o contacto com as crianças o tornava mais atento, mais doce, os olhos chegavam mesmo a sorrir. Todos respeitavam aquela figura inquieta, desassossegada, sabiam que era a fronteira da sua parca segurança. Não fazendo, fazia muito, era o seu cata-vento. A sua presença lembrava-os dos limites daquele ermo, que a cadência das coisas vai muito para lá de nós. E aquele sentir, quase de forma inconsciente, irmanava-os na vontade de fazer algo por eles próprios. 
.
.

sábado, 9 de junho de 2012

O REGRESSO

.
.
.
.
Chegou ao cume do pequeno outeiro e parou, deixando-se invadir pela sinfonia de cores e aromas. Era uma zona xistosa, propícia a estevas e giestas, com o rosmaninho, aqui e ali, a impor a sua presença, amaciando o ar mais agreste das suas vizinhas.
À medida que descia a encosta sentia que, naquele ermo, tudo parecia ter o tempo certo. A passarada era abundante, mas esquiva, como que a estranhar a visita. Sorriu. Apesar de se integrar, de imediato, naquela corrente de energia, ainda não fazia parte da paisagem. Tinha tempo.
Mais abaixo corria a ribeira, ladeada de salgueiros, com água suficiente para aliviar as agruras do pó do caminho. Uma lontra, curiosa, levantou o olhar, mas depressa se enfiou na sua toca. Um estranho é um estranho, seja em que recanto for.
Quando chegou junto da velha casa, rodeada de silvas, viu que havia ali muito que fazer. A marca dos antigos habitantes há muito que se escondera, escorraçada por políticas de gabinete sem qualquer nexo. Ainda se viam assomar, no meio da alta vegetação, meia dúzia de árvores de fruto de tronco já carcomido, memórias de outras eras, mas pouco mais parecia indiciar, à primeira vista, que por ali já houvera uma fértil quinta, que respirara azáfama ao ritmo das estações. Isso fora há muito, num tempo em que aprendera como ninguém a descobrir ninhos de pintassilgo. Entretanto outros ritmos se impuseram.
Aproximou-se dum enorme bloco de granito e elegeu o seu reduto para primeiro poiso. Limpou a área circundante e, com vagar, começou a montar a tenda. A seguir foi explorar o local. À medida que avançava foi reconhecendo uma parede aqui, uma rocha ali. E às tantas, quase sem se dar conta e com a ansiedade de permeio, viu-se a procurar vestígios de antigos recantos.
O fim da tarde aproximava-se. Sentou-se no bloco de granito e olhou em volta, pensativo, enquanto roía uma maçã. Tinha uma semana para preparar o local para a chegada dos outros. Viriam munidos de ferramentas e sementes, risos e esperança. Talvez reencontrassem ali o seu lugar.
.
.
.

sábado, 2 de junho de 2012

RESPIRAR PALAVRAS EM TOADA LENTA

.
Van Gogh, A sesta
.
.
Passados os primeiros entusiasmos do blogue, e quase sem me dar conta, escrever é algo que se foi instalando em suave rotina. E suave porque se traduz em doses mínimas e sem qualquer planificação. O sábado, após uma semana de árduo trabalho, tem sido o dia preferencial. E a receita é simples: sento-me em frente ao computador e sai o que sai, num exercício em que, por norma, não se ultrapassa a meia hora. É quase como ir até às traseiras da casa e respirar as árvores e a horta, deixar que toda a energia contida se liberte naquela comunhão.
Por este cantinho têm passado muitas e diferentes pessoas, com algumas a deixar pegadas de amizade. Umas demoram-se, outras partem. Como na vida. E a memória dos versos de Eugénio chega com a naturalidade dos dias.
Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria -
por mais amarga.
Às vezes penso no que seria se escrevesse também à segunda, à terça, e por aí fora, de uma forma disciplinada. Mas são apenas momentos. Escrever, tal como o concebo, tem que ser mister exercido como quem respira, ainda que a espaços, de braço dado com a partilha. E hoje, ainda que ao de leve, é dia de respirar.
.
.
.