sábado, 28 de julho de 2012

MERGULHO EM ÁGUAS DE DELICADOS AROMAS

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Pintura de Margarida Cepêda
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Sinto as tuas águas fervilhar, em constante agitação, e nada parece amainar essa necessidade de almejar praias longínquas.
Não sei como te dizer, mas areias são apenas isso, areias, é no fermentar do teu impulso que deves mergulhar.
O mesmo se passa com as montanhas. Que importa subir ao cume mais alto? Acaso não haverá sempre outra montanha ao lado? Detém-te nas veredas, na singularidade de cores e aromas. Bebe, inala, mastiga. É neles que se forja a química dos teus passos, alimento da tua alma. Se conseguires aquietar a ansiedade de domares o tempo, talvez, então, entendas a delicadeza do respirar de uma flor.
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sábado, 21 de julho de 2012

EFÉMERO

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Pintura de Margarida Cepêda
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A seara ondulava
Sensual
E as papoilas
Efémeras
Adornavam o cenário
Que embalava
O voar das borboletas
Assim eras tu
Em Maio
Na frescura dos caminhos
Radiante
Com o mundo a teus pés
Gostavas do teu brilho
E embriagavas-te
Na imagem do espelho
Que enfeitavas
Com as cores
Duma eterna primavera
Esqueceste os aromas da terra
E não viste que os deuses
Despreocupados
Em olímpico tédio
Jogavam o teu destino
Em jogo de dados
Dedilhado
Em acordes chorados
O espelho fragmentou-se
E não percebeste
A sensação de frio
Nos caminhos que te levaram
À solidão
Dum palco vazio.
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Reedição
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sábado, 14 de julho de 2012

A SUSTENTÁVEL LEVEZA DAS MANHÃS DE SÁBADO

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Fotografia de AC
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Gosto das manhãs de sábado. 
A água para o café aquece um pouco mais tarde que o costume, como que a dar espaço a que a harmonia se instale. Lá fora, imune a estéreis transcendências, a passarada dá largas à conformidade dos dias, trauteando ancestrais melodias. Por ali não há angústias de mercado, as coisas são o que sempre foram.
Saio. Nas árvores, obedecendo a sábias determinações, já se foram as cerejas. Os pêssegos e as ameixas estão quase no ponto, e as pêras, as maçãs e os figos, moldados com outro vagar, prosseguem a sua maturação. Maior é o sono de castanhas e amêndoas, que só nos matizados outonais ganharão carta de alforria. Neste desabrochar de vida não há pressas. Cores, aromas e sabores têm a sua química muito própria.
Debruço o olhar sobre as couves, os pimentos, as cebolas, a salsa, os tomates, as alfaces, as beringelas... Enquanto verifico o crescimento, pequeno milagre de todas as horas, recordo ensinamentos de avós, travestidos em memórias - olha, filho, a horta quer ver o dono todos os dias - e prossigo na comunhão. Fixo-me nas daninhas e retiro uma erva, duas, três... Parecem tantas que, no mergulhar da tarefa, o tempo deixa de contar. Mondar a horta, tal como a vida, requer paciência, tacto e uma óbvia visão de fundo: não há recompensa sem esforço. E os frutos, mais que promessa, começam a ser dádiva.
A Pretinha, uma schnauzer gigante de incondicional cumplicidade, acompanha-me no passeio. Caminha quando eu caminho, senta-se quando algo merece a minha atenção. E uma festinha naquela cabeça atenta nunca é de mais.
Um casal de andorinhas, contrariando ideias feitas - estamos em Julho, longe dos cânones de Março - insiste em fazer ninho no alpendre. Nunca é tarde para reformular, nunca é tarde para amar.
O sol começa a morder, a sombra começa a tentar. E, de bom grado, acabo por ceder.
Nas manhãs de sábado, enredado na magia das pequenas coisas, os dias domam as feras e insinuam plenitude.
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sábado, 7 de julho de 2012

DIÁLOGO COM UBÍQUO PATROCÍNIO

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Hélio Cunha, Edenbluff
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- Porque te afastas? Porque gostas de deambular por zonas sem certificação?
- Eu não me afastei, apenas fui um pouco para o lado de lá. Sabes, gosto de ver as coisas sob vários prismas, as cores dos catálogos sabem-me a pouco.
- Ouve, as pessoas trabalham tanto, que um catálogo de opiniões é preciosa ajuda. Não achas?
- Um catálogo é sempre a visão oficial de algo. Se te encostares a ele, isso significa que estás a delegar o que de mais precioso tu tens: a liberdade de pensamento.
- Mas… espera lá! Um catálogo traz-me mais tempo livre, facilita-me as opções. Ao fim e ao cabo, liberta-me.
- Liberta-te? Para quê? Para estares disponível para trabalhares cada vez mais? Para seres uma máquina produtiva? Um fazedor de opiniões apenas te condiciona, ajuda a acentuar a visão de quem o patrocina. Sabes, o trabalho não pode ser um fim em si mesmo, mas um meio para tentarmos concretizar sonhos, expectativas…
- O que dizes pode ser aliciante, mas preciso de trabalhar para comer.
- Tens razão, mas é com base nessa premissa que eles nos condicionam cada vez mais. Já reparaste que, através desse meio, te criam uma falsa zona de conforto, abrindo-te portas para o sentido de posse, e que, às tantas, já não queres prescindir disso? Se pensares bem, muito do que fazes nem sabes porque o fazes, mas, como toda a gente o faz, isso basta-te. A verdade é que eles condicionam as nossas reacções e comportamentos. Em suma, fazem de nós modernos escravos.
- És doido, sempre foste. Porque sorris? Que trazes aí?
- Um ramo de ervilhas-de-cheiro, que apanhei do lado de lá. São para ti. Gostas?
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