sábado, 25 de agosto de 2012

BALADA PARA O SOPRAR DE NOVOS VENTOS

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Van Gogh, Paisagem da colheita
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A quinta, com o passar do tempo, fora ganhando uma ambiência muito própria. Durante o dia vivia-se a constância do movimento, moldada nos elementos. A natureza tudo nos dá, mas tudo nos exige, é uma cumplicidade sem concessões, e ali havia sempre algo para fazer. Contudo, chegado o ocaso, o vislumbre da lua apaziguava o instinto físico da sobrevivência. E, de forma natural, insinuava-se a poesia, cantando-se o já feito e as pontas daquilo que os desafiava. Semeava-se apaziguando, que a esperança carece de dificuldades domáveis. Era nessas alturas que Tiago se afoitava, que as suas palavras, preservando o que de bom tinham, os transportava para o que havia para lá do horizonte, recordando-lhes que não viviam sozinhos.
Um dia, num fim de tarde, Diana regressou. O seu olhar ainda guardava rastos de inquietude, mas estava diferente de quando partira. Havia nela um entusiasmo novo, próprio de quem encontrara algo e sentia necessidade de o partilhar.
Ao jantar, feito da frugalidade do que cultivavam, Diana começou-se a soltar. E falou com alma. Reforçou a ideia que já todos tinham – a impossibilidade dum mundo sob um jugo sem regras, que apenas beneficiava uma minoria sem rosto – e começou a lançar sementes dum diferente porvir. Reclamou da necessidade da visão feminina do mundo se chegar à frente, substituindo a secular e máscula prática guerreira, e que toda e qualquer solução, para ser sustentável, teria que se basear no equilíbrio com um elemento fundamental: a terra. E disse mais. Que, para lá da necessidade de as mulheres se chegarem à frente, era uma heresia ousar falar de liberdade quando não se respeita o mais elementar da nossa origem.
Tiago ouvia, deliciado. Não pela novidade, mas pela cumplicidade que sentia. Tudo aquilo, para ele, fazia sentido. Diana precisara de sair dali para entender, mas para ele a revelação viera com a percepção da elementar arquitectura da construção de qualquer ninho. Fosse ele de pintassilgo, de melro ou de rola. E, sem se dar conta, sorria enquanto ouvia.
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sábado, 18 de agosto de 2012

PARA LÁ DO SUBSTANTIVO

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Hélio Cunha, Planaltos de cristal
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Gosto do teu sentir, gosto do teu olhar. A sua envolvência é como uma paleta, pintando telas sem parar ao ritmo de cada clique, cada vislumbre, como se de mais uma peça na solução do puzzle se tratasse. E tentas pintando, e pintas sentindo.
Das histórias sabemos que se datam, se circunscrevem no tempo. Que nome daremos, então, àquilo que começa mas que, por efeito de qualquer química, não lhe vislumbramos o fim?
Um lançar de cartas, no final do dia, apenas ajuda a adensar o mistério.
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domingo, 12 de agosto de 2012

NAVEGAÇÕES

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Margarida Cepêda, O fruto proibido e o fruto permitido
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Liberta-se um indício de cor, de palavra, de fragrância. É quanto basta para alimentar a vontade da procura, de desvendar para lá das nuvens com que adornas a tua morada.
As perguntas são inúteis - haverá sempre mais, e mais... - e as respostas, se as houver, não são para serem ditas aos quatro ventos. Chegar não é um acto único, estar é sempre um ponto de partida. E tudo recomeça.
Quando a fragrância se sobrepõe à palavra e esta, reinventada, continua a fazer sentido, então é chegada a hora de ouvir a melodia dos pássaros.
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sábado, 4 de agosto de 2012

A COR DO SONHO

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Pintura de Margarida Cepêda
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Falavas convicta
Da cor do teu sonho
Como se a alma
Movimento profundo
Fosse tela manipulável
Adaptável
Em pano de fundo
Pegavas na paleta
Objecto comum
Circunspecto
E tentavas
Num impulso inocente
Pintar o sonho
Em rosa envolvente
Como tom predominante
Duma vida deslumbrante
Mas na intimidade
Sabia-te a pouco
E rebuscavas mais cores
Para misturar odores
No equilíbrio
Da tela desejada
Tentaste com verde
Dourado e turquesa
Mas ficava a incerteza
Da falta de leveza
Do sonho sem asa
Insististe com azul
Siena, borgonha
Branco floral
Mas não descobrias
A mágica proveta
Crucial e discreta
Para almejar
O tom essencial
Ficaste sozinha
Coração na mão
E então percebeste
Que a essência do sonho
Antes da cor
Carece de alma
Na sua dimensão.
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