sábado, 27 de outubro de 2012

VISLUMBRE EM TONS DE VIOLETA

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Deslizava, insinuante, por entre letras interiores, despertando acordes até então adormecidos. As palavras, com naturalidade, assomavam à flor da pele, criando cenários miscigenados onde sobressaía, delicadamente, o verde e o azul, com um leve toque de violeta à medida dos seus passos. Era a sua aura.
Ainda há pouco intuí o seu vislumbre, esgueirando-se por entre os dourados outonais dos carvalhos e dos castanheiros. Os homens, distraídos com o clamor da posse, não apuravam a profundidade do seu olhar. Ela, indiferente, tudo respirava  por inteiro, desenhando no ar as vestes da harmonia.
Imbuído nas palavras do poeta, guardei o vislumbre no bolso para o não perder.
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sábado, 20 de outubro de 2012

FRAGRÂNCIAS DE OUTONO

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Pintura de Margarida Cepêda
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Era um navegante da vida. 
O tempo, supremo e decisivo escultor, mostrou-lhe a inutilidade do ruído, ensinou-lhe a moldar o filtro do supérfluo. Com as plantas aprendeu a fidelidade, plena de equilíbrios, no voo das aves percebeu os contornos da liberdade. Das flores, aroma indispensável a qualquer harmonia, entrou no mundo da subtileza. O espreitar das estrelas, sempre tão longe e tão perto, acentuou-lhe a percepção da infimidade. Tudo claro, tudo natural, como que obedecendo a leis do mais puro desígnio.
Lá fora, quais eternos aprendizes de feiticeiro, os homens continuam a manipular as flores à imagem da sua sombra.
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domingo, 14 de outubro de 2012

ALGO SE PRESSENTE NO AR

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Hélio Cunha, A Queda de Ícaro
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Algo se pressente no ar. 
As aves voam sem rumo, inquietas, buscando o mais improvável abrigo. Os pinhais, renegando suaves melodias, são passadiço de todos os ventos, sem rei nem roque, uivando ao sol e à lua. Nos homens, a despertar da letargia, adivinham-se gritos tumultuosos na multidão dos ventres ao sol, despojados de tudo, até do ar que respiram.
Finda a vindima, no meu país o vinho não será néctar, será sangue em constante fermentação. Até a dignidade retomar.
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sábado, 6 de outubro de 2012

ACERCA DO INFINDÁVEL DA VIAGEM

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Hélio Cunha, A Porta do Infinito
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Tinha sido forjada em boa conjugação astral. A vida, sempre ávida de provas e testes, bem a tentava com sorrisos de néon, mas ela não cedia. Apenas lhe interessava o que respirava ao ritmo do coração.
Quando ganhou segurança ousou subir às nuvens e, qual sacrilégio, aprendeu a vogar e a pendurar-se nelas. O mundo não aplaudia, como fazia nas traquinices de infância. Depressa percebeu que percorria um caminho interior, só dela, procurando respostas para os vislumbres que, de quando em quando, assomavam à superfície. E com o quente e frio da viagem foi aprendendo a libertar palavras que, a pouco e pouco, ganhavam asas. As suas asas.
Quando as palavras, feitas poesia, chegaram aos outros, sentiu que parte do círculo se fechava. Mas não completamente. A sua solidão, tecida em delicados e imensos fios, continuava a ansiar pela palavra inicial.
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