domingo, 30 de dezembro de 2012

DESENHO DE NUVENS DO PORVIR

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Margarida Cepêda, A Ilusão
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Os versos, sempre os versos, tentam alcançar o desejo e o desespero, mas as nuvens, espelho natural de sonhos, risos e cóleras, insinuam tropéis desenfreados.
Ouso semear, ouso construir, que a terra carece de movimentos em constante sedução, mas os deuses dizem-me não ser hora de sentir o verbo. O ruído, sempiterno obstáculo, teima em permanecer, o tecer de labirintos de espera tende a tornar-se uma arte.
A noite, laboratório do piscar de olhos entre ocasos e madrugadas, é contínuo desassossego. Mas há que assumir as vestes da dignidade e teimar, teimar sempre. Por perto nunca faltará uma flor.
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domingo, 23 de dezembro de 2012

NATAIS DE ESPERANÇA, ESPERANÇA DE NOVOS NATAIS

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Frida Kahlo, Árvore da Esperança
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Por onde passava só via terra devastada. Colheitas queimadas, pilhagens, nascentes envenenadas. Teimava em prosseguir, mas os sinais não mudavam. Por todo o lado a mesma aridez, o mesmo fruto da falência das ideias. A vida é feita de ciclos, lia-se nos livros, mas os ciclos são a prova da cegueira colectiva. Sempre os mesmos erros, sempre a mesma tendência para o arrotar do estômago. E, em celeiro vazio, o músculo acabava por assomar.
Da cabana, em plena floresta, saía uma leve coluna de fumo. Aproximou-se, cauteloso, mas não via guardas nem defesas, apenas um jerico que pastava, indiferente ao que o rodeava. Espreitou. Lá dentro, como se da coisa mais natural se tratasse, duas pessoas afadigavam-se a manter vivo o lume, mexendo de quando em vez, com uma colher de pau, num caldeirão que destilava odores apetecíveis. Próximo, num berço de madeira, um bebé dormitava.
Bateu à porta. De dentro não perguntaram quem era, limitaram-se a abrir. E entrou. Dois rostos sorridentes encaminharam-no para uma tosca mesa de madeira, onde o aguardava uma tigela de caldo fumegante.
No final, já saciado, olhou em volta. Na cabana pouco ou nenhum conforto havia, mas uma prateleira de tigelas chamou-lhe a atenção. Eram para quem chegasse, disseram-lhe, um estômago reconfortado ajuda a manter a esperança. E continuavam a sorrir.
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Para todos os cúmplices de interiores odisseias,
Feliz Natal
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domingo, 16 de dezembro de 2012

APERTADAS CORRENTES, LARGOS VEIOS, ETERNOS NASCENTES

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Hélio Cunha, La Donna Immobile
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As folhas, imunes ao gatinhar do respirar, preparam a cerimónia de encerramento, baseada no cultivo do silêncio. O sono é apenas aparente, longe do olhar tudo se conjuga para o eterno renascer. E é nessa fronteira, que não vemos mas sentimos, onde são admitidos, entre outros, alguns acordes de valsa mesclados de leves tons de fado e tango, que nos permitimos, por vezes, sossegar. É um aquietar ténue, porque enfeudado ao porvir, mas ainda assim, para os avessos ao ruído, vestido com vestes de calmaria. A semente do desassossego vem depois, quando tudo brota e tudo resplandece. As fronteiras tendem a desvanecer-se, cúmplices do sonho que se desfralda, as nuvens ganham configurações em medida solta. É quando sentimos que tudo está ao nosso alcance, que tudo depende de nós. E, sem nos darmos conta, queremos mais. E mais.
De repente, imunes ao gatinhar do respirar, as folhas preparam a cerimónia de encerramento, baseada no cultivo do silêncio. O germinar do desassossego atinge o seu esplendor. 
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domingo, 9 de dezembro de 2012

(OUS)AR

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Hélio Cunha, A Praia de Sophia
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Olho as nuvens, sinto os ventos, e tudo parece conjugar-se para o baixar de braços.
Simples ilusão, dizem-me as feridas, a reformulação sempre fez parte do percurso dos homens. Não estão visíveis, podem até esconder-se, mas há por aí nichos de pessoas que urdem, que cerzem, banhadas em arquitecturas de harmonia. Não estão, aparentemente, visíveis a viveres resignados, mas fiam futuros entrelaçados no bem comum, à espera que o olhar se liberte. Parecem atitudes mínimas, mas são elas o garante de um novo olhar, de um novo respirar.
De que olhar falais? De que respiração?
Falamos das memórias, da eterna (re)construção. Não são elas o nosso eterno guia? Repara no que passaste, no que leste, no que ouviste. Que peso tem isso em ti? Que esculturas queres moldar? A vida em crescendo é um sortilégio com muitas voltas, plena de subterfúgios, mas imune a estocadas de aprendizes. Esses só estragam, não sabem o que é o equilíbrio. E o vento, mais tarde ou mais cedo, acaba por varrê-los.
Que fazer, então?
Ouve, escuta, age em conformidade. A princípio pode até parecer que o pão te falta, mas o respirar do caminho se encarregará de revelar os segredos do gatinhar dos teus filhos, dos desenhos dos seus sonhos. Quando sentires isso, deixarás de sentir opressão no teu pensar. É esse o teu caminho, por mais que doa.
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