segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O ETERNO CONJUGAR DO VERBO

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Presépio, em telha mourisca, de Francisco Paulo
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O homem carregou no acelerador do velho Fiat Uno, lata amolgada carcomida pela ferrugem, mas os gemidos da mulher, no banco de trás, diziam-lhe que não iriam chegar a tempo ao hospital. A hora aproximava-se, e o desespero levou-o a virar no primeiro desvio, recurso último de quem não sabe o que fazer. O velho carro, a dar o que não podia, entrou numa rua escura, esburacada, pejada de armazéns abandonados. A cadência dos gemidos acentuou-se, accionando o chiar dos travões. Era agora.
Enquanto o homem, desesperado, tentava tirar a mulher do velho Fiat, das imediações começa a irromper vida. Rostos barbudos, de cabelo em desalinho, caminham para o epicentro. Enquanto ajudam o casal, sente-se o ranger dum enorme portão a rodar. Um movimento inusitado começa a insinuar-se na zona.  
Estendem dois cobertores no chão, entre duas enormes pilhas de paletes, e acomodam a mulher. Ao lado, movido a urgência, alguém acende um fogão de campismo e põe água a aquecer. Vindos do exterior, dois bidões, prenhes de madeira seca a alimentar as chamas, começam a aconchegar o improvisado abrigo.
Quando se ouve o primeiro choro, nascem lágrimas para temperar o júbilo. De repente, qual quadro há muito esquecido, o enorme armazém torna-se pequeno para tanto rosto barbudo, de olhar intenso, como se algo novo, quase indefinível, despertasse dentro deles.
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Um Renovado Natal para todos!
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domingo, 15 de dezembro de 2013

EM BUSCA DO SUBSTANTIVO

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Hélio Cunha, Acqua
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Crescer é tentar perceber o perto e o longe, expandir horizontes, sentir a vida como se a grandiloquência nos tocasse.
Assim tu foste, doce cerejeira, mas insatisfeita com os limites do teu fruto.
Tentaste ser figueira, mas achaste o sabor muito selectivo. Talvez amendoeira, cogitaste, mas, perante o esperar e o desfrutar, esperavam-te mil e um trabalhos até chegares à sua essência. Entre o ser e o não ser, quase te perdeste, os cenários pareciam quase sempre definitivos. Não adormecias bem.
Deambulando por sabores e aromas naufragados, descobriste que cada fruto tem a sua forma, o seu aroma, o seu próprio sabor. E, finalmente, começaste a investir em algo único, no que de mais subtil e puro há em ti. Quase sem te dares conta, ao despir roupa alheia, acabaste por descobrir a tua nudez.
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domingo, 8 de dezembro de 2013

COGUMELAR EQUILÍBRIOS

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A manhã estava fria, branca de geada, a convidar para mais um tempinho na cama. Um salto, o café a escaldar, e ala, que os companheiros de evasão aguardavam.
Não havia vento, ou, como dizia o poeta, "nem uma agulha bulia, nos pinheiros do caminho", mas não era hora de neve. De frio, sim, de deitar fumo pela boca, mas não se conhece melhor aquecedor que o convívio. E o pinhal recebeu-nos de forma tranquila, afável, abrindo portas à simplicidade da procura.
A caruma, adereço indispensável ao nosso vasculhar, dificultava na justa medida, a suficiente para alimentar o júbilo da descoberta. Olha um míscaro*, é amarelo, exultava o parceiro da esquerda. O da direita olhava, de soslaio, mas depressa lhe cabia em sorte a descoberta de dois ou três, mas dos brancos.
E entre pinheiros, a cogumelar, se passou a manhã, em busca de algo bem definido. Não havia subterfúgios, o pinhal e os pesquisadores davam apenas o que tinham de si: no espaço, a disponibilidade; na ocasião, a oportunidade; no envolvimento, a comunhão de viver.
A natureza, sempre a natureza, a regular a respiração dos homens.
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*míscaro - variedade de cogumelo silvestre
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sábado, 7 de dezembro de 2013

REBUSCAR

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Pintura de Margarida Cepêda
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Se há coisas que não podemos escolher, uma delas é a competência genética com que chegamos ao mundo.
Esse aspecto, contudo, é apenas o aparente início da grande viagem, matéria visível da nossa construção. 
A família pode envolver-nos, ou não, numa capa protectora, zelando para que os nossos primeiros olhares sobre a vida não sejam sujeitos a grandes intempéries, e a forma como (não) sorrimos é disso uma evidência. Mas há algo para lá do óbvio. A matéria de que somos feitos, as energias que por aí cirandam, as influências astrais.., isso dificilmente é perceptível ao nosso rudimentar entendimento. Tentamos perceber tacteando, muitas vezes pisando o que poderá, ou não, ser importante.
Por norma, só mais tarde nos apercebemos de que passámos ao lado de rastos determinantes, pois, em matéria de conhecimento, a cegueira ainda é a nossa condição. E, como qualquer pessoa que (se) procura, sujeitos à intermitência dos caminhos.
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Às vezes
Quando o cinzento se perpetua
Ganha lastro
A procura da luz
A claridade
Dos dias prometidos.
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No calcorrear da velha calçada
Um letreiro velho
Mas sempre novo
Sinaliza
Nas subtilezas do tempo
O graal de todas as demandas
Insinua-se
Um vislumbre de promessa
A centelha do golpe de asa
Mas os olhos carecem de rumo
Porque toldados
Pela visão de mil profetas
Às vezes
Com a luz na mão
Apenas olhamos
Para o mistério da sombra.
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sábado, 30 de novembro de 2013

A PORTA DA PARTILHA

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Margarida Cepêda, A 1.ª porta
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O barco navega nas aparências, transpondo a fronteira do tempo em que a função das várias variáveis é manipulada no filtro duma só variável. Para trás ficou o tempo dos cantos ao amanhã, como se tudo estivesse logo ali. Não estava, não está.
Tentamos determinar a origem dos ventos, o que os faz mover, mas há sempre algo que não acompanha a sua sagacidade: umas vezes ilude-nos o canto da sereia, que nos acomoda, noutras deparamos com a nossa infimidade, que nos reformula. Do que permitimos parece haver solução, baseada em equilíbrio de forças, do que não sabemos apenas nos resta ousar. Se a primeira é mundana, à tona d'água, a segunda mexe com a nossa caixa negra. E isso assusta. Ousar, no mínimo, implica ficar com a criança nos braços, o que, assente a poeira, é sempre o início de algo: de nos descobrirmos, de nos desafiarmos. Contudo, e apesar das evidências, teimamos em acomodar o medo, em negar canteiros às flores.
Aqui e ali, apesar do uivo dos lobos, ainda há um recanto na lareira para quem chega. A horta, enquanto sustentável, é convicta fonte de partilha. Não para ficar, que a cumplicidade quer-se revigorante ponto de partida. Seja lá o que isso for.
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sábado, 23 de novembro de 2013

APOLOGIA DAS LOAS ÀS MANHÃS DE SÁBADO

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Hélio Cunha, A Fonte da Juventude
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Um levantar tranquilo, em lentos passos, o relógio no mais fundo do baú.
O café bem quente, o olhar nas tonalidades da serra, através da vidraça, mescla de verdes, dourados e castanhos de pinheiros, carvalhos, cerejeiras e castanheiros. A alma começa a encher.
A horta recebe a primeira visita. Não há lagartas à vista, couves e repolhos prosseguem o seu lento crescimento, lado a lado com alfaces e morangueiros.
Mais além, em zona não cultivada, a lenha, cortada no início do Verão e espalhada pelo chão, espera por cuidados. Apela-se à vontade, às luvas e ao carrinho de mão. A pilha de lenha, no abrigo, vai crescendo. Nada mais conta, apenas a satisfação de fazer o que deve ser feito.
No final da manhã, vestidas por completo as vestes da harmonia, escolhe-se a música certa, chave mestra dos mais íntimos recantos, acende-se a lareira e arquitecta-se o almoço.
O eco da diatribe dos homens, hoje, fica à entrada do portão. Num mundo em constante mudança, as manhãs de sábado, em contacto com a natureza, continuam a entoar loas à vida.
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sábado, 16 de novembro de 2013

INFINITOS VOOS, ETERNA SOLIDÃO

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Pintura de Margarida Cepêda
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Sinto a tua inquietação, a ânsia de domares as sombras que te perturbam os dias.
Mal desponta a aurora, pegas no melhor de ti e vais ao encontro do marulhar das ondas, ritual primevo na convocação da essência apaziguadora. É a hora de te despires, de enfrentares a tua efemeridade. Quando, por fim, começas a entender o ritual das gaivotas, há sempre algo que te transcende, que as impele para longe. 
É grande a sede de infinito, perpetuação da tua inquietação, mas não te basta entender, tu queres o poder do voo. E, sem te dares conta, ficas cada vez mais só.
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sábado, 9 de novembro de 2013

OS NOVOS DEUSES DA LUA

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Hélio Cunha, A lua do caçador
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Queima-se a dignidade, semeia-se o infortúnio. Da colheita augura-se a fúria, o desespero, correrias de vai e vem entre pés descalços e botas cardadas.
No final, purga feita, apenas se cultivam marionetas. Os novos deuses não carecem de mais. 
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sábado, 2 de novembro de 2013

A ETERNA QUESTÃO DE OUSAR

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Hélio Cunha, Pescadores de pérolas
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Há homens que trazem o mundo nos olhos. Ouvem-se, ouvem o vizinho, ouvem as árvores, conjugando tudo no mesmo respirar.
Há homens que, sendo o que são, se ultrapassam. São seres que acreditam, que lutam, que tudo abarcam no infinito.
Há homens, por aí, que ousam ser o que são, forjam o seu destino na imensidão da sua alma. Só nós, eternos temerosos, permanecemos em contínua sonolência.
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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

PEQUENAS NOTAS, CLÁSSICOS EXCERTOS

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Hélio Cunha, Águia voando ao encontro da sua flecha
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Não estava preparado para a solidão da descoberta. Sucumbiu às lembranças, pausou, inverteu a rota.
Regressou, de sorriso ténue, de fartura apenas uma mala de desassossegos. Quando entrou, não precisou de falar, num abrigo há sempre alguém para lavar as feridas. 
Pouco mudou, a não ser o reforço do alimento. És importante, és especial, e surge a força para mais um dia, o alento para o dobrar da esquina.
Vestiu uma camisa lavada. Aconchegou-se, pintou novas telas, desesperou com a eterna tonalidade escorregadia.
Surgem novos impulsos. Voltar é sempre uma forma de partir, mas com mais penas nas asas. No fundo pouco mudou, o pouco é sempre muito. Até as penas caírem.
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terça-feira, 22 de outubro de 2013

POSTAL A PRETO E BRANCO

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A cidade ficou para trás, mas o seu pulsar chega longe, numa agonia estridente, mesclada em contradições submersas em labirintos de desespero. As sirenes uivam, o asfalto é o simulacro duma arena sem regras. A multidão, numa ressaca desesperada de flores pisadas, esbate o desejo de circo, apenas almeja as voltas do pão. A cabeça, a cada passo, baixa um pouco mais. É a dignidade que se vai.
No resguardo do jardim, o mundo a duas cores: num banco, próximo da estátua do poeta, o sem abrigo enrola um desbotado cobertor; mais além, sob a terna capa dos avós, a criança descobre o fascínio da bola a rolar.
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terça-feira, 15 de outubro de 2013

A INDELÉVEL MARCA DE SER

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Hélio Cunha, Os Frutos Prateados da Lua
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O teu olhar, ávido de respostas, segrega alquimias únicas, forjadas em eternas dúvidas, e só tu pareces não dar conta.
Há um rasto de ti - discreto, muito discreto - a que não dás importância, mas que marca quem por ti passa. Pode ser um gesto, a forma de dizer não, o sorriso enfeitado com o teu jeito de olhar o mundo...
Só tu pareces não dar conta, mas enquanto caminhas, plena de dignidade, até os cardos se parecem engalanar com a sua melhor roupagem.
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terça-feira, 8 de outubro de 2013

SINFONIA

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Hélio Cunha, A Terra Inteira
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Quando me pressentias, à tardinha, para lá dos salgueiros, descias, de mansinho, o caminho que ia dar ao ribeiro, enquanto semeavas o aroma das violetas.
Dizias-me, ao ouvido, que a tua respiração se calava para ouvir os meus passos, respondia-te que a minha pele respirava todas as letras do teu nome. E no brilho dos olhos acreditávamos, entre murmúrios comungávamos...
Quando me pressentias, à tardinha, para lá dos salgueiros, era tempo de a ternura se soltar.
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domingo, 29 de setembro de 2013

EQUAÇÕES HARMÓNICAS ENTRE O IR E O VOLTAR

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Hélio Cunha, Memórias do absoluto
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Regressas, por momentos, a paisagens há muito adormecidas dentro de ti. 
Deslumbras-te na harmonia da água com as pedras, dos pinheiros com os carvalhos, da urze com o medronheiro. O velho, eterno resguardar de memórias, parece-te novo no rigor suave das linhas simples, que te convidam ao devaneio. E efabulas, arquitectas, parece-te viável o reformular da filosofia dos homens. Reconcilias-te com a vida.
Quando partes, não te falo da validade do brilho renovado dos teus olhos. Digo-te apenas para vires mais vezes.
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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

COM UM BRILHOZINHO NO BOLSO

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Júlio Resende, Pássaro
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Ainda te lembras, eu sei, das tardes junto ao pinhal, perto da ribeira, onde, até ao lusco-fusco, desenhavas os teus primeiros versos. Era primavera e o mundo chamava por ti, e nem o brilho daqueles olhos negros, que te arrebatavam as noites, conseguiam adormecer esse anseio.
Um passo apressado, dois, três... Nas primeiras caminhadas festejavas cada pedra transposta, cada chegar para lá da linha do horizonte. Quando, por fim, começaste a subir os montes mais altos, as linhas deixaram de ser claras, descobriste que as fronteiras apenas existiam dentro de ti. 
À noite, em volta da fogueira, ainda recordas, de quando em vez, o aconchego do mundo circunscrito ao pequeno vale. Sabes que não há recuo, a poeira do caminho há muito bebeu a tua pele. E continuas. Mas, por mais que caminhes, continuas a transportar, bem guardado no bolso, o brilho daquelas intermináveis tardes.
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sábado, 14 de setembro de 2013

ARREMEDO DE REBATE EM CONTRACICLO

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Margarida Cepêda, Painel A Lua Nova 
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Os ciclos repetem-se, mas a memória teima em não os acompanhar. Queres tudo, não queres recuar, pareces ter esquecido a química da harmonia. E pões a mão no peito.
Quando, por fim, começas a vislumbrar para lá das cinzas, sentes uma espécie de calor, a redescoberta da esperança. E isso alimenta. 
Recomeças o tactear, recomeças a construção. Desta vez com mais lastro, mas, não por acaso, com menos certezas. Estás a aprender a cozinhar, lentamente, na tua caixa negra, nacos de convicção com essência de humildade. E aguardas.
Se um brilho surgir, não te deslumbres, os fogachos são da nossa condição. A honra está em prosseguir, para lá do efémero, mesmo que os muros pareçam ofuscar toda a luz.
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sábado, 31 de agosto de 2013

POSTAL ILUSTRADO DO TEMPO SEDUZIDO

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Júlio Resende, Voo de aves
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A ribeira serpenteava, por entre outeiros, apaziguando o canto das cigarras. 
Junto da velha azenha, rodeada de salgueiros, onde a água ensaiava uma lagoa, o canto da pequenada era plena celebração. Não havia amanhã, apenas o encanto contava.
Os deuses, na penumbra, sacudiam o tédio. Rendidos, afastavam para longe o lado breve do tempo.
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domingo, 25 de agosto de 2013

APEADEIRO EM RECANTO SEM GPS

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Hélio Cunha, Prazer silencioso
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Viajou, respirou, ganhou asas. Apesar do aplauso, tecido em delicadas filigranas, sentia saudades das palavras que lhe faziam vibrar as teclas.
Regressou, um dia, envolta em novos odores. Soltou perfume, escudada em mantos diáfanos de nuvens, e ousou.
Sorriram. Ele sabia, ela sabia, mas mantiveram o piano a distância prudente.
Ela veio, mas não veio, apenas queria alimentar a saudade. E de novo partiu.
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domingo, 18 de agosto de 2013

CRÓNICA ESTIVAL - LIBERDADE EM PEQUENAS DOSES

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Hélio Cunha, Recife
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Já ia nos sessenta e muitos, o rosto curtido pela vida não enganava, mas o brilho dos olhos, quando se aproximava do mar, parecia contradizer os sinais. 
A água, quando lhe tocava a única perna - a outra fora-lhe amputada - era a antecâmara da libertação. Entregava as muletas a um amigo e, ao pé-coxinho, procurava o abraço do mar, até ganhar a profundidade ansiada.
As primeiras braçadas eram sensação única, grito de desobrigação, até ultrapassar a barreira dos últimos banhistas. Passava dez, vinte metros, para lá da prudência colectiva, e era então que surgia o deleite. As braçadas eram poderosas, mas não era isso o que mais impressionava. Em todos os movimentos do corpo era visível o fruir da liberdade, da não dependência dos outros, o reencontro com a dignidade de se sentir homem.
Mantinha-se na água trinta, quarenta minutos. Na praia já se sentiam sinais de ansiedade no portador das muletas, e até gestos destes, de cumplicidade, requerem equilíbrio. O regresso à praia, o amparo da amizade, o retomar das muletas.
Amanhã será um novo dia. A liberdade, por vezes, tem que ser bebida em pequenas doses.
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segunda-feira, 29 de julho de 2013

VEREDAS DE PALAVRAS PARA LÁ DA CORTINA

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Margarida Cepêda, Leva a luz e arrasta a sombra
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As palavras, como se tivessem vontade própria, por vezes recusam a realidade desenhada, insinuando-se como anunciadoras da nudez da tela.
As pinceladas insistem, tentando alimentar a chama duma pretensa dignidade, mas os vocábulos transfiguram-se em sons de origem indefinida, convite para portais de outra dimensão.
As palavras, por vezes, não são dócil instrumento, são passaporte para as lacunas que nos tingem a alma.
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domingo, 21 de julho de 2013

ACERCA DAS PORTAS ENTREABERTAS

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Margarida Cepêda, Acima do mar das nuvens
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Para a Gisela Ramos Rosa
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Os sonhos insinuam-se, mas não sabes como cuidá-los. Ficaste refém duma ideia que te foi vendida, ficaste refém da tua fraqueza.
O teu corpo, conduzido por mil e uma variáveis, das quais continuas a desconhecer a origem, reclama constantemente. Chegou a hora de abrires as portas àquilo que mais receias, de te deixares conduzir pelo fogo que te agita.
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domingo, 14 de julho de 2013

QUASE DIÁLOGO EM FIM DE TARDE

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Hélio Cunha, Vestígios de um mar inexistente
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- A nossa memória é tão curta, Pedro.
Silêncio de anuimento. Ela vira-se, olha-o nos olhos e prossegue.
- Há momentos em que o horizonte tudo promete, tudo parece alimentar, a vida quase faz lembrar um repasto de oportunidades. Mas há outros em que tudo se desvanece, tudo parece virar pó. Para quê, então, tanta ansiedade, tanto desejo de fulgor? Por onde paira o equilíbrio?
Nova pausa, desta vez mais prolongada. Há coisas que requerem o seu tempo, a sua interiorização é luta constante.
- O lado brilhante da vida depressa se esconde, por cada actor em cena há mil em lista de espera nos preâmbulos do guião.
De novo a pausa. Queria-lhe dizer que, para algumas pessoas, a questão não era viver, tudo se resumia a sobreviver. Mas nada lhe disse. As referências são sempre importantes, sem elas a dignidade pouco ou nada respira.
- Sabes, a simplicidade parece ser o caminho certo. Contudo, contrariando o seu significado, alcançá-la dá muito que penar. É tão delicada, essa marota...!
O sol, ao longe, vai-se escondendo. As inquietações, bipolares, preparam-se para o rastilho que irá incendiar a noite.
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domingo, 7 de julho de 2013

O CALOR DAS MÃOS

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Miguel Ângelo, Criação do Homem
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Desligam-se as amarras do convencional, passo irreversível para o vislumbre da arquitectura do entendimento.
O confronto com a nudez, em paisagens pouco definidas, resgata o choro umbilical. O olhar vai-se fixando em minúsculas crateras, pequenos vales, grutas dispersas, instantâneos orientados em convergência disforme. A visão começa a construir referências, integrando os ventos num campo cada vez mais nítido. A pouco e pouco insinua-se a textura do barro, o choro mistura-se com o riso. Aumenta a dimensão do olhar. A percepção do barro amaina o vento, mas não faz desaparecer a inquietude. São tantas as estrelas perante um pedaço de argila...!
É então que se sente o desabrochar da flor, rompendo a ténue fronteira da solidão. As estrelas continuam longe, mas há um calor novo que renova o sentido das coisas. O calor das tuas mãos.
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sábado, 29 de junho de 2013

CATEDRAL DE DELICADOS EQUILÍBRIOS

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Margarida Cepêda, Catedral verde
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Vem, não te prendas em adereços. Aqui, na exaltação do verde, apenas importa o que tens de melhor. Descalça-te, sente a frescura da erva nos pés. Gostas? Olha agora em volta. Tenta encontrar um rumo por entre as linhas, escolhe um lugar onde te sintas confortável. É difícil, eu sei, o impacto é muito intenso. Mas tenta, não deixes de o fazer. Se conseguires mergulhar na seiva e, ainda que a espaços, sentires o seu vigor, vais ver que, a pouco e pouco, começas a sentir a particularidade de cada respirar. Só assim, percebendo cada filamento, cada espécie, entenderás o ponto de convergência. Cada planta é única. As leis do reino vegetal são tão precisas, tão apuradas, que o seu esplendor só faz sentido se se render ao esplendor da água, da terra... E é neste equilíbrio, tão antigo e tão frágil, que se espelha a obra-prima que é a vida.
Vem...
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sábado, 22 de junho de 2013

RUMORES DE ETERNAS PARTIDAS

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Margarida Cepêda, Chegada e partida
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A caminhada já era longa. Tão longa que, aparentemente, já nada restava da partida. Talvez apenas o pó disseminado noutros pós, talvez ténues memórias recolhidas no mais recôndito da caixa negra.
Tudo se fora transformando, tudo se fora diluindo na diversidade, impelindo à reformulação das cartas, cada vez mais incapazes de albergar tantas e diferentes rotas.
Cada pausa era um recomeço, cada tentativa era a entrada num novo labirinto. Tatuados de tantas venturas e desventuras, já nem sabiam bem o que procuravam. Seguiam, simplesmente, à espera dum sinal, duma luz. Um novo lugar era apenas pausa, um novo lugar era apenas ponto de partida.
Quando uns ficavam, havia sempre mais para continuar. E caminhavam, caminhavam sempre...
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domingo, 9 de junho de 2013

RITUAL

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Hélio Cunha, Terra Mãe
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Todos os anos, depois das colheitas, os moradores do vale viviam o mesmo cerimonial. Juntavam-se na praça, à sombra das amoreiras, e expunham preocupações e anseios. Depois, de braço no ar, elegiam o que, entre eles, julgavam mais sabedor, mais capaz, para os conduzir por mais quatro estações.
O eleito, ao raiar do dia seguinte, era conduzido para o cume dum pequeno morro, onde assentava, desde há muito, uma casa circular, toda em xisto, com sete pequenas portas, direccionadas para a envolvência de sete colinas repletas de alfazema, alecrim e rosmaninho. Seria a sua moradia por um dia, sem água, sem víveres. Apenas lhe era permitido uma pequena túnica, herança dos ancestrais, que apelidavam de túnica dos humildes.
A casa era circular, dizia-se, para que os espíritos, bons ou maus, não se refugiassem nos cantos. O eleito ficaria sozinho, em diálogo interior, apenas sujeito aos sons e aos cheiros que transpusessem as sete portas. Comandar não era subjugar, o exercício do poder era coisa demasiado séria para ser deixada ao acaso. A brisa tudo trazia, a brisa tudo levava.
Nesse dia, sabedores da importância do ritual, ninguém trabalhava no vale. Mas todos, em uníssono, tocavam as suas flautas, em suave melodia, tentando aliar-se à subtil mensagem dos elementos.
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sábado, 1 de junho de 2013

(DES)TECER

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Margarida Cepêda, As nossas teias
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Não sabia como, mas aprendera a nadar naquele lago de lama.
Passava por ilhas, muitas ilhas, todas cercadas de muros, a bradar a sua independência. Evitou-as. Continuou a nadar, contornando as jangadas carcomidas, vestígios de adormecidas ousadias, até chegar à margem pedregosa.
Sentou-se, voltado para aquele mundo em convulsão. Enquanto recobrava o fôlego, quase sem se dar conta, começou a pensar em pontes. Eram necessárias muitas, mas o seu número era concreto. Bastava os muros desaparecerem.
Subiu, a custo, a íngreme escadaria, até atingir o exterior. Após curta pausa, começou a contornar a muralha de cor indefinida, procurando uma brecha. A ânsia pouco deixava ver, as paredes pareciam inexpugnáveis.
Parou. Concentrou-se na brisa, na imperceptível ondulação dos musgos, na indecifrável linguagem das pedras, até se sentir o que realmente era: um minúsculo ser sem bússola, com uma pequena sacola de memórias a tiracolo.
Voltou, a pouco e pouco, as costas à muralha. À sua frente, contornando a erupção do fraguedo, uma floresta com toda a espécie de árvores prolongava-se até à linha do horizonte. Abriu os braços, encheu o peito de ar e sentiu o irresistível apelo. 
Enquanto caminhava, lentamente, por entre os arbustos, imbuindo-se de aromas e cores, intuiu que as andrajosas vestes iam ficando, a pouco e pouco, para trás. E quando, finalmente, se sentiu nu, um enorme sorriso lhe começou a adornar o rosto.
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domingo, 26 de maio de 2013

DIÁLOGO EM ESQUINA CONVERGENTE

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- Vejo-te contente, animado. Gosto de te ver assim.
- Ontem testemunhei algo que me reconfortou, que confirmou o que penso sobre o género humano. Por mais que alguém pise, que alguém destrua, há sempre um outro ao lado a tentar construir, a tentar dar lastro aos sonhos. E é essa capacidade que alimenta, que faz caminhar.
- Muitas vezes às cegas, não?
- É verdade que muitas coisas se fazem a tactear, mas que assentam numa vontade indómita de nunca desistir, nunca se conformar, como se a função primária de respirar alastrasse a todos os sentidos.
- Mas é preciso questionar, não achas?
- Claro. É sempre necessário questionar para entender, só assim que se forjam as verdadeiras crenças. De resto, os anseios são os de sempre. As asas, para voar, precisam estar em constante agitação.
- Repara, olha em volta. Há muita gente que apenas quer sobreviver, encontrar ânimo para o dia seguinte.
- Esse é um amplo mar de navegação, um enorme desafio à espécie. Quem navega demasiado à vista tem que começar a ousar mais, a descobrir-se, a exigir novos sinais. Assim, da forma como se instalaram, são presa fácil dos predadores.
- Talvez. Contudo, parafraseando a poeta, também há quem queira viver tudo numa noite...
- Pois há, mas também há quem queira ver mais longe, quem queira arriscar perder-se a procurar, aprendendo a aquietar o ego enquanto se dilui na imensidão. E um caminho, seja qual for a sua dimensão, deixa sempre vestígios.
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sábado, 18 de maio de 2013

VASSOURADAS DE GIESTA COM CEREJAS AO FUNDO

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Imagem do Google
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As cerejas, sempre tão desejadas, parecem prenhes de esperança, mas já nem a promessa do delicado rubro doce nos anima. No peito fervilha a insatisfação, o desespero, o sabor amargo da aura dos vendilhões do templo.
Na natureza, eterna confidente, ainda perdura o aroma da flor da giesta, mas a hora é de artesanar, de cantar, de agir. Uma vassoura de giesta, tecida com convicção, poderá ser fio condutor de vontades mil.
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Imagem do Google
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No meu país andam ganapos perversos à solta, que de tudo escarnecem, de tudo riem. 
No meu país esqueceu-se, nas voltas do medo, do efeito balsâmico de dois bons açoites.
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sábado, 11 de maio de 2013

AROMAS DE MAIO

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Frida Kahlo, Despertar 
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No vale todos se conheciam, todos identificavam a tosse e o riso uns dos outros. A brandura dos dias fazia-se em diálogos com plantas, trocas de chás e estórias pitorescas, equilíbrios bordados em padrões naturais.
Pedro chegara em Maio, quando os aromas inebriavam, incontrolavelmente, os sentidos. Fora incumbido de instalar um posto médico no vale, de levar luz a uma terra de luz. Chegara com uma mala cheia de sonhos, de tudo transformar, mas depressa percebera que, ali, o sentido da vida tinha outra configuração. Pouco sabiam da ciência dos manuais, é certo, mas pareciam conhecer, desde sempre, o murmúrio das águas e o rumor do vento. E, a pouco e pouco, fora transformando o conteúdo da mala. Já não queria tudo mudar, apenas acrescentar algo ao que lhe parecia a mais genuína fonte de viver. Equilíbrios geram equilíbrios.
Muitos anos se passaram. Quem o enviara instalara-se em torre de marfim, decorada com brinquedos caros, cada vez mais caros. O discurso mudara. Já não se falava em chegar às pessoas, mas sim em custos de infra-estruturas, em custos de manutenção. Nunca no custo dos brinquedos.
O posto médico fechou, mas Pedro não partiu. Divide os dias a ler, a tagarelar, a cuidar da horta, a assistir quem dele precisa. Por esta altura, nos fins de tarde, todos identificam o seu lento caminhar pelas ruas, a absorver os aromas de Maio.
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quarta-feira, 1 de maio de 2013

ACERCA DOS ENCANTAMENTOS

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Salvador Dali, Barco com borboletas
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Ia e vinha, sem pedir licença.
Quando chegava, mesmo no pino do Inverno, a paisagem do vale transfigurava-se, como se tudo tivesse a leveza da brisa estival do fim de tarde. Ninguém perguntava por onde andara, ninguém lhe cobrava a ausência. Davam-lhe espaço, sorriam-lhe, contentavam-se em respirar a sua aura.
Nesses dias de encantamento, de indefinível fio condutor, todos se deitavam mais tarde, todos se levantavam mais cedo. 
Não se demorava muito, que seres assim não querem amarras, apenas o tempo suficiente para que as luzes se mantivessem acesas. Depois prosseguia, em serena translação, semeando esperanças no ar.
Há pessoas assim. Não se sabe de onde vêm, que conjugações astrais as geraram. Delas apenas se sabe que nasceram para encantar.
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quinta-feira, 25 de abril de 2013

SEIVAS DE ABRIL

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Aguarela de Ana Pintura
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Os cuidados com as árvores começaram mais cedo. Fizera uma ou outra enxertia, cavara, estrumara, podara.
Entretanto, cansada de jogar às escondidas, a primavera assomara, começara a sorrir, abrindo portas à grande azáfama na horta. Com a compostagem no ponto, feita com as plantas da época anterior, em estágio invernio, delineava-se o melhor local para as diversas plantações. Na terra já havia couves, alhos, morangueiros, favas e ervilhas, mas o grosso da horta estava por fazer. E, com o tempo, isso tornara-se um ritual. As passadas sucediam-se, de cá para lá, de lá para cá, mas a dúvida era companheira frequente.  Aqui as cebolas, depois as alfaces, os tomateiros, os feijoeiros. Talvez a seguir as plantas aromáticas, pensou, são inibidoras das pragas, depois as beringelas, os pepinos e os pimentos. Mas ainda faltavam as abóboras, os melões, as beterrabas...
Os desenhos sucediam-se, queria conciliar a harmonia das plantas com a fluidez da colheita, mas muitas voltas havia por entender. A horta era uma descoberta constante, cada espécie requeria um especial cuidado, adequado à sua sensibilidade. Aconselhara-se com este e aquele, mas depressa intuíra que a cada cabeça, sua sentença. Parecia haver um princípio geral, é certo, mas quanto à essência de cada planta, só tentando, só sentindo. Se fórmulas houvesse, talvez a formada nas memórias do avô, atento observador dos astros e amigo da passarada, fosse a mais adequada: a horta gosta de pequenas delicadezas, de namorar, de ver o hortelão todos os dias.
Hoje, bem cedo, a horta viu-o chegar de rubro cravo na mão. Se tinha que conhecer a sua essência, também ela teria que conhecer a sua.
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terça-feira, 16 de abril de 2013

ESTRANHA MELODIA

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Hélio Cunha, Estranha melodia
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Partira bem cedo, mas a ascensão não fora fácil.
Quando chegou, após curta pausa, escolheu quatro pedras e colocou-as à laia duma rosa-dos-ventos. Sentou-se no meio, orientado para o sol, e olhou em volta, demoradamente, como que a absorver o que o rodeava. 
Cerrou os olhos. O silêncio, a pouco e pouco, foi ganhando asas, abrindo portas a melodias até então alheias ao ouvido. A princípio, ainda imbuído do pó da planície, não encontrava o copo com que beber as notas da estranha pauta. Demasiada física, pouca química. Depois, já alheio à ditadura do tempo, começou a perceber a linguagem da brisa na pele, nas pedras, nas ervas, bem distinta da discreta presença do melro-das-rochas.
Partira bem agasalhado, mas começava a sentir-se nu. Tudo se conjugava, tudo se envolvia. Mergulhara, finalmente, nos acordes da profunda melodia.
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terça-feira, 9 de abril de 2013

AROMAS DE PERTO E DE LONGE

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Margarida Cepêda, Diálogo
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Quando éramos jovens potros, lembras-te?, olhavas, distante, a beleza das tulipas. Dizias que eram demasiado intensas na cor, no rigor das linhas, efémeras em demasia.
Nas luas que foste bebendo, entre o cá e o lá, ousaste abrir a tua caixa negra. A princípio gritaste de pânico, não existia linha de separação entre o anjo e o diabo, mas foste aprendendo, em banho de humildade, a apaziguar a insegurança da tua nudez.
As tulipas nunca serão as flores do teu jardim - preferes as violetas, eu sei - mas já não as renegas. Aprendeste que qualquer pingo de beleza, por mais ínfimo, é melodia que ecoa no jardim das palavras primitivas.
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terça-feira, 2 de abril de 2013

RABISCOS DA PERPÉTUA CEGUEIRA

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Salvador Dali, Contador Antropomórfico
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Olhava, do alto da falésia, os barcos que partiam.
Dentro dela conviviam, em constante agitação, laivos despoletados por múltiplos cenários. Uns asfixiavam, outros tendiam a esboçar movimentos do abrir e fechar de portas. Da complexa amálgama, em constante fermentação, ia arquivando ficheiros, sabedoria acumulada que, de tão ciosamente guardada, apenas o pó tolerava por perto.
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sábado, 23 de março de 2013

TEIA DE FRÁGEIS EQUILÍBRIOS

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Imagem do Google
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Já fora verme, gente, flor.
Os últimos resistentes iam descendo, a pouco e pouco, as veredas que conduziam ao vale. Ele subia. Lá longe, na imponente montanha de delicados equilíbrios, queria acompanhar o voo da águia. Era ali que se forjava, sem impermeável, o destino de cada gota de água.
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sábado, 16 de março de 2013

ESGAR POÉTICO EM LOAS DE COTOVIA

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Margarida Cepêda, A Criação de Eva
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Chegavas, à tardinha, quando as cotovias subiam mais alto, em busca do sol, procurando o perpetuar dos dias em loas de desespero. A luz, cativa do movimento ancestral, limitava-se a sorrir, derramando os últimos acordes em efémera eternidade.
Vestias-lhe a pele, naquele mágico instante de mudança, e iniciavas a encenação das mil e uma noites de qualquer anseio. As cigarras faziam-te reverência, e até o rumor das águas parava, assombrado, com o entoar da tua melodia.
Quando chegavas, à tardinha, e as cotovias insistiam em subir mais alto, cada canto era o prenúncio da transfiguração da noite.
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quarta-feira, 6 de março de 2013

ESCONJUROS EM TONS DE VERDE

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Hélio Cunha, A Estação dos Pássaros
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Avesso a conjuras e maus presságios, o ressoar da madeira ecoava pelo vale, entoando cantilenas de pássaros em construção.
Sentias-me habitado, emaranhado em equações de verdes desígnios, e subias ao alto da colina para me trazeres novas do horizonte.
Oferecias-mas ao serão, imbuída de cores, retribuía com relatos da arquitectura das aves. Já os sabias, já a sentias. Nessas horas éramos crentes, o ritual apenas acentuava o brilho das palavras primordiais.
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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

LÍMPIDAS ÁGUAS, ETERNOS LABIRINTOS

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Hélio Cunha, Quantum
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Navegas no rio, sorris, pareces querer abraçar as margens.
No apear, como quem pressente a sombra, dissertas, de súbito, sobre a brevidade, o tempo que se esvai, a areia que se some por entre os dedos.
Noto o teu desassossego, uma quase tristeza, um esboço de baixar os ombros. E sinto que, por mais que tentamos, nunca entenderemos as linhas com que se tece um labirinto.
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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O VALE

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Xana Morais, Acrílico sobre tela
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O enorme vale, sulcado por duas ribeiras que se procuravam, em suave confronto, na extremidade, estava cercado de serranias. Quem quisesse horizontes, por ali, tinha que trepar as encostas, pejadas de pinheiros, com um ou outro carvalho, aqui e ali um castanheiro, a irromperem ao de leve a monotonia do verde carregado. Mas não queriam. Viviam ali por opção, tomada há muito, selada geração após geração.
No vale coabitavam algumas centenas de pessoas. Dizia-se que eram descendentes de todas as raças da terra, mas apenas o encanto da lenda o atestava. Rezava ela que, noutros tempos, representantes de todos os povos se tinham juntado para iniciar uma nova era, e aquele tinha sido o sítio escolhido. Viviam da terra, artesanavam e filosofavam, assim foram forjando o seu caminhar. O andamento do mundo, aparentemente, ultrapassara-os, mas a harmonia alcançada fortalecia-lhes a convicção. E prosseguiam.
As crianças eram instruídas na sua crença, mas ao chegar a maioridade era-lhes dada a oportunidade de a renegar. Atingidos os dezoito anos, numa espécie de rito iniciático, rapazes e raparigas saíam do vale para enfrentar o mundo dos outros. O regresso, se houvesse vontade disso, só era permitido ao fim de dois invernos, tempo mínimo considerado suficiente para se porem à prova. Mas muitos demoravam quatro, seis, dez anos, havia mesmo quem nunca regressasse. Era preciso cimentar a convicção para o fazer, e nem todos atingiam essa maturação. Deixavam-se cativar pelos aromas doutros lugares, pelos seus labirintos, mas o legado que transportavam era tão forte que, aqui e ali, iam deixando sementes, por mínimas que fossem.
Os que regressavam traziam palavras novas, diferentes olhares, a discussão era encorajada e cultivada. Com um ou outro ajuste, a harmonia acabava por se impor.
Dizia-se que eram descendentes de todas as raças da terra. E eles acreditavam.
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domingo, 10 de fevereiro de 2013

À DESCOBERTA DO FUTURO

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Imagem: ShutterStock
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Desmontaram, uma a uma, as peças do gigantesco puzzle, baseado em jogos de luz e sombra, accionado por marionetas dos mais variados semblantes. Riram-se das formas, dos trejeitos, mas depressa perceberam que continuavam no labirinto. As raízes eram fundas, envolventes, estavam arreigadas a pilares tecidos em ideologias de subserviência, sustentadas em pergaminhos do mais bolorento pó.
Um, mais afoito, mergulhou na sombra. Outro se seguiu. E outro. Desses gestos não se ouviu eco, apenas um leve murmurar propício a lendas e cautelas. Os predadores tinham raízes bem sólidas, o seu poder aliara-se a medos e temores.
Um dia, em plena acção de descoberta, uma criança acendeu uma fogueira. Outra se acendeu, duas, três. A luz afastou os fantasmas, começaram a ver mais longe, despertaram os acordes dum novo ciclo desfossilizador de vontades e convicções. E começaram a desmontar, uma a uma, as peças do gigantesco puzzle...
Desta vez não mergulhou um, mergulharam todos. A construção do futuro esperava por eles.


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domingo, 3 de fevereiro de 2013

A MARGEM

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Fim de tarde. A margem do rio, moldada desde sempre por partidas e chegadas, enverga coçado vestido, mas a luz, única, teima em conferir-lhe um toque de dignidade. 
O movimento é forjado em pressas de pão, contas por pagar, mas também em olhares em contra mão, rabiscos poéticos alicerçados em mil e uma histórias que se confundem com o tempo. Os vendedores de miudezas e de ilusões apenas ajudam a compor a paisagem de pressas várias, pintalgada, aqui e ali, com as leves impressões digitais dos turistas.
Os golfinhos partiram há muito, mas as gaivotas, adaptadas a qualquer circunstância, teimam em descobrir o alimento que tende a tornar-se mito para outras espécies, mais imunes a viscosas realidades. 
A canoa já não sulca, mas os saudosos continuam a pintá-la nas telas, desmentidos pelo vaivém dos cacilheiros. Os rostos, espelho da agrura diária, tendem a tornar-se mais contraídos. Só a noite, liberta do afã da sobrevivência, acode ao desespero apressado da margem. É então que as ninfas ressurgem, borboletas efémeras onde despertam, a prazo, os sonhos adormecidos.
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sábado, 26 de janeiro de 2013

ELOS

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Margarida Cepêda, Semente
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Despertaste-me, insuflando vida. Embalaste-me, vezes sem conta, sussurrando melodias que só os bosques, à tardinha, ainda sabiam entoar. Impeliste-me, a custo, sentindo na pele a separação das águas. Olhaste-me ao longe, contraída, com um brilho de quem nunca esquece. E parti.
Quando regressei, já com limos na demanda, quase tudo mudara. Só o canto da lareira, onde me desenhavas as mais belas histórias, se mantinha intacto, como que esperando pela sucessão natural das coisas.
Avivei o lume, aconcheguei-te na cadeira e sorri. Chegara a minha vez de te contar histórias.
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sábado, 19 de janeiro de 2013

IDIOSSINCRASIAS DO RESPIRAR E OUTRAS TOLICES

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Hélio Cunha, Cidadela
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Viver é coisa séria. Podemos pintalgar gestos, tentar abrilhantar os ecos do respirar, mas, mais tarde ou mais cedo, acabamos sempre por ser confrontados com as passadas que demos. Atitudes que, quase sem darmos conta, moldam, significativamente, todo o nosso percurso, decisões muitas vezes tomadas de acordo com cores, dissabores, odores, ou tão só de meras circunstâncias. É o tempo da rebeldia com ou sem causa, de horizontes limitados, de gritar bem alto, é o tempo de olhar para o umbigo. Que, ultrapassado, enfrenta várias bifurcações: seguir o caminho mais fácil, servindo as ideias feitas, ou enfrentar as agruras do espinhoso não, apenas baseado em convicções. A partir daqui não há loas, não há cantos de sereia, cada passo implica sentir o peso de cada movimento, de cada gesto. A cumplicidade pode ajudar, semeando violetas pelo caminho, mas não mais do que isso. É necessário ir fundo, bem fundo, passando pela caverna dos medos, para redescobrir a nossa nudez. Talvez, então, se descubra a simplicidade do brilho das estrelas, da configuração das nuvens, do desabrochar das plantas...
Viver é coisa mesmo séria. Os homens, contudo, teimam em rever-se em si próprios. Por mais tempestades que enfrentem, continuam a querer pôr cuspo no nariz do seu semelhante. Os homens teimam em ser tolos.
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terça-feira, 8 de janeiro de 2013

ADORMECERES

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Chegaste de mansinho
Quando a bruma
Asfixiante
Inundava o fundo do vale
E trazias contigo
Sem nada o prever
O aroma das madrugadas
Com o dia por resolver.
O verde das faias refulgia
Com a claridade instalada
E a cotovia
Prenúncio de sinfonia
Galgava as alturas
Em ânsia ilimitada.
Gostaste do papel
Forjado em conto de fadas
E a cantar bailaste
A sorrir adormeceste
Mas esqueceste
No sono profundo
A função primordial
(Deixaram de bater as asas).
Então o lume
Exigente na atenção
Lentamente esmoreceu
E a bruma
Expectante
Inundou de rompante
A razão do coração.
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