sábado, 29 de junho de 2013

CATEDRAL DE DELICADOS EQUILÍBRIOS

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Margarida Cepêda, Catedral verde
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Vem, não te prendas em adereços. Aqui, na exaltação do verde, apenas importa o que tens de melhor. Descalça-te, sente a frescura da erva nos pés. Gostas? Olha agora em volta. Tenta encontrar um rumo por entre as linhas, escolhe um lugar onde te sintas confortável. É difícil, eu sei, o impacto é muito intenso. Mas tenta, não deixes de o fazer. Se conseguires mergulhar na seiva e, ainda que a espaços, sentires o seu vigor, vais ver que, a pouco e pouco, começas a sentir a particularidade de cada respirar. Só assim, percebendo cada filamento, cada espécie, entenderás o ponto de convergência. Cada planta é única. As leis do reino vegetal são tão precisas, tão apuradas, que o seu esplendor só faz sentido se se render ao esplendor da água, da terra... E é neste equilíbrio, tão antigo e tão frágil, que se espelha a obra-prima que é a vida.
Vem...
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sábado, 22 de junho de 2013

RUMORES DE ETERNAS PARTIDAS

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Margarida Cepêda, Chegada e partida
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A caminhada já era longa. Tão longa que, aparentemente, já nada restava da partida. Talvez apenas o pó disseminado noutros pós, talvez ténues memórias recolhidas no mais recôndito da caixa negra.
Tudo se fora transformando, tudo se fora diluindo na diversidade, impelindo à reformulação das cartas, cada vez mais incapazes de albergar tantas e diferentes rotas.
Cada pausa era um recomeço, cada tentativa era a entrada num novo labirinto. Tatuados de tantas venturas e desventuras, já nem sabiam bem o que procuravam. Seguiam, simplesmente, à espera dum sinal, duma luz. Um novo lugar era apenas pausa, um novo lugar era apenas ponto de partida.
Quando uns ficavam, havia sempre mais para continuar. E caminhavam, caminhavam sempre...
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domingo, 9 de junho de 2013

RITUAL

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Hélio Cunha, Terra Mãe
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Todos os anos, depois das colheitas, os moradores do vale viviam o mesmo cerimonial. Juntavam-se na praça, à sombra das amoreiras, e expunham preocupações e anseios. Depois, de braço no ar, elegiam o que, entre eles, julgavam mais sabedor, mais capaz, para os conduzir por mais quatro estações.
O eleito, ao raiar do dia seguinte, era conduzido para o cume dum pequeno morro, onde assentava, desde há muito, uma casa circular, toda em xisto, com sete pequenas portas, direccionadas para a envolvência de sete colinas repletas de alfazema, alecrim e rosmaninho. Seria a sua moradia por um dia, sem água, sem víveres. Apenas lhe era permitido uma pequena túnica, herança dos ancestrais, que apelidavam de túnica dos humildes.
A casa era circular, dizia-se, para que os espíritos, bons ou maus, não se refugiassem nos cantos. O eleito ficaria sozinho, em diálogo interior, apenas sujeito aos sons e aos cheiros que transpusessem as sete portas. Comandar não era subjugar, o exercício do poder era coisa demasiado séria para ser deixada ao acaso. A brisa tudo trazia, a brisa tudo levava.
Nesse dia, sabedores da importância do ritual, ninguém trabalhava no vale. Mas todos, em uníssono, tocavam as suas flautas, em suave melodia, tentando aliar-se à subtil mensagem dos elementos.
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sábado, 1 de junho de 2013

(DES)TECER

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Margarida Cepêda, As nossas teias
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Não sabia como, mas aprendera a nadar naquele lago de lama.
Passava por ilhas, muitas ilhas, todas cercadas de muros, a bradar a sua independência. Evitou-as. Continuou a nadar, contornando as jangadas carcomidas, vestígios de adormecidas ousadias, até chegar à margem pedregosa.
Sentou-se, voltado para aquele mundo em convulsão. Enquanto recobrava o fôlego, quase sem se dar conta, começou a pensar em pontes. Eram necessárias muitas, mas o seu número era concreto. Bastava os muros desaparecerem.
Subiu, a custo, a íngreme escadaria, até atingir o exterior. Após curta pausa, começou a contornar a muralha de cor indefinida, procurando uma brecha. A ânsia pouco deixava ver, as paredes pareciam inexpugnáveis.
Parou. Concentrou-se na brisa, na imperceptível ondulação dos musgos, na indecifrável linguagem das pedras, até se sentir o que realmente era: um minúsculo ser sem bússola, com uma pequena sacola de memórias a tiracolo.
Voltou, a pouco e pouco, as costas à muralha. À sua frente, contornando a erupção do fraguedo, uma floresta com toda a espécie de árvores prolongava-se até à linha do horizonte. Abriu os braços, encheu o peito de ar e sentiu o irresistível apelo. 
Enquanto caminhava, lentamente, por entre os arbustos, imbuindo-se de aromas e cores, intuiu que as andrajosas vestes iam ficando, a pouco e pouco, para trás. E quando, finalmente, se sentiu nu, um enorme sorriso lhe começou a adornar o rosto.
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