quarta-feira, 30 de outubro de 2013

PEQUENAS NOTAS, CLÁSSICOS EXCERTOS

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Hélio Cunha, Águia voando ao encontro da sua flecha
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Não estava preparado para a solidão da descoberta. Sucumbiu às lembranças, pausou, inverteu a rota.
Regressou, de sorriso ténue, de fartura apenas uma mala de desassossegos. Quando entrou, não precisou de falar, num abrigo há sempre alguém para lavar as feridas. 
Pouco mudou, a não ser o reforço do alimento. És importante, és especial, e surge a força para mais um dia, o alento para o dobrar da esquina.
Vestiu uma camisa lavada. Aconchegou-se, pintou novas telas, desesperou com a eterna tonalidade escorregadia.
Surgem novos impulsos. Voltar é sempre uma forma de partir, mas com mais penas nas asas. No fundo pouco mudou, o pouco é sempre muito. Até as penas caírem.
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terça-feira, 22 de outubro de 2013

POSTAL A PRETO E BRANCO

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A cidade ficou para trás, mas o seu pulsar chega longe, numa agonia estridente, mesclada em contradições submersas em labirintos de desespero. As sirenes uivam, o asfalto é o simulacro duma arena sem regras. A multidão, numa ressaca desesperada de flores pisadas, esbate o desejo de circo, apenas almeja as voltas do pão. A cabeça, a cada passo, baixa um pouco mais. É a dignidade que se vai.
No resguardo do jardim, o mundo a duas cores: num banco, próximo da estátua do poeta, o sem abrigo enrola um desbotado cobertor; mais além, sob a terna capa dos avós, a criança descobre o fascínio da bola a rolar.
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terça-feira, 15 de outubro de 2013

A INDELÉVEL MARCA DE SER

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Hélio Cunha, Os Frutos Prateados da Lua
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O teu olhar, ávido de respostas, segrega alquimias únicas, forjadas em eternas dúvidas, e só tu pareces não dar conta.
Há um rasto de ti - discreto, muito discreto - a que não dás importância, mas que marca quem por ti passa. Pode ser um gesto, a forma de dizer não, o sorriso enfeitado com o teu jeito de olhar o mundo...
Só tu pareces não dar conta, mas enquanto caminhas, plena de dignidade, até os cardos se parecem engalanar com a sua melhor roupagem.
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terça-feira, 8 de outubro de 2013

SINFONIA

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Hélio Cunha, A Terra Inteira
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Quando me pressentias, à tardinha, para lá dos salgueiros, descias, de mansinho, o caminho que ia dar ao ribeiro, enquanto semeavas o aroma das violetas.
Dizias-me, ao ouvido, que a tua respiração se calava para ouvir os meus passos, respondia-te que a minha pele respirava todas as letras do teu nome. E no brilho dos olhos acreditávamos, entre murmúrios comungávamos...
Quando me pressentias, à tardinha, para lá dos salgueiros, era tempo de a ternura se soltar.
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