sábado, 29 de março de 2014

NOME SEM NOME

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Hélio Cunha, Memórias do Absoluto
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Deram-te um nome, número identificador dum qualquer exterior. Lá dentro, contudo, no mais recôndito de ti, habita algo único, que te caracteriza, que verdadeiramente te identifica. Isso é a tua força, aquilo que tu és, substância sem nome de que nem sempre te dás conta.
Cultiva-a, dá-lhe brilho. Na tua ânsia de respirar, tenta dar forma a esse nome sem nome.
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sábado, 22 de março de 2014

ETERNA ESCALADA

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Margarida Cepêda, Solo mineral para violino
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Quando começaste a enfrentar a montanha, jovem potro em constante esquiva,  ainda não domavas o vigor que te atravessava a pele. Tudo parecia eterna primavera.
À medida que subias foste aprendendo a olhar, a bordar espaços recônditos da alma. Não bordavas, tu sabias, limitavas-te a abrir, ainda que a medo, pequenas gavetas com chaves para outras gavetas.
Quando pensavas que o topo estava logo a seguir à próxima curva, descobrias que, afinal, tudo parecia mais longe. Mas teimavas, havia sempre uma gaveta por abrir.
Às tantas, sem fim à vista, sentiste que já não podias recuar. Nem querias, já tinhas entrado noutra dimensão. E, quase sem te dares conta, começaste a reparar na forma das pedras, na força do vento que as moldava. 
As gavetas, embora existindo, esbateram-se. Começaste a sentir cada músculo, cada pingo de sangue, cada molécula de oxigénio. As raras flores que ias encontrando, banhadas pelo mesmo sentir, eram a negação das gavetas com que iniciaste a subida.
Continuaste. Não sabias o que vinha a seguir mas, pela primeira vez, sentias que estavas preparado.
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domingo, 16 de março de 2014

PISCAR DE OLHO - 2

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Margarida Cepêda, Catedral Verde 
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A nespereira sentia-se abandonada. Exibia a promessa de futuros frutos mas, apesar do seu esforço, a terra em volta continuava por cavar. E amuava.
Hoje a nespereira entrou em festa. Toda a terra circundante foi remexida, num aparato repleto de afectos. A terra mostrou o seu seio, retiraram-se as ervas daninhas, o estrume e a água mimaram quem merecia.
O sol, forte para esta altura do ano, faz lembrar ancestrais ensinamentos, preventivos de constipações: é preciso cuidado com a exposição ao astro nos meses com "r" na sua denominação. Sobram Maio, Junho, Julho e Agosto, mas aí já estamos noutra dimensão, mais amiga da sesta. E o chapéu, de aba larga, afasta para longe a preocupação.
As duas amendoeiras, ali perto, já estão a perder a flor, os pessegueiros começam a dar sinal de vida, as figueiras começam a rebentar, as cerejeiras ostentam os últimos dias de gravidez do branco redentor. Abelhas e pássaros banqueteiam-se, as borboletas aparecem não se sabe de onde, o rosmaninho, aqui e ali, começa a ganhar força...
Dou um jeito ao chapéu. O apelo à pausa é constante, há tanto a chamar por mim. E, quanto mais me envolvo, mais sei que pouco ou nada sei. Neste inebriar de sensações, é cada vez maior a percepção do equilíbrio e da delicadeza de qualquer planta, de qualquer ser vivo...
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sábado, 8 de março de 2014

PISCAR DE OLHO

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Pintura de David Galchutt
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Os sábados, por aqui, são sempre dias especiais, envolvidos em naturais condimentos.
Para hoje estava programada a plantação de duas laranjeiras e um damasqueiro, e assim se fez. O tempo, quando em plena comunhão com a vida, ganha outra dimensão. Se tivesse que dar explicações, como justificar as quatro horas que demorei a plantar as três árvores? Como explicar, a quem quer que fosse, que cada momento - cavar, separar as ervas daninhas, estrumar, tapar, regar, atar... - requer atenção, carinho, sensibilidade?
O almoço, sem tempo, é sempre experiência gastronómica à mercê dos ingredientes disponíveis. Acautelados, é claro.
A seguir, como em quase todos os sábados, é tempo de escrita. Normalmente a coisa flui, espontânea, qual jorro em permanente ebulição. Mas hoje, quase sem me dar conta, o olhar começa a prender-se nos livros que me envolvem. São muitos, sem dúvida - cada um veio aqui parar num contexto muito próprio - mas há muito que não lhes pego. Não é por falta de carinho, garanto, continuo a sentir o seu envolvimento, mas, após um passado de múltiplas leituras, o apelo da natureza, lá fora, continua a ser mais forte.
O tempo, em comunhão com as coisas, é alheio a gráficos e balancetes. Frui-se, naturalmente, e, no final do dia, quando os pássaros regressam aos ninhos, sente-se, de forma muito peculiar, a poesia a piscar o olho à filosofia. É nessa altura, mais que em qualquer outra, que as linhas do horizonte encontram o seu exacto lugar.
Percebem, agora, porque é que os meus livros sentem a minha ausência? Contudo, qual almofada em permanente aconchego, eu continuo a sorrir-lhes.
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sábado, 1 de março de 2014

(IN)VENTAR

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Margarida Cepêda, Ela, o violino e vagas
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Forjar a dignidade é tentar construir, camada após camada, alicerces capazes de lograr o vento. Tarefa ingrata, nunca acabada. Enquanto nos contorna, ele vai tecendo, pacientemente, as linhas da nossa imperfeição.
No final parece ficar apenas o discreto rasto da nossa ilusão, mas há sempre algo que a resgata, há sempre alguém que teima em prosseguir. Os ventos da nossa indignidade, por mais que se vangloriem, jamais terão descanso.
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