sábado, 31 de maio de 2014

CASTINÇAIS

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Fotografia de AC, Castinçais da Gardunha
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Inebriados pela exuberância da catedral verde, os deuses adornaram o caminho com fetos, musgos e restos de folhas secas, pintalgando, aqui e ali, uma abrótea, uma cravina, uma flor das sete-sangrias...
Fingia que te procurava mas, verdadeiramente, era por mim que ansiava. Convocava as minhas partes, sorria-lhes, mas havia sempre uma que se esgueirava por entre os castinçais...
Um pouco mais acima, por entre os penedos, o melro-azul, indiferente a humanas cogitações, continuava a tecer loas à vida.
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castinçais - rebentos de castanheiro
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sábado, 24 de maio de 2014

OS MUROS DO NOSSO (DES)CONTENTAMENTO

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Fotografia de AC
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A terra, as plantas, a água que, por vezes, apenas se insinua.
Entre o ir e ficar, uma vontade. Dentro da vontade, o desejo de fazer bem. Cumprido o preceito, dialogar. Com elas, connosco.
Com o tempo, imbuídos na alegação, elas vão argumentando, nós vamos cuidando vendo crescer. E também crescemos, apesar dos muros.
O fruto, corolário do envolvimento, é sempre sentença inacabada.
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domingo, 18 de maio de 2014

FELISMINO

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Fotografia de João Sargo
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Cabisbaixo, sentado frente ao lume, Felismino ouvia o silêncio. Do curral vinha o eco quase imperceptível de meia dúzia de cabras que, para além da companhia, proporcionavam ao velho o leite necessário para fazer um ou outro queijo.
Às vezes sentia falta de dois dedos de conversa, mas habituara-se à solidão dos montes e à companhia dos animais. Os últimos habitantes da aldeia tinham partido ia já para cinco anos, e desde então vivia ali sozinho. Queriam à viva força que fosse com eles, que havia de se arranjar jeito de ficar num lar, mas ali era a sua casa. Ali nascera e ali haveria de morrer. Nunca chegara a casar, e não havia nada fora daquele mundo que chamasse por ele.
Tirou da panela o caldo acabadinho de fazer, encheu uma malga e esperou que arrefecesse um pouco. Lá fora ouvia-se agora o ladrar dos cães, mas não ligou. Era bicho, com certeza, pois ali não passava vivalma, a não ser um ou outro caçador.
Bastava-se da horta e não precisava de muito. Uma vez por mês ia até à vila para receber a parca reforma e, entre dois copos na tasca do Pinto, aproveitava para se abastecer de arroz, açúcar, sabão, umas latitas de conserva e pouco mais.
Há dois anos chegara a ter a companhia duns alamães que para ali vieram viver, à espera de encontrar não se sabe bem o quê. No princípio pareciam entusiasmados, mas fora sol de pouca dura. Conforme chegaram, assim partiram. Não estavam preparados para aquilo, o bicho homem precisa da companhia de outros homens.
Quando acabou de comer foi até lá fora. A noite estava fria e adivinhava-se geada. Apertou melhor o casaco e foi espreitar as cabras, aninhadas no curral. Estavam sossegadas. Depois puxou da onça e começou a enrolar um cigarrito, companhia solitária de todas as noites.
A morte não o preocupava. Sabia que tinha que ir um dia, já vivera o suficiente para aceitar o inevitável. Queria deixar os ossos naquele ermo, onde os animais nasciam e morriam de acordo com a ordem natural das coisas. Era assim que entendia o mundo.
No céu via-se o brilho duma ou outra estrela. Os cães, sentindo algo no ar, abeiraram-se dele à procura dum afago. Na rua deserta era chegada a hora das sombras dos antigos habitantes ensaiarem a sua dança lúgubre.
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Reedição
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sábado, 10 de maio de 2014

FRAGRÂNCIAS DE MAIO

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Fotografia de AC, Gardunha
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Descia a rua, enlevado, refém da fragrância das flores de Maio.
Quando passava à tua porta, epicentro do mundo, a varanda era o local dos milagres por acontecer. Sentia-te por perto, sabedora dos meus passos, o viço dos manjericos era o sorriso que perpetuava o perfume dos sentidos.
O coração, rendido, teimava em ficar, mas continuava a descer a rua trauteando ária interior. As papoilas já se insinuavam na seara, em breve chegaria a época do trigo maduro.
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sábado, 3 de maio de 2014

UMBIGUICES

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Hélio Cunha, Hiroxima, meu amor
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Socorrias-te dos oráculos, mas eles apenas te segredavam o que querias ouvir.
Improvisavas danças ao luar, tentavas descodificar as nuvens, mas a plateia apenas aplaudia, comedida, até justificar o convite e a ceia.
Lançavas as cartas, tentavas ver para lá do espelho, sobressaltavas-te com o despertar dum gato preto. Querias entender, ter tudo ao alcance da mão. Desesperavas.
Hoje, quando acordaste, quiseste ajustar contas com o mundo. Hoje, como sempre, esqueceste-te de olhar para lá de ti. E, inacreditavelmente, a vida continuava.
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