domingo, 29 de junho de 2014

SUSTENTÁVEL LEVEZA

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Hélio Cunha, Vestígios de Um Mar Inexistente
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Sentias o fogo latente, o corpo a reclamar. A chama, incandescente, conduzia-te os sonhos, o peito era escudo onde tudo resvalava. Sentias a poesia na descoberta da noite infinita, na magia do despertar da aurora, na terra onde tudo continuava por lavrar. Intuíste novas palavras, novas linguagens.
Quando aprendeste a pousar, suavemente, no aroma das alfazemas, já sabias que tudo continuava por fazer. Mas passaste a sentir, quase sem te dares conta, o sereno sinal que da alma emana.
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domingo, 22 de junho de 2014

CIGARRADA EM TOM INCERTO

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Fotografia de AC
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Do alto do promontório, em olhar mil vezes ensaiado, as ilhas pareciam cada vez mais ilhas. Ali por perto, em caminhos de contramão, o velho amolador teimava em fazer-se anunciar pelo som da sua gaita. Ninguém o ouvia, mas algo o impelia a continuar. Talvez um dia, quem sabe, alguém parasse para ouvir das suas andanças...
Em grande écran, em esforço para cavalgares a onda, deslizavas, sorridente, por entre as brumas da nossa inquietação. Escolhias a música, sentias-te bem, não desafinavas. Não sabias que, do teu rodopiar, apenas emergia o vazio da origem das brumas.
Clic!
O tempo pára, nada se move. Incidindo sobre a tela, um leve feixe de luz começa por sugar as brumas, a seguir o promontório, por fim o amolador. Um invisível mestre de cerimónias parece emitir um sinal de aprovação.
Clic!
Cavalgas a onda, confiante, enquanto as máquinas disparam. À noite, antes de te deitares, apenas uma dúvida: Lexotan ou Prozac?
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sábado, 7 de junho de 2014

SALTO ALTO NA CALÇADA

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Paula Rego, Swallows the poisoned apple 
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Lias que a vida
Em sentido pleno
Sorria nas coisas simples
Mas passavas
Apressada
Sem tempo para estar
Sem tempo para ver
Em busca de tudo
Em busca de nada.
Procuravas-te
Em pilhas de livros
Conversas de bar
Pinturas criadas
No frenesim das palavras
(Às vezes gemias
Às vezes exultavas)
E com a luz fabricada
Traçavas cenários
A régua e esquadro
Da desejada verdade
Receita volátil
Sem sustentação
Castelos de cartas
Desfeitos no chão.
Quanto mais ouvias
Mais depressa passavas
(Paliativo da dor)
E nem reparavas
Na delicada sinfonia
Dum brinde à vida
Das cerejeiras em flor.
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Junho de 2010
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