domingo, 26 de outubro de 2014

ETERNO FEITIÇO EM QUARTO CRESCENTE

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Margarida Cepêda, Lua crescente
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Quando a noite
eterno e sedutor mistério
envergava as melhores vestes
hálito frio de inconfessáveis temores
aconchegava-te a mim
consagração palpável do fruto
e esconjurava gigantes e duendes
bruxas e princesas
heróis e vilões.
Sentia cada movimento do teu corpo
cada alteração do respirar
almofada visceral
em eterno confronto 
com o humor das ondas.
Quando acordavas
sol intenso adornado de flores
o teu olhar era o filtro do mundo
o teu sorriso o meu sorriso
breve trégua de apertado coração.
Depois
quando já soletravas sol e lua
comecei a levar-te para o quintal
e aí
teatro mágico de mil cenários
continuei a enfeitiçar-te
em incondicional rendição
às teias da minha voz:
era uma vez...
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domingo, 19 de outubro de 2014

DESCOBERTA

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Margarida Cepêda, Descoberta
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Mergulho repetidamente ao mais fundo de mim, pretensão fotográfica do turbilhão das águas. Tento captar o movimento, a densidade, mas em vão. Não há configuração, o padrão refaz-se a cada momento. E surge a constatação. Não sou onda, não sou mar, apenas ínfima gota à deriva.
Olho em volta e respiro o debater de outras gotas com o mesmo anseio. E então percebo. A realidade não é o resultado de um olhar, mas o somatório de muitos, unidos na mesma vontade. Temperado, de preferência, com esperança.
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Dezembro de 2010
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domingo, 12 de outubro de 2014

A CADEIRA

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Hélio Cunha, O anjo e a musa diante das ruínas da Europa
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Mantivera-se sempre à distância. Quando, por fim, se abeirou do cais, os barcos já enfunavam as velas, os porões prenhes de esperança. Não participara nos debates, não vira a construção das naus, não partilhara cuidados e sorrisos. Perdera o bilhete para a viagem.
Aguardou, clamoroso, de braço dado com o tempo, por sinais vindos do horizonte. Em vão. No cais, já carcomido pela ausência de sonhos, até as gaivotas pareciam reféns da velha tela perdida no sótão. Apenas a cadeira denotava algum brilho, apurado pela quente familiaridade do roçar das calças.
Quando vieram os turistas, entre algaraviares vários, ainda permitiu duas ou três fotos, mas há muito que perdera o rasto da alma. Por bom preço, acabou por vender a cadeira.
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sábado, 4 de outubro de 2014

MURMÚRIOS

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Fotografia de AC
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As nuvens e os homens teimam em repetir-se, em ciclos levemente retocados, ópera bufa de aparentes vontades várias.
Nos murmúrios do poeta, a solidão devia servir-se com asas.
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