domingo, 30 de novembro de 2014

DEMANDADA, DE MÃO DADA

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Margarida Cepêda, Acima do mar das nuvens
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Contornavas, num jeito que te vestia a pele, as palavras de curto alcance, com a morte anunciada, e seguias. Não te entendiam, não viam o que tu vias, apontavam-te o dedo. Doía-te, mas sorrias. E continuavas.
Hoje, quando olho para a tua visão abrangente, saúdo o teu sorriso, cada vez mais depurado, a tua ousadia em ler os olhos de Minotauro, o abraçar da solidão do querer saber, do querer ser.
Eu sei que só olhas para baixo nas pausas, nos momentos de arrumar o que transportas, talvez, quem sabe?, na esperança de vislumbrar cumplicidades. São paragens necessárias, o lamber de feridas, a descontrição das opções. Depois, saciada a bolsa de afectos, é o universo que te espera. 
Quanto mais mergulhas, mais pequena te sentes, tamanho é o mistério daquilo que nos envolve. E rejubilas. Mas, por mais que mergulhes, continuas a sentir a ausência do calor nas mãos.
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domingo, 23 de novembro de 2014

QUANDO AS LÁGRIMAS SABEM A MEL

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Fotografia de AC
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Hoje lembrei-me de ti, do jeito como sorrias, da forma como transformavas o fel em mel. Era por isso que, na tua abrangência, todos te procuravam.
Descobriste cedo que, se nos entregarmos ao fatalismo, a vida pode ser dura, agreste, canto choroso sem vislumbre de janelas. Mas, na tua infinita vontade de cantar e de abraçar, até as janelas eram pouco para ti. No teu espírito, avesso a fronteiras, aspiravas à ausência de paredes, que todos se olhassem olhos nos olhos. E, com a força da partilha, temperada num constante sorriso, foste derrubando os muros que te cercavam.
Hoje, no comemorar do aparente fim de certos muros, não há nada que se te iguale. Tu derrubaste construindo, abriste sorrindo, o calor do teu abraço, tão único, aconchegava para lá da esperança.
Hoje lembrei-me de ti, da forma como sentias, da forma como sorrias. É por isso que, imbuídas do teu legado, certas lágrimas têm o sabor do mel.
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domingo, 16 de novembro de 2014

CRONIQUETA DUMA MANHÃ DE SÁBADO

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Imagem tirada da Net
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A chuva, imune a injustas reclamações, conjuga o verbo persistir. 
Espreito, por detrás da vidraça, uma aberta, uma pequena folga que seja, e dirijo-me para o lado dos pinheiros. As gotas que escoam dos ramos, a dar o melhor delas, ainda me piscam o olho, mas falta-lhes o delicado toque solar, caleidoscópico porto de embarque para outra dimensão. Não, hoje não há milagres, as botas teimam em resmungar contra o terreno demasiado mole.
Tu bem perguntas para onde vou, mas raramente sei para onde. Não, hoje não há milagres, apenas sobram pequenas certezas. Hoje, com a tal música como pano de fundo, vou dialogar com a lareira.
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domingo, 9 de novembro de 2014

DELONGAS NO ESVOAÇAR DE VERDADEIRAS ASAS

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Tarde de domingo. Rompendo por entre as nuvens, um raio de sol ousa temperar o frio, que já se faz sentir nos ossos, mensagem amiga para retardar o acender da lareira.
Tinha acabado a faina que envolveu sal, alho, louro, orégãos e cascas de citrinos, retoque final na conserva de azeitonas retalhadas. Com o ar de satisfação das coisas feitas, passo ao lado da nespereira, árvore com obscuro contrato primaveril, e ouço as abelhas. Sustenho a respiração. Dentro de mim dispara a tecla da sempiterna maravilha.
Volto atrás para me socorrer da máquina, procuro-as, mas elas são esquivas. No cerimonial do seu labor, um intruso é sempre um intruso.
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Insisto, envolto por inteiro na perfeita laboração. E, de tanto me imiscuir, dou-me conta que me legaram um labirinto.
Sorrio do óbvio. Quando olhamos para o que nos rodeia, e por mais que argumentemos com a nossa inteligência, a ignorância, ainda que por vezes aveludada, é o que melhor nos caracteriza.
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Fotografias de AC
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sábado, 1 de novembro de 2014

ACERCA DO DEPURAR DAS TEIAS

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 Hélio Cunha, Antemanhã


Há um círculo onde te resguardas, tecido na linguagem das letras, quase sempre no breu, com ténue vislumbre dum raio solar.
Há um silêncio que perdura nos livros que guardas, fogo latente até à eternidade.
Há algo em ti, por mais que labirintes, que me leva a chamar-te amigo.
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