domingo, 27 de dezembro de 2015

DA ESQUECIDA ARTE DE BEM VIZINHAR

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Fotografia de Cropping View, Telhas de vidro
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A Ti Joana tinha milho na arca, a vizinha tinha galinhas.
A Ti Joana, que tinha milho em demasia, deu parte à vizinha. A vizinha, que tinha muitas galinhas, deu uma poedeira à Ti Joana.
A galinha poedeira pôs ovos. A Ti Joana reservou alguns para a galinha chocar, com os outros fez um bolo. E partilhou-o com a vizinha, que lhe perguntou se precisava de sementes de ervilha.
Manhã cedo, quando o canto do galo se fez anunciar, já a Ti Joana aquecia água para o café da manhã. Quando saiu, de cesta na mão, bateu à porta da vizinha e inquiriu:
- Maria, vou à horta. Queres que te traga alguma couve?
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sábado, 19 de dezembro de 2015

CONTO DE NATAL

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Fotografia de JB
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A década de sessenta iniciara-se há pouco.
Na aldeia, inclinada à inclemência dos gelos da Estrela, não se poupava na lenha. Em casa do Luís Pereira o lume crepitava desde muito cedo, inundando a cozinha com um calor só visto nas grandes azáfamas.
Da horta, logo de manhã, tinham chegado as mais apetecíveis couves, que iriam fazer companhia, na Consoada, ao bacalhau já demolhado, comprado na mercearia da menina Amélia. Mas havia ainda muito que fazer: só de doces ainda faltavam as filhós, que seriam fritas a meio da tarde, as rabanadas, o arroz doce...
O João, cinco anitos de gente, cirandava pela casa tentando não perder pitada de todo aquele movimento, só visto naquela altura do ano. Enquanto a mãe e as irmãs davam voltas à massa para as filhós, o pequeno não arredava pé, como se toda aquela lida desse asas ao encantamento com que vivia a época.
- Oh João, vai brincar lá para fora!
É o vais! O João empolgava-se a respirar todos aqueles preparativos para "a noite mais longa do ano", como dizia o pai, e só quando era preciso reforçar o lume é que ele condescendia em ir ao quintal para trazer mais uns cavacos. Era preciso aquecer bem a casa para receber o Menino Jesus!
Durante a fritura das filhós, toda a casa se via envolvida em cânticos. Enquanto lhes davam forma e as colocavam no azeite quente, as mulheres entoavam, em louvor do Menino:
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........Ó meu Menino Jesus
........Ó meu menino tão belo
........Só Vós pudestes nascer
........Na noite do caramelo.
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À Consoada, após a oração dirigida pelo chefe da casa, as atenções centraram-se no bacalhau e nas couves que, a pouco e pouco, iam desaparecendo de duas grandes travessas. Aos dois filhos mais velhos, já homens feitos, foi-lhes permitido acompanhar o pai e o avô num copo de vinho, que a ocasião era de festa. A noite ia decorrendo, animada, como seria de esperar numa mesa com dez pessoas irmanadas pelos mesmos sentimentos. As filhós e as rabanadas iam temperando a conversa, que alternava aqui e ali com as canções que as mulheres tentavam impor e a que todos aderiam...
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........Da vara nasceu a vara
........Da vara nasceu a flor
........Da flor nasceu Maria
........De Maria o Redentor.
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Ainda a mesa da Consoada não estava apanhada e já o João, afoito, corria para a cozinha, na ânsia de colocar os sapatos para a prenda do Menino Jesus. Ainda esboçou um gesto para levar também as botas feitas no Zé Brás, o sapateiro da terra, para ver se o leque das prendas aumentava, mas os olhos da mãe disseram-lhe que não valia a pena. Pouco depois recebeu ordem para ir para a cama, enquanto os mais velhos, com outro estatuto, saíam para a missa do Galo, a que se seguiria uma ida ao madeiro, que combatia o ar gelado da noite no adro da igreja.
No dia de Natal, bem cedinho, ainda antes do galo cantar, o João foi o primeiro a levantar-se. Com o coração aos pulos, correu para a cozinha e galgou a distância em dois tempos. Pegou no embrulho que estava junto dos seus sapatos, atado com um grosseiro cordel, e desembrulhou-o logo ali. Então, deslumbrado, pegou na camisola e nas calças novas e levou-as, instintivamente, ao seu corpito de menino. Que bem lhe ficariam na missa de Natal!
A manhã custou a passar, pois nunca mais chegava a hora de vestir a roupa nova. Ansiava pelo momento de subir a igreja, de peito inchado, exibindo a roupa para os amigos. Quando, finalmente, chegou a autorização da mãe, ele e os irmãos partiram para a igreja, onde os aguardava o encantamento das enormes figuras do presépio que o padre Nicolau tinha mandado vir do Porto.
Enquanto faziam o caminho o João continha-se para não correr. Queria chegar à igreja o mais rapidamente possível para ver o presépio, mas com a roupa direitinha. Contudo, os cânticos que se ouviam ao longe ainda acirravam mais a vontade de chegar depressa. Os irmãos, que lhe notavam a ansiedade, sorriam uns para os outros. Apesar das partidas que ele lhes pregava, gostavam muito da vivacidade do irmão mais novo, e sabiam o que ele estava a sofrer para dominar a sua vontade. Às tantas, já com a igreja à vista, o pequeno não se conteve mais e começou a correr. Os irmãos ainda tentaram segurá-lo, mas quem o conseguiu foi uma pedra solta no meio do caminho, que o fez estatelar no meio do chão.
Voltou para trás, a soluçar, vergado à enorme desilusão de ver a sua roupa nova toda enlameada. Nada o parecia reconfortar. Só a Maria José, com o jeitinho e a paciência que só as mães têm, o convenceu a vestir outra roupa. E o João, que sonhara com uma entrada triunfal na igreja, subiu a coxia de cabeça baixa, só estacando em frente do presépio. Então, à vista daquelas maravilhosas figuras, o miúdo começou a esquecer-se da roupa que vestia. Deitou os olhos para o Menino e, qual milagre de Natal, teve a certeza que Ele também olhava para si. E sorria-lhe.
Durante o almoço toda a gente estranhou o silêncio do João. Não que ele estivesse triste, longe disso, mas mostrava-se tão ausente do que tinha no prato que parecia longe dali, absorto em mil pensamentos. Mas o que passava na sua cabeça devia ser coisa boa, pois de vez em quando esboçava um sorriso. E só mais tarde, quando lhe puseram uma taça de arroz doce à frente e o viram desenhar um menino com a canela, é que perceberam o encantamento que ia na alma do pequeno.
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sábado, 12 de dezembro de 2015

APOLOGIA DAS PEQUENAS BRISAS EM TEMPO DE TORNADOS

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Fotografia de AC
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Quando ontem, ao final do dia, me despedia do revoltear da terra, vi-te passar, determinada, como quem domina o destino. E eu, que apenas tento entender-me na aparente simplicidade das voltas do sol e da lua, fixei-me na convicção que transportavas, no quase hipnótico cadenciar dos teus passos.
Avançavas, firme, sem enjeitar o caminho. As árvores, quase despidas, lamentavam a escassez de pássaros para saudar a tua passagem.
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sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

ACERCA DOS INCONTROLÁVEIS BRINQUEDOS DOS MODERNOS FEITICEIROS

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O ser humano já demonstrou, quase à exaustão, que não sabe ser senhor do seu destino. Reformulá-lo, tal a evidência, não é o problema, a verdadeira questão surge no tipo de reajuste, em quem o controla. E voltamos ao início, à luta pelo poder. Só que as armas, hoje, estão muito além do(s) feiticeiro(s).
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sábado, 5 de dezembro de 2015

ACERCA DA CONSTRUÇÃO DE PROFUNDOS SORRISOS

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AC, Caminho velho
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Perguntas-me, em jogo matreiro, com quantas teias se tece a vida. Sorris, fruindo no meu rosto breves decomposições, até estabilizar no teu sorriso. E como sorris, caramba!
Tu sabes, de cor, o que me move quando percorro novos caminhos, mas ainda te interrogas quando insisto em revisitarmos o que está para lá das luzes, em trilharmos o que já ninguém trilha. A questão não se prende com memórias, que ambos cultivamos, mas com a possibilidade de espreitar o futuro por ali. 
É a minha vez de questionar, de expandir sorrisos, de aguardar pela tua mudança de expressão. E viajo no teu ar surpreso, desprevenido, até surgir a descoberta. 
Nessa altura, quando os sorrisos se reencontram, o velho e o novo refundem-se. Tu sabes, eu sei, o importante é caminhar.
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sábado, 28 de novembro de 2015

(A)BORDAGENS

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Fotografia de AC
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Chegaste, ao fim da tarde, quando me debatia com o arrumar de algumas palavras, quase sempre esquivas. 
O sol, já muito inclinado, resistia ao ocaso, naquele período em que a luz, quase mortiça,  e ainda que por breves instantes, realça os recantos mais tímidos da alma.
Trazias palavras de indagação, bordadas em sorrisos, mas os teus olhos eram mais fiáveis. Querias saber, questionar, embora de forma delicada. Sabias que, em lugares onde esvoaçam os pássaros, a harmonia não é palavra vã.
Queria mostrar-te as abelhas, em contramão, no afã das nespereiras, mas o astro, quase de inverno, esgueirava-se. Na abordagem das estações, num outono prestes a passar testemunho, já poucas palavras respiram, a maioria está em pousio. Os pássaros continuam a esvoaçar, é verdade, mas apenas os guardiões dos ínfimos pormenores, a preparar terreno para os anunciadores da primavera.
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Margarida Cepêda, Chegada e partida
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sábado, 21 de novembro de 2015

A MINHA ILHA

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Margarida Cepêda, Ela, o violino e as vagas
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Gosto de ilhas. Com pontes, com boas pontes, daquelas que, por mais robustas, saibam respeitar o sentido de ser. Só assim as ilhas fazem sentido. 
O mar, por vezes, dando correspondência à agitada movimentação das nuvens, cada vez mais carregadas, agita-se desmesuradamente. E ameaça, galga, esforça-se por dar sinais. 
A minha ilha não é diferente das outras: nela vive-se, chora-se, canta-se, morre-se. Na minha ilha, contudo, há algo que se solta, que emerge, que apazigua as nuvens que nos ensombram. São pequenas coisas, tecidas em dádivas, em crenças, em partilhas. É pouco, eu sei, é apenas o revisitar da génese de algo que se deseja, mas na minha ilha, por mais que o mar se zangue, o justo nunca paga pelo pecador. 
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sábado, 14 de novembro de 2015

EM BUSCA DO FUTURO

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Margarida Cepêda, Berço
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Eram nómadas por convicção. Traziam consigo, coladas no dorso, conchas de outras eras, medalhas naturais adquiridas no seu deambular.
Vislumbraram há muito o padrão das estrelas, mas continuavam sem encontrar correspondência nos seus passos. Sabiam dos limites da explicação do claro-escuro, perpetuadora de fronteiras, e percorriam os caminhos em busca de novas tonalidades. Tentavam de todas as formas geométricas, mas o brilho almejado, sem eclipse, teimava em não se revelar.
Na sua tentativa de descobrir o futuro, ser nómada tornara-se condição. E, por entre as carícias do vento, a música e a dança tendiam a suavizar o caminho.
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Dezembro de 2011
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sábado, 7 de novembro de 2015

PRESSAS

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Hélio Cunha,Táxi
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Caminhava, apressado, contornando as pessoas com a ligeireza própria dum desesperado. Estava atrasado, mais uma vez, lutando contra relógios, guarda-chuvas, buzinas, semáforos, polícias, carros, vendedores ambulantes, turistas, pombos... tudo quanto lhe aparecesse pela frente. 
Não era sina, era apenas a consequência de tudo querer, quase sem regra, como se o mundo se fosse desintegrar a qualquer momento. Levava demasiado a peito a ideia de falência do sistema, esperança era palavra ofuscada do seu vocabulário. E corria, corria muito, em prol de se satisfazer, às tantas nem sabia bem do quê. Apenas queria viver, tentar viver tudo num instante, com urgência, mas sem procura, sem filtragem, sem aprendizagem...
Corria, interpelava, clamava por um táxi. Com tanto frenesim, nem descortinava que era ele que, rapidamente, se começava a desintegrar.
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sábado, 31 de outubro de 2015

CHICO CAMBÃO

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Pablo Picasso, Cabeças Grandes
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Não era assombração, mas quase parecia. O Chico Cambão, para além de cambar, parecia esculpido para impressionar: olhos alucinados, repentes temerosos, gestos de pregador. E, no jogo de temores e superstições, assim se bastava. De tanto o colocarem à distância, e desde que acomodado - os temores sempre foram fonte de rendimento - pouco ou nada se sentia incomodado.
Num fim de tarde de verão, quando a canícula tendia a descansar, o Chico Cambão, numa das raras surtidas pela aldeia, trilhou caminho frente à tasca do Pinto. Muita gente por ali, era tempo de pausa. Os mais velhos, adivinhando animação, mantiveram-se na sua, que isto de muito viver também traz muito saber. Mas a mocetada, sem rédea nas hormonas, encetou baile de diabretes:
- Chico, no além há sempre a mesma roupa? Nunca te mudas?
O Chico estacou, devagar, como se quisesse contrariar os seus repentes. Aos primeiros sorrisos dissera não, mas agora não se calou.
- E tu? Por que te mudas, se as almas cada vez estão mais mudas? Por que falas em mudar, se estás sempre no mesmo lugar? Tu nem sabes falar, só sabes é ladrar!
O Chico, por entre imprecações da malta, lá seguiu o seu caminho, juntando mais uma acha à sua lenda. Desdenhando dos mais novos, os velhos, mansamente, como só eles sabem, deleitavam-se a desenhar sorrisos.
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sábado, 24 de outubro de 2015

TELA OUTONAL

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René Magritte, Princes of Autumn
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Os últimos fenos, temerosos da chuva, já estavam recolhidos, cortara-se a lenha para o Inverno, na despensa predominava o aroma a maçãs maduras. Tu, no entanto, parecias já não olhar. 
Doem-me os olhos de tanto já ver, argumentas, a consciência da mortalidade retira encanto à tonalidade das folhas. E, depois, perante o inevitável, para quê inventar novas formas de comunicar?
Eu sei que não é bem assim. Talvez, no fundo, queiras um pouco mais de atenção, mas noto que, com o passar dos dias, há um translúcido fio de desassossego que vai roendo, lentamente, o brilho dos teus olhos. Já nem o cheiro a pão, acabadinho de fazer, te faz exaltar os poemas vivos.
Enquanto lês, junto à vidraça, um tímido raio de sol vem aconchegar-te o regaço. Pareces não ligar, mas gostas. Então, de forma subtil, enquadras melhor o livro na suave luz. O gato, aproveitando a brecha, vai, tranquilamente, aninhar-se no teu colo.
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sábado, 17 de outubro de 2015

ÁGUA FRESCA

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John William Waterhouse, Diógenes
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Partiu, pleno de ilusão, com blocos e blocos de folhas virgens. Não queria deixar em claro todo e qualquer ínfimo pormenor da sua demanda.
À medida que sentia o pó, o sol e o frio a tatuar-lhe a pele, começou a escrever menos, muito menos. O papel, a pouco e pouco, começou a ter outras utilidades. Para além do que via, apenas interessava o que sentia. E, na repetição dos gestos dos homens, a monotonia começou a roer-lhe a alma.
Um dia, quando a secura dos lábios se tornava quase insustentável, uma mulher, surgindo do nada, ofereceu-lhe água fresca.
Quando retomou o caminho, recobrado, sentiu-o suavizado com as palavras do inesperado poema.
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domingo, 11 de outubro de 2015

DA ARTE DOS DISCRETOS MILAGRES

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Margarida Cepêda, Magia
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Olho para ti, maravilhado, enquanto te elevas para lá do bradar da multidão. 
Nunca as barricadas estiveram tão inquietas, mas já percebeste, com suor e lágrimas, que a unanimidade é mera figura de retórica. Aprendeste a sustentar-te nos teus passos, na paciente construção do teu edifício, na depuração do ruído circundante. 
Eu sei que, nos dias de sol, gostarias que as certezas fossem mais sorridentes, mas sentes, à medida que avanças, que a incerteza é a tua verdadeira companheira.
Lembras-te, por vezes, da raposa e do Principezinho, da necessidade de cativar, de seduzir. É quando percebes que, quanto mais as curvas do caminho tendem a ser solitárias, mais a cumplicidade e a partilha são premente terreno a cultivar. Sempre. Só então, no filtro dos homens e dos elementos, a magia pode acontecer.
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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

FAZ DE CONTA

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"O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas".
Charles Bukowski
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Passou, envolto em névoa,
D. Sebastião a cavalgar.
Sofria tanto a pileca,
Num mar de tanta seca,
Nada havia p'ra resgatar.
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São cromos, meu, são cromos,
Dizia um miúdo, a saltar.
Com o Pedro e o cruzado,
Mais o António rosado,
Já poucos nos hão-de faltar.
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Não faças p'la vida, não!,
Exclama um velho, de soslaio.
Nas voltas que a vida dá,
Para o estrangeiro, já!,
Tudo não passa dum ensaio.
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Para adornar a ementa,
Todos coçam o umbigo.
Que povo tão desnaturado,
A culpa passa-me ao lado,
Ninguém se receita comigo.
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E assim, feitas as contas,
Contas que estão por fazer.
As estrelas chispam nas foices,
Os burros nunca dão coices,
Faz de conta que é morrer.
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sábado, 3 de outubro de 2015

O PASTOR E A OVELHA ESPERTALHONA

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Naquele pasto, como em todos os outros, o mérito estava em conduzir todas as ovelhas na mesma direcção. No final, caso o pastor sorrisse, havia sempre música.
Uma ovelha, sentindo-se mais dotada do que as outras, achou por bem tirar partido da situação. Vós fazeis assim, porque vos dizem para fazer, mas eu só faço porque acho que devo fazer. Apesar do ribombar das palavras, cumpria sempre, mas deixava a dúvida nas outras.
Algumas ovelhas olharam-na de lado, mas outras, às escondidas, não fosse o diabo tecê-las, começaram a deixar-lhe as melhores ervas. A espertalhona, vendo-se lustrar, começou a organizar a sua teia de interesses. 
E foi assim que o pastor descobriu que, investindo em poucas, tinha sempre todas as ovelhas na mão.
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sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O TEMPO DAS OMISSÕES

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Havia um rio. Sem nome. 
Com a chegada dos homens os baptismos multiplicaram-se, a crença baseava-se na perpetuação das designações. 
Agora, após mil essências de aprendizes de feiticeiro, as águas negras foram entubadas, soterradas, conduzidas para outro rio. Também negro. 
Longe da vista, longe do coração. O rio, por omissão, voltou a não ter nome.
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quarta-feira, 23 de setembro de 2015

DÉDALO

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Margarida Cepêda, O Fio de Ariadne
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Há no exercício da escrita algo que te aquieta, te redime. As palavras, a princípio contraídas, vão-se libertando à medida que resolves o enigma do jogo de espelhos. E, qual milagre animado, cada uma parece ganhar vida própria dentro do todo. Um todo circunscrito, é certo, mas ainda assim um todo. Embora ínfimo. Sentes-te bem, a inquietação apaziguou-se. Mas a perversidade do labirinto apenas se esbateu. Amanhã, quando olhares o horizonte, vais voltar a sentir estreiteza na encruzilhada dos rumos.
Gostaria de te dizer que olhasses para as rosas, que absorvesses a arquitectura dos plátanos, mas a tua obsessão não me ouve. Precisas ser tu a descobrir.
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Maio de 2011
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sábado, 12 de setembro de 2015

ACERCA DA LUCIDEZ

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Margarida Cepêda, Acima do mar das nuvens
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Era assim desde que se conhecia: gostava de filtrar, de analisar, de lapidar. 
Quando se deu conta de que isso a afastava das pessoas, tentou várias formas de se olhar para lá do espelho, de resgatar sorrisos alheios. Em vão. Era assim porque sentia, profundamente, que era assim que deveria ser.
Hoje, cada vez mais ciente do seu lugar, os melhores poemas do seu jardim são absorvidos em partilha com os amigos. É nele que os recebe. Com aromas, com sabores, com afectos. Poucos, mas preciosos, verdadeiro sustentáculo duma delicada teia de cumplicidades.
Por mais que as estrelas, eternas sereias do resgate da alma, teimem em tecer loas em noite enluarada, a verdadeira essência da solidão não é, necessariamente, uma forma de navegar a solo.
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domingo, 6 de setembro de 2015

O CANTAR DA TERRA

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Imagem tirada daqui
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Na pequena aldeia, aconchegada no que de melhor o vale tinha, um leve rumor sobrepunha-se aos gestos de sempre. Não chegava a ser inquietude, mas destilava energia suficiente para despoletar discretos arremedos de sobressalto, pólvora seca em prados sedentos de água.
Nos campos faziam-se as derradeiras colheitas, com cheiro a maçãs e uvas maduras. Da serra, enfeitada de eólicas, assomavam nuvens carregadas, anunciando os estertores do mundo, acentuados pelo uivar dos cães em noite de Lua Cheia.
Avessa a fados e lamúrias, a Ti Laurinda, na sua velha casa de pedra, mais idosa que a soma das suas duas pernas, ensaiava nova quadra com que, episodicamente, presenteava as suas galinhas, ou quem mais a quisesse ouvir. A última até já as pedras de xisto a tinham entranhado.
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Olhar p'ra dentro, olhar p'ra fora
Não tem nada que enganar
Se a chuva estiver p'ra vir
Algo está para mudar.
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Enquanto comia as couves galegas, entremeadas com uma batatita e regadas com um pingo de azeite, uma nova quadra ia ganhando forma:
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Antes do vento chegar com força
Acautela a tua telha
Não serás sempre moça
Também um dia serás velha.
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Quando interpelada por alguém, acerca deste seu hábito, a Ti Laurinda sorria, sorria sempre, enquanto encolhia os ombros:
- Que quer, são cá coisas minhas...!
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terça-feira, 25 de agosto de 2015

CANTILENA DE FIM DE TARDE

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Hélio Cunha, A Roda
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No Verão, à tardinha, quando a luz sorria, suavemente, com o aproximar da sombra, insinuava-se a hora do apaziguamento.
No desenhar da cantilena transparecia a vontade de crescer, do olhar envolvente emanava o discreto anseio de proteger. Alimentada por um fogo que ainda não dominavas, só tu, no final, alheia ao despreocupado ecoar dos risos, teimavas em matutar no milagre da maturação dos frutos.
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sábado, 15 de agosto de 2015

INTERROGAÇÕES DUMA CADEIRA DE PRAIA

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Imagem retirada daqui.
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pescada pesca-se com escada?
No sermão de Santo António aos peixes, houve um que ficou pregado?
A solha foi arma de arremesso em lutas territoriais?
A gaivota vota gay?
O lavagante lava o lugar vago?
A santola é uma santa tola?
Para se ter dinheiro, é preciso robalo?
A dourada é a melhor reforma?
A alga é fidalga, ou filha de pais incógnitos?
A cara de pau do carapau desaparece quando este é comido?
A nuvem vem para cá, ou o rei nu vem?
Para abrir uma vala, é preciso cavala?
O desejo da moreia é morar na areia?
O roquete, quando grelhado, pede Herdade do Esporão?
Em noites de lua cheia, a lula ulula, ou pulula?
O atum só ata um, e mais nenhum?
A anchova faz a higiene antes que chova?
tubarão trata por tu o barão. É por isso que, em tempo de novos barões, eles preferem as águas quentes?
Um passo de coelho, num passadiço, não passa disso?
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quinta-feira, 23 de julho de 2015

OS MENINOS, A BOLA E O CÃO

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Hélio Cunha, Trois petits enfants et leur chien
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A bola
Que rebola
Ficou farta de rebolar
Num momento
Sente o vento
E começa a desafiar
O vento passa
Lá vai a bola
Quem a vai encontrar
Não sou eu
Não és tu
Quem nos vem ajudar
Lá vai o cão
A ladrar
As voltas que ele sabe dar
Volta o cão
Sem ladrar
A bola volta a rolar.
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sexta-feira, 17 de julho de 2015

O SECRETO SORRISO DO EFEITO BORBOLETA

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Pintura de Salvador Dali
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Aprendeste, cedo, que toda a atitude tem uma consequência.
No início apenas vias a proximidade, os contornos pareciam perfeitamente definidos. Bastava ousar, enfrentar os medos, a recompensa insinuava-se a cada gesto.
Depois, no transpor das margens, para melhor entender recorreste à configuração da cebola, as camadas sucediam-se umas às outras. E, na descoberta de cada camada, a colateralidade do eterno efeito borboleta, talhada a fel e mel.
Hoje, banhada em diversidade e complexidade, ousas olhar de frente a filtragem interior, afinal a simplicidade é árdua tarefa. E dás-te conta de que, quanto melhor filtras, mais flutuas, como se descobrisses, nas borboletas, a harmonia do bater das asas.
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Margarida Cepêda, Flutuando
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terça-feira, 7 de julho de 2015

PASSARINHO

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Fotografia de AC
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Passarinho, passarinho, que fazes fora do ninho?
Para ter a alma forte, tenho que me fazer ao caminho.
Passarinho, passarinho, não tens medo de ficar sozinho?
A tremer ficava eu, se ficasse dentro do ninho.
Passarinho, passarinho, para onde queres voar?
Não sei onde o voo me leva, apenas quero passarinhar.
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domingo, 28 de junho de 2015

PAISAGEM COM CEREJAS AO FUNDO

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Subia a encosta, sem bordão, à mercê do que lhe oferecia o caminho, mudando, a cada passo, de indumentária. Aqui o verde escuro dos pinheiros, mais além o verde vivo dos castanheiros, em harmonioso enlace com a alternança alquímica de fetos e carvalhos. Para trás ficava o piscar de olho das cerejeiras, eterno canto de sereia para qualquer viajante. E quantos se deixavam prender! Mas continuava, a percepção das coisas assim o exigia.
Às vezes, quando chegava ao cume, parecia que tudo se encaixava. O mundo, visto dali, parecia um enorme puzzle com as peças no devido lugar. Bastava saber olhar. Outras, vá lá saber-se o porquê, tudo parecia desarrumado, em convulsão, sem fio condutor. Era quando precisava de mais tempo, de apaziguar alguma cicatriz mais renitente. Iniciava, então, o ritual. Olhava em volta, à procura do melhor ângulo, e escolhia um local para se sentar, normalmente talhado em granito. Depois olhava, à distância, à espera que fosse tomado pela envolvência. Quando se dava conta, depois de imerso na imensidão, o tempo sorria. Dele e para ele.
Na descida, e já sem canto de sereia, o sabor das cerejas era doce e reconfortante brisa.
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sábado, 13 de junho de 2015

DAS RARAS AURAS

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Olho para ti, deslumbrado, eterno poema de pássaros com ninhos em permanente construção.
O teu olhar, forjado em inquieta vivacidade, não se compadece com lamentos, aprendeu que a luz caminha sempre de braço dado com a sombra. Tal como as poldras na travessia do rio, vais deixando um ânimo aqui, outro mais além, sementeira de afectos irrigadora do que de melhor há nos outros.
Olho para ti, deslumbrado, e deixo que, por momentos, minh'alma se aquiete. Vás para onde fores, a luz e a sombra, conjugadas num perfeito equilíbrio, far-te-ão sempre justiça.
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Poldras - Pedras dispostas de modo a permitirem atravessar correntes de água a pé enxuto. 
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quarta-feira, 10 de junho de 2015

FILOSOFICES EM DIA DE CAMÕES

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Alguns correm, outros navegam, muitos nem uma coisa nem outra. O desejável ponto comum, se o houver, é que cada um, no meio de tantos, saiba qual o seu lugar. Mesmo com as promoções do Pingo Doce e do Continente.
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domingo, 7 de junho de 2015

(IN)CERTEZAS

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AC, Nascente
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Lá em baixo, em pleno turbilhão, moldam-se cabeças, mestres de cerimónia decidem o que comer, o que vestir, o que não ouvir, o que dizer.
Cá em cima a água corre, molda a pedra, nada a parece deter. Mas basta a chuva folgar para tudo, aparentemente, se reconverter. Mas só até voltar a chover. Então tudo se recompõe, tudo se harmoniza, só os homens teimam em não ver, em inventar sem sentir.
Nas andanças da percepção, um pé lá, outro cá.
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sábado, 30 de maio de 2015

LINEARIDADES

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AC, Gardunha
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Entre o passo dado, e o não dado, haverá sempre uma fronteira. Obsessiva, para quem teimar em olhar para trás. Reformulada, para quem dobrar a próxima curva.
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sábado, 23 de maio de 2015

BANHO DE LAMA COM ERUPÇÕES DE VERDE

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Pintura de Carlos dos Reis
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Esbracejara, chafurdara, mas aprendera a nadar naquele lago de lama.
Passava por ilhas, muitas ilhas, todas cercadas de muros, a bradar a sua independência. Evitou-as. Continuou a nadar, contornando as jangadas carcomidas, vestígios de adormecidas ousadias, até chegar à margem pedregosa.
Sentou-se, voltado para aquele mundo em convulsão. Enquanto recobrava o fôlego, ofegante, começou a pensar em pontes. Mas não, não era por aí, os muros apenas cairiam de podres.
Subiu, a custo, a íngreme escadaria, até atingir o exterior. Após curta pausa, começou a contornar a muralha de cor indefinida, procurando uma brecha. A ânsia pouco deixava ver, as paredes pareciam inexpugnáveis.
Parou. Concentrou-se na brisa, na imperceptível ondulação dos musgos, na indecifrável linguagem das pedras, até sentir o que realmente era: um minúsculo ser sem bússola, com uma pequena sacola de memórias a tiracolo.
Voltou, pouco a pouco, as costas à muralha. À sua frente, contornando a erupção do fraguedo, uma floresta com toda a espécie de árvores prolongava-se até à linha do horizonte. Abriu os braços, encheu o peito de ar e sentiu o irresistível apelo. 
Enquanto caminhava, lentamente, por entre o arvoredo, imbuindo-se de aromas e cores, intuiu que as andrajosas vestes iam ficando, uma a uma, para trás, até se sentir completamente nu.

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domingo, 17 de maio de 2015

CARPE DIEM

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Fotografia de AC
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Todos os dias, depois de jantar, gosto de ir até às traseiras da casa, onde se esboça o caminho para a horta, para as árvores de fruto e para a imensidão de plantas silvestres, estrategicamente deixadas a salvo de humanas investidas. Aí, longe das luzes, as estrelas ficam mais perto, mais sensíveis, quase se adivinha o seu sussurro. Momentos serenos, quase levitantes, tentativa de abraço com a compreensão das coisas, longe do titubear devastador dos homens, que teimam em não cultivar memórias, apenas argumentam com as que lhes convêm. Assim se lapidam as questões, grandes ou pequenas, do milagre de cada dia.
Na manhã seguinte, no enquadramento do canto da passarada, assumem-se as cores, cada aroma parece ter um rosto. Carpe diem, dizem, como se as coisas se esfumassem, rapidamente, por entre os dedos. Carpe diem, digo, sentindo a alma, inebriada, ciente do seu lugar na harmonia das coisas.
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sábado, 9 de maio de 2015

TELA

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AC, Pinhal com Estrela ao fundo
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Caminhava, devagar, por entre os pinheiros, decifrando silêncios plenos de vida. A ligeira brisa, sedutora, ajudava a acentuar os aromas e os cantos da passarada, dando ainda mais cor à tela que, quase sem se dar conta, ia pintando interiormente. Lembrou-se da pequena Mira, capaz de, por trás de cada pinheiro, imaginar um duende. Sorriu. Ainda tinham tanto que contar um ao outro...!
Uma pinha, obedecendo às leis da gravidade, caiu a dois palmos, fazendo-o estacar. Olhou para baixo, para a pinha, olhou para cima, para o pinheiro. Tranquilamente. Ali era simples visita, o anfitrião era o pinhal. Como se de mesura se tratasse, apanhou a pinha, meteu-a na mochila e continuou a caminhar, retomando as pinceladas da tela.
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domingo, 3 de maio de 2015

MAIO

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Gardunha, fotografia de AC
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O tempo, sempre o tempo, não se compadece com palavras, apenas regista factos, e vai enumerando, aparentemente sem bocejar, ciclos e contra-ciclos. O Maio dos homens que brotou de Abril parece esfumar-se, cada vez mais, em armadilhas várias, o calcanhar de Aquiles duma sólida construção parece eterna metáfora. Só a Natureza, indiferente a grandezas e misérias humanas, se mantém, intacta, a emitir os mesmos sinais, o mesmo convite...
Maio, maduro Maio, poiso selectivo de aromas e cores em estado puro, activador de anseios, alavanca de esperança. Quase sem se dar conta, nele se embala o desejo de tudo abraçar, desenham-se as promessas de todas as partidas... Maio, génese de utopia.
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Gardunha, fotografia de AC
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domingo, 26 de abril de 2015

ADEUS

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Não, alguém se enganou, ainda não era a hora. Mas um súbito vento, daqueles cobardes, que se acoitam nas trevas, não resistiu ao seu âmago. Quis levar-te, de perfídia, manifestação sarcástica dum poder que nos ultrapassa, que teima em lembrar-nos a nossa frágil condição. 
Não, ainda não era a tua hora. A tua risada cristalina tinha ainda muito gelo para derreter, a tua natural bondade ainda muito que unir. E nós, que víamos luz no teu gargalhar, no teu saber aproximar, ficamos para aqui, órfãos, com tudo para reconstruir, com muito para chorar.
Não, por mais que me confortem, me abracem, sinto que alguém se enganou, ainda não era a tua hora.
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sábado, 18 de abril de 2015

CRESCER

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Fotografia de AC
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Para o Eugénio
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- Mãe, vi um caminho verde, com árvores a despontar. Desponto-o, ou não?
- Tens tempo, filho. O caminho verde tem muito que amadurecer.
- Mãe, vi um caminho de terra, com muito por pisar. Piso-o, ou não?
- Tens tempo, filho. O caminho de terra tem muito que envelhecer.
- Mãe, vi um caminho lindo, com mil sonhos por trilhar. Trilho-o, ou não?
- Vem cá, meu filho, ainda tenho muito que te abraçar.
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sábado, 11 de abril de 2015

ETERNO PISCAR DE OLHO

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Gardunha, Fotografia de AC
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Andes por andares, a caixa negra começa, a pouco e pouco, a ser mais selectiva. E, subtilmente, ela começa a dar de si, a emanar sinais, traduzíveis em inquietude. É então que és posto à prova, mais uma, na encruzilhada dos caminhos. 
No bornal trazes as memórias do que perdeste, mas também muito do que ainda queres ganhar: o cheiro das coisas simples, a verdade, o piscar de olho do tempo, a percepção da grande casa...
Lá no alto, em sintonia com a linguagem da montanha, as feridas, diluídas em eternos sonhos, não carecem de ser lambidas. Os anseios, filtrados na respiração do tempo, colam-se, cada vez mais, à ondulação da tua alma.
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terça-feira, 31 de março de 2015

AROMAS DO VENTO

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Gardunha, Fotografia de AC
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Lá no alto, quando as brisas se cruzam, trocando mensagens, tudo parece, na envolvência, à distância de um passo. 
É apenas um instante, mas o efeito perpetua-se. Os ventos nunca se detêm, raramente se cruzam, mas o aroma que libertam, por mais subtil, é o bastante para avivar o crer, para desejar o teu calor no fim da jornada.
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sábado, 28 de março de 2015

BREVETA

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Fotografia de AC
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Não há lírios, riem-se os canivetes, a alma parece em pousio. Mas não. Por perto, em eterno labor, as abelhas teimam em seduzir o alecrim.
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sábado, 7 de março de 2015

ANTECÂMARA DO CAVALGAR DAS NUVENS

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Margarida Cepêda, Magia
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Há beijos que me deves, sugiro eu, há abraços que nunca me deste, replicas tu, em jogo de adivinhar, olhos nos olhos, o que vai na alma do outro.
Tento seduzir-te com flores de pessegueiro, com a geometria do voo das aves, mas tu acabas por ganhar a contenda. É quando me dizes que, para lá de imaginar palavras, há momentos em que é preciso dizê-las, concretizá-las, pintar a tela com cores nítidas, ainda que com discretos tons com saída para o sonho. Só depois, quando os olhos navegarem para lá do labirinto, estaremos prontos para cavalgar as nuvens.
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sábado, 28 de fevereiro de 2015

A CONSTRUTORA DE MEMÓRIAS

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Margarida Cepêda, Solo mineral para violino
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Fora educada no esforço, na abnegação, a recompensa acabaria por dar à costa. Lutou, desesperou das cunhas dos outros, mas insistiu, insistiu sempre. Nunca se dava por vencida. Pouco a pouco, contra ventos e marés, fora marcando pontos, o sucesso, qual tela em permanente ebulição, começara a ganhar contornos.
O transpor das metas, no início, era pura adrenalina, mas, às tantas, deu-se conta do labirinto. Uma meta nunca era um final, era sempre um início. De outra corrida, de outra meta. E assim se consumiam os dias.
Num dia de chuva, em luta contra o destino, deixou para trás a aura de sucesso, que lhe ofuscava a noção do tempo, e lançou-se à estrada. Na bagagem, para além de "Memórias de Adriano", que nunca acabara de ler, transportava a memória do verdejante vale onde passava, em pequena, as férias com os avós. Não se sentia completamente segura da sua opção, mas agir estava-lhe no sangue. E, no mais fundo de si, acreditava. 
A certa altura deixou a auto-estrada e embrenhou-se na velha estrada nacional, agora quase sem trânsito, memória serpenteante da sua meninice. Abrandou a marcha, abriu o vidro e, enquanto conduzia, deixou-se absorver pela afável presença de pinheiros, carvalhos e castanheiros. Quando chegou ao alto da Portela, porta fronteiriça do mágico vale, parou o carro. Saiu, devagar, dando lastro a um acto cerimonial que a transcendia, e  deixou que olhos e alma se irmanassem, em perfeita sintonia, perdendo-se no deleite da redescoberta. Ao fundo, eterno gigante adormecido talhado em granito, a Estrela enquadrava uma enorme tela sarapintada de árvores, casario e terrenos de cultivo. Começou a procurar a velha casa de granito, que mandara recuperar, não muito longe do rio que recolhia as águas das duas serras. Lá estava ela, minúsculo ponto que iria ser o epicentro da sua vida. À esquerda, aproveitando um ligeiro declive apontado ao sol, iria plantar vinha. À direita, perto do ribeiro que ia desembocar, um pouco mais à frente, no grande rio, parecia ser o local certo para as estufas de framboesas e mirtilos. E ainda havia planos para um olival, para além duma pequena horta...
Regressou ao carro e começou a descer em direcção ao vale. Os castinçais davam agora lugar a milhares e milhares de cerejeiras, prenhes dum delicado branco que em breve iria pintar a encosta. Uma ou outra mimosa, já em flor, dava-lhe as boas-vindas. 
Era impossível não sorrir. Em território de gratas memórias, a apelar à renovação, as de Adriano, pelos vistos, teriam que continuar a aguardar.
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sábado, 14 de fevereiro de 2015

TEIMAR SER, TEIMAR NÃO SER

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Fotografia de AC
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No labirinto dos homens, por mais que se vislumbre, ficam sempre pontas soltas a zombar na palma da mão.
O poeta, na percepção dos dias, dá conta da luz e da sombra na envolvência das pedras, do respirar das árvores, dos caminhos que levam à grande casa do rio, do imenso oceano aglutinador, pacientes anfitriões na busca da relação do justo equilíbrio.
O homem, enquanto marcha, teima em provocar o choro, castrando a poesia que da sua alma emana.
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sábado, 7 de fevereiro de 2015

ETERNAS PARTIDAS, PROFUNDAS MÁGOAS

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Fotografia de AC
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O ninho, rodeado de áridos fraguedos, onde sorria a urze e a giesta, era aspergido no convívio dos deuses naturais com o temor ao supremo. Do filtro da amálgama, forjada no mais profundo da montanha, resultou o compromisso, a honra, a dignidade. Mas o pão, condição fulcral, ia para lá do fermentar das pedras. Havia que procurá-lo longe, quase sem bússola, à mercê do que o diabo amassou.
Deixou para trás as despedidas, as teias de aranha da escola e dos correios, a fábrica de queijos sem vivalma, o largo onde se juntavam os velhos para o último sol. Doía.
No terminal de autocarros, ladeado pelas malas, guardava as mágoas enquanto aguardava as horas. Da pequena TV, quase sem som, emergiu a cara séria dum político, em pose estudada, a louvar os novos caminhos. Ouvia-se mal, mas quase jurava que o ouvira dizer que estávamos a dar uma lição ao mundo. Filho da puta!
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sábado, 31 de janeiro de 2015

PULSAR

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Fotografia da Isabel, do blog Palavras Daqui e Dali
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Há um pulsar que te habita, te conduz os gestos, resistente às madrugadas de frio.
Procuras o calor, apesar de insistires nas vestes da saudade. O teu canto, adornado com pingentes de delicado gelo, suspira discretamente pelo que foi, pelo que podia ter sido. Mas ainda anseia.
Há um eterno pulsar que te habita, te envolve, te impele. Por mais escuro que seja o teu vestido, ficará sempre bem com uma rosa vermelha.
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sábado, 24 de janeiro de 2015

NÓS

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Fotografia de AC
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Sinto-te absorta no mar como já antes fizeras com as pessoas, com as árvores, com as pedras. O semblante, para os menos atentos, parece ter mudado, mas a indagação é a mesma. Rabiscas, interrogas-te, mas a harmónica relação teima em não ser clara.
Aos homens, na sua ascensão, foi-lhes dado lastro sem sustentação. Agora, com demasiadas pontas soltas, tudo questionam, o passado e o futuro tendem a ser ciência oculta. Mas tu sabes que não é assim, e continuas a teimar. Não te rendes. Um dia, quem sabe, talvez as pontas encontrem o seu verdadeiro lugar.
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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

PORMAIORES

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Fotografia  de AC
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O ser humano, eterno nómada em busca da compreensão, transporta, dentro de si, uma mala de insatisfações, bordada de desassossegos. Valem-lhe, no refrigério dos caminhos, os apeadeiros, que são, no fundo, os miminhos das pequenas coisas com que vai adoçando o seu percurso, assim ele tenha engenho ou arte.
Ontem, a caminho da escola, o olhar descortinou, a alma sentiu, a máquina captou. A vida, para além do ruído das grandes parangonas, é, em muito, feita do somatório das pequenas coisas que nos aconchegam e fazem cócegas à alma.
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sábado, 17 de janeiro de 2015

ONDINHA VAI, ONDINHA VEM...

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Margarida Cepêda, Ela, o violino e vagas
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As ondas, com maior ou menor amplitude, parecem emanar todas do mesmo filtro, ter o mesmo padrão. Mas não. À superfície denotam cor, impulso e, mesmo na mansidão, ousadia quase indomável. É nos bastidores, contudo, que fermenta aquilo que verdadeiramente as impele, ordem ancestral filtrada no imaculado pêndulo da conjugação de todos os factores, imune a rezas, invocações e crendices. Apenas as acções contam. 
Quando chegaste, promessa de onda avassaladora de todas as muralhas, tudo se parecia conjugar para a perfeita arquitectura. Espantavas enquanto envolvias, prometias novas telas, novas encenações. Esqueceste, no entanto, o essencial: até para admirar é preciso inventar espaço para respirar.
Ondinha vai, ondinha vem...
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sábado, 10 de janeiro de 2015

(DES)CAMADAS

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Lembras-te, meu amor, daquela música? Sorríamos quando a ouvíamos, ainda sorrimos, apesar de sabermos que não existe a tal canção, ela apenas faz cócegas nalgumas das muitas camadas com que vamos adornando a compreensão das coisas. 
Já falámos disso tantas vezes e continuamos a falar. Umas ao final da tarde, a olhar para a multifiguração dos tons alaranjados, outras à lareira, aconchego ancestral tecido em partilha, em pequenas confidências. Esculpimos, no soprar do mais fino pó, que cada pessoa vai acumulando, ao longo da vida, camadas e mais camadas de segredos, ligados por pequenos filamentos, que são a complexa estrutura, quase invisível, do seu edifício.
Disseste-me, às tantas, que não te querias limitar à descoberta das tuas camadas, querias ousar descobrir as minhas e as tuas, onde convergiam ou se despediam.
Sentias que, na concordância, o meu sorriso era espontâneo. Também eu te queria dar as mãos.
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sábado, 3 de janeiro de 2015

VISLUMBRE

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Fotografia de AC
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Quando, após uma tarde de diálogo com a terra, se fotografaram as ervilhas, os alhos e as favas que sobraram da faina de cultivo, já o sol começava a beijar as eólicas da Maunça, dando amplitude ao rasto dos aviões que riscavam o céu.
Os dias são o que são, tela multidimensional onde navegamos quase às cegas, transpondo portas de azáfama, quase sempre por caminhos bifurcados, mas ao fim da tarde eles têm o condão de se enfeitarem, de desenharem, nas vestes alaranjadas do render da guarda, discretos rabiscos da arquitectura do tempo. É como se, por brevíssimos momentos, num ritual tão velho como o mundo, se abrisse a caixa de pandora, mas apenas o suficiente para dar um pouco mais de côr à ânsia de saber, de sentir, de perceber...
Os dias, em final de tarde, são um vislumbre dos deuses que há em nós. 
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Fotografia de AC
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