sábado, 30 de maio de 2015

LINEARIDADES

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AC, Gardunha
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Entre o passo dado, e o não dado, haverá sempre uma fronteira. Obsessiva, para quem teimar em olhar para trás. Reformulada, para quem dobrar a próxima curva.
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sábado, 23 de maio de 2015

BANHO DE LAMA COM ERUPÇÕES DE VERDE

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Pintura de Carlos dos Reis
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Esbracejara, chafurdara, mas aprendera a nadar naquele lago de lama.
Passava por ilhas, muitas ilhas, todas cercadas de muros, a bradar a sua independência. Evitou-as. Continuou a nadar, contornando as jangadas carcomidas, vestígios de adormecidas ousadias, até chegar à margem pedregosa.
Sentou-se, voltado para aquele mundo em convulsão. Enquanto recobrava o fôlego, ofegante, começou a pensar em pontes. Mas não, não era por aí, os muros apenas cairiam de podres.
Subiu, a custo, a íngreme escadaria, até atingir o exterior. Após curta pausa, começou a contornar a muralha de cor indefinida, procurando uma brecha. A ânsia pouco deixava ver, as paredes pareciam inexpugnáveis.
Parou. Concentrou-se na brisa, na imperceptível ondulação dos musgos, na indecifrável linguagem das pedras, até sentir o que realmente era: um minúsculo ser sem bússola, com uma pequena sacola de memórias a tiracolo.
Voltou, pouco a pouco, as costas à muralha. À sua frente, contornando a erupção do fraguedo, uma floresta com toda a espécie de árvores prolongava-se até à linha do horizonte. Abriu os braços, encheu o peito de ar e sentiu o irresistível apelo. 
Enquanto caminhava, lentamente, por entre o arvoredo, imbuindo-se de aromas e cores, intuiu que as andrajosas vestes iam ficando, uma a uma, para trás, até se sentir completamente nu.

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domingo, 17 de maio de 2015

CARPE DIEM

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Fotografia de AC
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Todos os dias, depois de jantar, gosto de ir até às traseiras da casa, onde se esboça o caminho para a horta, para as árvores de fruto e para a imensidão de plantas silvestres, estrategicamente deixadas a salvo de humanas investidas. Aí, longe das luzes, as estrelas ficam mais perto, mais sensíveis, quase se adivinha o seu sussurro. Momentos serenos, quase levitantes, tentativa de abraço com a compreensão das coisas, longe do titubear devastador dos homens, que teimam em não cultivar memórias, apenas argumentam com as que lhes convêm. Assim se lapidam as questões, grandes ou pequenas, do milagre de cada dia.
Na manhã seguinte, no enquadramento do canto da passarada, assumem-se as cores, cada aroma parece ter um rosto. Carpe diem, dizem, como se as coisas se esfumassem, rapidamente, por entre os dedos. Carpe diem, digo, sentindo a alma, inebriada, ciente do seu lugar na harmonia das coisas.
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sábado, 9 de maio de 2015

TELA

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AC, Pinhal com Estrela ao fundo
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Caminhava, devagar, por entre os pinheiros, decifrando silêncios plenos de vida. A ligeira brisa, sedutora, ajudava a acentuar os aromas e os cantos da passarada, dando ainda mais cor à tela que, quase sem se dar conta, ia pintando interiormente. Lembrou-se da pequena Mira, capaz de, por trás de cada pinheiro, imaginar um duende. Sorriu. Ainda tinham tanto que contar um ao outro...!
Uma pinha, obedecendo às leis da gravidade, caiu a dois palmos, fazendo-o estacar. Olhou para baixo, para a pinha, olhou para cima, para o pinheiro. Tranquilamente. Ali era simples visita, o anfitrião era o pinhal. Como se de mesura se tratasse, apanhou a pinha, meteu-a na mochila e continuou a caminhar, retomando as pinceladas da tela.
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domingo, 3 de maio de 2015

MAIO

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Gardunha, fotografia de AC
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O tempo, sempre o tempo, não se compadece com palavras, apenas regista factos, e vai enumerando, aparentemente sem bocejar, ciclos e contra-ciclos. O Maio dos homens que brotou de Abril parece esfumar-se, cada vez mais, em armadilhas várias, o calcanhar de Aquiles duma sólida construção parece eterna metáfora. Só a Natureza, indiferente a grandezas e misérias humanas, se mantém, intacta, a emitir os mesmos sinais, o mesmo convite...
Maio, maduro Maio, poiso selectivo de aromas e cores em estado puro, activador de anseios, alavanca de esperança. Quase sem se dar conta, nele se embala o desejo de tudo abraçar, desenham-se as promessas de todas as partidas... Maio, génese de utopia.
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Gardunha, fotografia de AC
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