sábado, 30 de janeiro de 2016

ESBOÇO DUM BIBLIOTECÁRIO

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Fotografia de AC
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Os clássicos ficaram-lhe na memória, dos outros apenas leves pinceladas.
De livros já pouco lia, apenas lhe interessavam as pessoas. Acreditava que, na história dos homens, a verdadeira obra-prima ainda estava por forjar. Apesar do esforço, cada vez maior, em se desviar de galáxias de palavras impressas, editadas em luz efémera, continuava a porfiar. Para lá das privações, tecidas em múltiplas ilusões, nas telas imaginadas, em constantes depurações, ressaltava sempre um gesto, um sinal, um anseio.
E assim, lentamente, se foi construindo a imagem dum velho bibliotecário. Não de livros, mas de pessoas.
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sábado, 23 de janeiro de 2016

POSTAL DE FIM DE TARDE

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Fotografia de AC
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Às vezes, na ânsia de tudo entenderes, tudo assimilares, nem sei por onde andas, por onde caminhas. Talvez seja por isso que os rastos dos aviões, nos finais de tarde, parecem esvair-se na vã tentativa de enquadrar a tua demanda.
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sábado, 16 de janeiro de 2016

SAUDADE, O DESTEMPO DO TEMPO

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Sergei Aparin, Three Bridges II
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A aurora era rodapé à mercê das circunstâncias. Uns partiam, prenhes de tudo, outros chegavam, com novas vestes, novos olhares, alheios ao esboço inicial.
Dos que chegavam, com passos mais vagarosos, uns ficavam, procurando conciliar velhas com novas memórias, outros renovavam o bilhete, tentando derrubar o muro da eterna insatisfação.
Entre o ir, com acenos, e o ficar, com murmúrios, desenhavam-se novas construções, pintadas com as cores da alegria, ou da tragédia, dos que chegavam, filtradas na vontade dos que ficavam: umas vezes vingavam os velhos, apoiados na experiência de mil-sóis, outras rejubilavam os novos, alimentados em vontades mil. 
Entre o ir e o ficar, a partida tornou-se uma constante, mas a chegada não tanto. Por entre o lamento do destempo, o poeta, com tempo, avivou a palavra saudade.
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sábado, 9 de janeiro de 2016

O ELOGIO DAS PAUSAS - II

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A terra, preparada há já alguns dias, aguardava pela sementeira das favas, das ervilhas e dos alhos, mas o tempo parecia não querer ajudar. Lembrou-se, eterna imagem, do constante olhar dos agricultores para os céus, cientes do capricho dos deuses no desenhar de cenários. 
As sementes, contudo, estavam a postos, a par da vontade. E, a despeito da ameaça cinzenta, os regos foram-se abrindo, as sementes foram-se alojando. Um ou outro pingo não desmoralizava, apenas fazia aumentar o ritmo. Desta vez não havia tempo para olhares circundantes, os sentidos cingiam-se à tarefa. Rego aberto, estrume, ervilhas. Tapar rego, com a terra com que se abria outro. Mais estrume, mais ervilhas. 
A cadência aumentava, estimulada pelos pingos soltos, anunciadores do que estava para vir. De vez em quando, com a indisposição dos avisos, era mesmo preciso parar. Até os pardais, sempre presentes, se ausentaram para poiso seguro. Eram o mais fiável sinal, a borrasca estava quase a chegar.
Nova pausa na chuva, o insistir na tarefa. A mesma cadência, o mesmo ritual, desta vez com as favas. Abre-se um rego, dois, três... Quando as sementes chegam ao fim, a chuva instala-se, de vez. Ainda se alisa um pouco a terra, mas não há tempo para mais. Com os alhos na mão, em modo de espera, há que correr, e bem, as ferramentas ficam para mais tarde. Apesar de, por vezes, se confundirem, sabia bem que perseverança não rimava com teimosia.
Já no alpendre, no ritual do descalçar das botas, chegam-lhe sinais de casa. A lareira, crepitante, é o cenário ideal para destilar sorrisos no balanço da azáfama.
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domingo, 3 de janeiro de 2016

O ELOGIO DAS PAUSAS

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A terra estava macia, fácil de revolver, piscando o olho à empreitada. O aprendiz, iludido pela aparente facilidade, foi cavando, cavando, enquanto enterrava as folhas, já desbotadas, caídas das muitas árvores que por ali havia. O último resquício outonal cumpria o seu ciclo no revigoramento da terra para próximas sementeiras.
Ao lado, a pedir atenção, as couves galegas continuavam pujantes. Uma ou outra lagarta, mais resistente ao frio, teimava em inquietá-las, mas já pouca mossa faziam. Eram as retardatárias, amantes de qualquer raio de sol, por mais breve, renegando a programada construção do casulo.
Os pardais, alheios ao esforço alheio, andavam por perto. Bicavam aqui, debicavam ali, pousando e levantando voo como se toda a terra fosse um imenso pardalporto. Duas das cerejeiras, ainda jovens, que serviam de poleiro a alguns deles, precisavam ser enxertadas, mas só para o fim do mês, talvez princípios do próximo.
A tarde avançava. Lá no alto, contrariando a lógica das estações, duas cegonhas planavam. O sol ameaçava esconder-se, com os últimos raios  a serem ofuscados com a entrada em cena de algumas nuvens cinzentas, anunciadoras de chuva, provavelmente para amanhã. 
O aprendiz, olhando para o castanho da terra, mira e remira o seu trabalho. Os olhos continuam a brilhar, perdidos naquela arquitectura tão simples, tão própria, quase como se fosse a primeira vez. Saciado, começa a colocar, alheio a pressas, a enxada e o ancinho no carrinho de mão e ruma, em tranquila cadência, para o abrigo das ferramentas.
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