sábado, 26 de março de 2016

ORÁCULO DAS NUVENS

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AC, Nuvens
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Há algo, no vale, alheio ao florir tardio das árvores, que sugere desconforto, inquietude. Sente-se, no ar, o clima das mudanças não desejadas, uma sensação de frio, alheia à geofísica, que tolhe olhares calorosos, que impele ao fechar das portas.
Olho para ti e, por mais que teimes em sorrir, as janelas que aprendemos a partilhar não escondem o que te vai na alma. O mundo está a mudar, cada vez mais depressa, mas nem sempre para melhor. Não era o que querias, eu sei, não foi nisso que te empenhaste. Esboço uma ou outra generalidade, que é depois da tempestade que vem a bonança, mas o barulho surdo da intolerância, cada vez mais pesado, não te deixa acreditar. Falas como se todos fossem teus filhos, teus netos, querias que o mundo fosse uma enorme casa pintalgada de todas as cores.
Por mais que, no mais fundo de mim, continue a encontrar crença na capacidade de regeneração do homem, há momentos em que as palavras de nada servem, são meros escolhos. É hora de te abraçar.
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sábado, 19 de março de 2016

AVIÕES

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Foto de AC
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gosto de os ver passar
de sentir
que há sonhos por trilhar
que há sempre para onde ir
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sábado, 12 de março de 2016

PORTO DE ABRIGO

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AC, Amendoeira
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No sossego do vale o mundo era roda a girar, sem obstáculos, cada  movimento parecia obedecer a ordem divina. O teu riso, suprema dádiva, era homenagem espontânea à vida,  que fruías, sem te dares conta, em total harmonia com a envolvência. A realidade era circunscrita, é verdade, mas era a tua. E acreditavas.
Quando partiste, com mil sonhos na alma, os teus olhos diziam tudo: querias abraçar o mundo. E esbracejaste, lutaste, insististe... De repente, na ressaca da tua navegação por recibos verdes e contratos a prazo, dou-me conta da transfiguração do teu ar: sério, quase sem expressão, a argumentar com falta de esperança. Sentes-te cercada, ameaçada, afinal o mundo não é como imaginaras. E, supremo sintoma, já nem falas das flores.
Ontem, quando chegaste, apesar do teu semblante carregado, gostaria de te ter mostrado as amendoeiras em flor, mas o seu auge passara, vinhas atrasada. Talvez, quem sabe, estes dias por aqui te façam redescobrir o milagre da simplicidade. Não sei se ainda te lembras, mas as cerejeiras e os pessegueiros estão quase a ficar em flor.
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quarta-feira, 9 de março de 2016

ECOS DA BESTA

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Fotografia de AC
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Divago, olhando a terra, como se cada dia fosse um milagre. Houve esforço aqui, houve dedicação, houve a percepção de que cada coisa carece do seu tempo para se manifestar. Sem pressas.
De longe, cada vez mais perto, chegam-me notícias de gente apressada. Os que fogem, ansiando apenas por abrigo, tocam-me a alma, sinto-os como meus, a sua pressa é a mesma da presa acossada. Os que encurralam, contudo, debitam pressas de eficácia. Os números, para eles, estão inflacionados, há demasiadas pessoas a interferir no mau desempenho da fórmula do bem-estar. E é preciso eliminar, eliminar, eliminar...
Olho a terra, divago na sua simplicidade, continuo a senti-la eterno milagre. Mas, por mais que o evite, o eco do clamor teima em aproximar-se. No mundo dos homens, com memória de rédea curta, os ciclos de intolerância teimam em repetir-se.
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sábado, 5 de março de 2016

PERTINÊNCIAS, APARÊNCIAS, URGÊNCIAS E DÉBEIS INDULGÊNCIAS

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Sergei Aparin, Between time II
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Os navios, quase clandestinos, iam e vinham, dando lastro, na sua movimentação, a narrativas que respiravam para lá das telas das santas capelas. Pouco era visível, nada era garantido, mas continham, na sua essência, o suficiente para atear o rastilho da esperança.
Atulhados de ventres ao sol, vindos não se sabe de onde, os cais eram insuficientes para tantas vontades. Queriam ousar, queriam arriscar, deixar para trás a fome, a submissão, as memórias de pedras arrasadas.
Os capitães, antes de conceder o visto, submetiam-nos ao teste do castelo de cartas. Para onde iam, em busca do novo, não queriam mercadoria, queriam substância. E, segundo o boletim oficial, anunciado do alto das sete colinas, só quem preservasse, dentro de si, algum assomo de dignidade, conseguia o almejado embarque. Assim houvesse pêndulos para a medir.
Os barcos, na partida, soletravam sempre a palavra mar: do que iriam enfrentar, vestido de vestes de assombro, da gente que deixavam para trás, com as vestes dos condenados. Cada um, a seu jeito, com uma história por construir.
Segundo os novos deuses, embora o escondessem a todo o transe, o futuro não era para todos.
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quarta-feira, 2 de março de 2016

PROMESSA

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Fotografia de AC
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Quando, nos primeiros dias de sol, assomavas com o teu sorriso, tudo se envolvia na preparação das vestes com que irias adornar os meus dias.
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