sábado, 5 de março de 2016

PERTINÊNCIAS, APARÊNCIAS, URGÊNCIAS E DÉBEIS INDULGÊNCIAS

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Sergei Aparin, Between time II
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Os navios, quase clandestinos, iam e vinham, dando lastro, na sua movimentação, a narrativas que respiravam para lá das telas das santas capelas. Pouco era visível, nada era garantido, mas continham, na sua essência, o suficiente para atear o rastilho da esperança.
Atulhados de ventres ao sol, vindos não se sabe de onde, os cais eram insuficientes para tantas vontades. Queriam ousar, queriam arriscar, deixar para trás a fome, a submissão, as memórias de pedras arrasadas.
Os capitães, antes de conceder o visto, submetiam-nos ao teste do castelo de cartas. Para onde iam, em busca do novo, não queriam mercadoria, queriam substância. E, segundo o boletim oficial, anunciado do alto das sete colinas, só quem preservasse, dentro de si, algum assomo de dignidade, conseguia o almejado embarque. Assim houvesse pêndulos para a medir.
Os barcos, na partida, soletravam sempre a palavra mar: do que iriam enfrentar, vestido de vestes de assombro, da gente que deixavam para trás, com as vestes dos condenados. Cada um, a seu jeito, com uma história por construir.
Segundo os novos deuses, embora o escondessem a todo o transe, o futuro não era para todos.
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30 comentários:


  1. Esses são os desafortunados de hoje.
    Emigrantes... migrantes, pouco importa... a dor é a mesma: abandonar a pátria, os parentes, parte ou a família toda!...
    Por isso, pertinências, aparências, urgências e débeis indulgências!...

    Bom fim de semana, com tudo de bom!
    Beijinhos.


    ✿゚⎠
    ╰✿‿⎠

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  2. Li inicialmente mar como mar, navio como navio... depois transformei tudo em metáfora e fiquei a desejar um pêndulo que medisse a dignidade dos homens... Não leve a mal... meu país anda submerso numa lama tão grande - por vezes literal - que seria mesmo desejável, tal qual os capitães de seu texto, exigir a dignidade antes de tudo o mais.
    Abraço!

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  3. A SAGA DOS HERÓIS DE TODOS OS TEMPOS...SEMPRE É PRECISO OUSAR.
    UM ABRAÇO

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  4. Acho que nunca conseguiremos calcular com exatidão a coragem de quem se dispunha a navegar em outros tempos, quando os conhecimentos náuticos não possibilitavam sequer a certeza da localização em que uma nau se encontrava. De qualquer modo, movida pela curiosidade, pela ousadia, ou mesmo pela necessidade, essa gente que mal compreendemos revelou o mundo... Ao mundo todo.

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  5. Sinais de um tempo tempestade e os navios... Já não sonho!

    Um beijo

    Lídia

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  6. A eterna procura da terra prometida, onde a fome seja substituída pelo leite e mel.
    Um abraço e bom Domingo

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  7. Que bom seria se houvesse um pêndulo que medisse a dignidade!
    Não só dos que pretendem embarcar - quem sabe entre eles não se esconda quem queira embarcar falsas ideologias - mas também a dignidade dos capitães...

    Beijinhos, AC.

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  8. A busca do novo ao mesmo tempo que abria novas possibilidades fazia da jornada uma escravidão.

    Bjs

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  9. tempos que voltam e os sonhos as dores é igual ou maior.
    um texto que me comoveu muito.

    bom domingo

    :(

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  10. Olá, AC.
    Às vezes parece mais fácil empreitar uma odisseia por horizontes desconhecidos, travar guerras com dragões e tempestades, do que enfrentar a verdade e alimentar a honra. E há quem diga que "o homem quando morre deixa a sua honra" (?)

    eu deixo-lhe, por hoje, um abç amg

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  11. Embarcar num navio de esperança, com a dignidade medida e com o coração cheio de vontade não chega para fazer um futuro.

    Um texto magnífico que me emocionou e me cativou, parabéns AC.
    Um beijinho

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  12. E a história repete-se amigo...e as partidas sofridas encerram-se no ou com o teu título.

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  13. Uma excelente alegoria, AC.A dignidade e a possibilidade de construir um futuro andam sempre de mãos dadas. As pessoas não são um meio, mas um fim. O único fim possível e digno.

    Um beijinho

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  14. Não será fácil medir a dignidade mas também não há dúvidas que o futuro sorri aos que a possuem. Beijinho AC

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  15. Os grandes embarques têm sempre algo de imprevisível e desconhecido, e toda a viagem de fuga é crivada de angústia quanto à travessia, já de si arriscada, e quanto ao destino, que pode ser tão incerto e inóspito. Mas a verdade é que a viagem é , tantas vezes, urgente, e os donos do mundo, ontem como hoje não se interessam por "dignidades".
    Prega-se que todos os homens são iguais, mas não o são, porque os comandantes dos desuses assim decidem; que o mundo continue a ser sempre um teatro do absurdo, onde homens , mulheres e crianças em situação de fragilidade são tratados como marionetas.
    Não sei se o texto foi escrito a pensar nos refugiados, mas foi assim que o entendi.
    Um texto excelente, com um título muito eloquente.
    xx

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  16. Caro AC, um magnífico texto que é luz para a leitura dos tempos que vivemos.
    E há ainda aqueles que, faltando braços nas "naus", são arrebanhados contra a sua vontade, sem apelo nem agravo, nas ruas e ruelas de "Lisboa".

    Abraço

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  17. A giesta das Descobertas.
    Que hoje é aqui retratada no Teatro D. Pedro V
    Aquele abraço, boa semana

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  18. "Cada um, a seu jeito, com uma história por construir".Com histórias de de (a)amar ou (des)amar, porque afinal todos nós viajamos com elas enraizadas na vida e na alma. Esta história reportou-me à minha infância e juventude. Como filha de pescadores, ela foi passada entre embarques e desembarques. Muitas noites adormeci apenas com um manto de estrelas a cobrir-me, e sonhava Oh,como sonhava, que um dia eu própria me tornaria uma estrela. É claro que isso não aconteceu, mas hoje quando olho esse mesmo céu, consigo encontrar nele algumas das minhas estrelas que já brilham, faz tempo. Começaram a brilhar primeiro que eu. Um abraço.

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  19. Poeta , a começar pelo título tudo muito pertinente no que tange à dignidade humana . Prevista como princípio constitucional e tantas vezes ignorada . Texto perfeito e emocionante . Obrigada . Beijos

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  20. Um registo histórico interessante! Haverá agora outras marés, outros embarques, talvez mais agressivos e traiçoeiros...

    — "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
    Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
    Ó fraudulento gosto, que se atiça
    C'uma aura popular, que honra se chama!

    beijinho

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  21. A profundidade e atualidade do teu texto é dolorido
    neste sentir que em teus leitores provocam.
    Evidencio o chamado da dignidade tão rara, se
    existissem pêndulos de cristal (no uso) na medição da alma,
    pois deve ser a fonte desta dignidade tão em falta.
    Vejo um mundo de seres sem alma, como se fossem
    rasos e a alma esotericamente e poeticamente
    simboliza essa pureza, profundidade e beleza
    tão preciosas.
    Vejo a tua alma, Poeta,
    sem pêndulo, só com a Poesia!
    Beijo.

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  22. Um embarque... partindo à descoberta de um novo horizonte... de uma nova esperança...
    Um texto... que toca profundamente... também a actual realidade, em que vivemos... de aparências... e débeis indulgências... e de tantas carências...
    Adorei o texto!!! Beijinho!
    Boa semana!
    Ana

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  23. A odisseia das Descobertas, magnificamente descrita por ti, testemunhado nas grandes telas, nas grandes paredes das capelas e dos museus! Grandes artistas, génios que eternizaram a memória ilustrativa destes grandes eventos de outrora! Património, História e poesia!
    Grande momento, AC!
    Beijinho:-)

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  24. Há barcos de corpo inteiro
    muito para lá do cais

    Abraço

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  25. Hoje vão , não para dar “ novos mundos ao mundo “ nem para serem obrigados a praticar pilhagem .
    Vão para manter a dignidade que cá , por palavras e obras , intentaram tirar- lhes .

    Um beijo , AC ,
    Maria
    lilazdavioleta@hotmail.com

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  26. os barcos partem numa viagem... viagem do passado que passa pelo presente e um dia alguns chegarão ao futuro...

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  27. Texto pertinente, querido amigo! A vida é esse barco que outrora se lancou ao mar com escassos meios, nenhuma tecnologia, e muitissimo pavor dos capitães; os capitaes mudaram, as embarcações também; as novas tecnologias transformaram as embarcações em grandes navios, mas...o sonho não diminuiu e a esperança contiua; a esperança de que afinal o futuro, aquele tal "risonho " é para todos.
    E alguém disse uma vez que para se ser feliz é preciso ter o suficiente e é esse suficiente que querem todos aqueles que cedo se colocam junto do cais, esperando o próximo barco que , ao amanhecer, os leve para poderem realizar aquele pequeno sonho que todas as noites têm, serem respeitados como seres humanos que são. É muito? Para a maioria seria o suficiente para se sentirem bem. O barco chega a cada amanhecer e a unica coisa que pedimos é que os capitães tenham a sensatez e humanidade de nos deixarem embarcar, levando connosco a esperança, o sonho, a nossa essência.
    E com essa esperança deixo-te aqui um obrigada pelo belo texto e pela reflexão a que ele nos remete. Boa noite. Um beijinho
    Emilua

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  28. Como o ontem, o hoje e certamente o amanhã, o futuro não é para todos. Infelizmente, também para os que decidem ficar.
    Excelente abordagem à temática.
    Bjo, AC

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  29. Os pêndulos estão viciados, são como a vida, injustos! Que futuro este...
    Beijinhos, belo conto!

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