domingo, 10 de abril de 2016

A HARMÓNICA

.
Sergei Aparin, In memory of my grandfather
.
.
Caminhavam. Não sabiam bem para onde, mas caminhavam. O tempo não se media por instrumentos, era o estômago que ditava leis. O estômago e, acima de tudo, os filhos, mola impulsionadora de todas as intenções, de todos os passos. 
De vez em quando, numa pequena pausa, a harmónica saía do bolso, entoando lamentos e anseios. Alheavam-se, por momentos, do mundo, num forjar de forças que não requeria explicação. Era assim, simplesmente, imitando o deambular do sol e da lua.
Quando encontravam alguém, os sentidos ficavam alerta. Andarilhos de muitas paisagens, conhecedores das grandezas e misérias do homem, procuravam, no interlocutor, sinais de abordagem: se era sensível aos outros, se era mesquinho, se olhava de frente. E agiam conforme as circunstâncias.
No regresso, passada a curiosidade das crias, a ordem instalava-se. Cada grão tinha um preço, cada gesto uma intenção. E comiam, gratos. Só quando a harmónica, em acção de graças, saía do bolso, é que os sorrisos se soltavam.
.
.

35 comentários:

  1. Maravilha. Regressei às minhas origens. Naquele tempo éramos todos andarilhos. Não seguíamos pelo toque da harmónica, mas pelo som das palavras ditas.
    A partilha final do pão tinha um sabor como nunca mais encontrei.
    Abraço com amizade.

    ResponderEliminar
  2. Lindo texto A. C. e bem poético...de uma vida dura pode se extrair doçura quando se tem o sentido da partilha
    e através da canção encontrar a alegria de viver.
    Um abraço

    ResponderEliminar
  3. Lindo! Celebrar o alimento com alegria e gratidão!
    Feliz semana!

    ResponderEliminar
  4. Um tempo de sobrevivência, os sonhos não tinham lugar mas onde o afecto os mantinha unidos. Muito belo!
    Um beijinho e boa semana

    ResponderEliminar
  5. Muito bonito , Poeta . De tudo o que me encanta mais é a sua definição : " os filhos , mola impulsionadora de todas as intenções , de todos os passos . "
    Obrigada , sempre . Beijos e boa semana .

    ResponderEliminar
  6. uma "vida boa", que não "boa vida"
    tu és um brilhante criador de personagens solares
    num humaníssimo registo de sensibilidade

    abraço, meu caro amigo

    ResponderEliminar
  7. Belíssima palavras para falar de vivências com que muito me identifico.

    Um beijinho meu Amigo Ac e uma boa semana

    ResponderEliminar
  8. Um texto muito bom que me transportou para outros tempos, outras memórias.
    Um abraço e uma boa semana

    ResponderEliminar
  9. Ainda bem que a harmônica existia para que se percebesse a importância do riso.

    Belo!

    ResponderEliminar
  10. A profundidade das tuas palavras tem um percurso
    de voo tão singular, e, ao mesmo tempo tão íntimo de
    cada leitor, como uma grande ciranda de olhares e
    afetos que fazem um encandeamento, em cada identificação
    dos sentires descritos no teu texto.

    Tu és um mestre no encantamento da escrita, AC!...
    Sempre grata de ler-te, um privilégio!!
    Bj.

    ResponderEliminar
  11. Por momentos fui ao Oeste e ouvi Ennio Morricone...
    Aquele abraço, boa semana

    ResponderEliminar
  12. a gaita de beiços... tambem...
    que anunciava a chegada de alguem e de cousas...
    ainda há pela serra...

    ResponderEliminar
  13. Chegou-me aqui o som da harmónica e eu sorri também... Excelente este texto que descreve momentos em que me reconheço...
    Um beijo.

    ResponderEliminar
  14. Hoje se olha tudo, menos os olhos... Talvez por isso tantos desenganos.

    É sempre um prazer te ler, AC.

    Beijo.

    ResponderEliminar
  15. É inevitável que um sorriso se solte no final de ler este seu texto. Parece que foi escrito propositadamente para nos arrancar um sorriso. No meu caso arrancou e nem sequer foi necessário fazer muita força.

    Aceite um beijinho, AC. Obrigada também pela tranquilidade que passa nas suas palavras. Isso nos dias que correm e tendo em conta este mundo virtual, é raro :)

    ResponderEliminar
  16. ~~~
    Parece-nos muita míngua, mas na verdade o povo 'romani'
    é nómada por hábitos ancestrais e prezam muito a sua
    liberdade e vida em ar puro. Assim, é que são felizes.

    Uma descrição impecável, realçando os momentos poéticos
    da vida errante...

    ~~~ Beijinhos, AC. ~~~

    ResponderEliminar
  17. Muito bonito e pictórico!
    Bem precisamos de uma harmónica para harmonizar os dias :)
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  18. É bonita esta escrita que fala de outros tempos, mas como me revejo nela...No fundo, todos nós, cada um à sua maneira, caminhamos...cada um com o seu norte e a sua bússola, o seu móbile...Lutamos por um melhor devir...
    Uma escrita com raízes profundas no tema e na qualidade!
    beijinhos

    ResponderEliminar
  19. Belíssimo
    na busca de infinitos tangíveis

    ResponderEliminar
  20. Uma bela imagem, a ilustrar um texto tão singelo e tão profundo. De um tempo em que os caminhos de vida eram mais áridos, e se andava um pouco ao sabor da corrente à procura do pão. Mas havia música e sorrisos nas crianças.
    Belíssimo, AC!
    xx

    ResponderEliminar
  21. Aqui chamamos de gaita. Sempre curti porque fez parte de minha adolescencia, meus 20 anos, Supertramp... Certa vez, comprei uma excelente e dei à minha filha, mas acabou ficando para mim.

    Bjs

    ResponderEliminar
  22. A pintura que escolheu é belíssima.
    As palavras procuram a ordem no caos da procura incessante. Estou em sintonia.
    Bj. :))

    ResponderEliminar
  23. O que te dizer AC? Que me fizeste relembrar tempos idos e bem difíceis e que teimosamente teimam em voltar mas sem quem qualquer harmónica que deixe marcas saudáveis.
    Gosto da pintura que juntas!

    Beijos

    ResponderEliminar
  24. Um texto que me tocou tão profundamente como o som dessa harmónica, ou gaita de beiços, como o meu primo lhe chamava. Também ele tocava divinamente.
    Trouxeste até mim um retalho da minha infância, AC.
    Também essa tela maravilhosa me lembra a vida nómada, que eu tanto admirava e, secretamente, desejava...

    Um beijinho grande, AC. Obrigada!

    ResponderEliminar
  25. Que bem descreves o momento mágico em que se pode desligar do real, e simplesmente ser.
    São precisos momentos de harmónica

    ResponderEliminar
  26. quase que se sente o som da harmónica.
    tempos idos muito bem escritos e recordados.
    beijinho
    :)

    ResponderEliminar
  27. Descreveste bem a vida de meu povo...assim sao os ciganos...

    ResponderEliminar
  28. E talvez este belo texto, escrito com tanta sensibilidade e serenidade, possa servir de metáfora à nossa condição humana - somos seres sempre errantes, andarilhos nesta vida.

    Um beijinho, AC

    ResponderEliminar
  29. Gostava de saber tocar harmónica e fazer parte deste grupo . . .

    Um beijo , AC , e bom fim de semana ,
    Maria

    ResponderEliminar
  30. Pura maravilha, de texto... a vida... na sua dureza, doçura e ternura... numa dúzia de linhas... e meia!...
    Absolutamente admirável!...
    Beijinho!
    Ana

    ResponderEliminar
  31. "Só quando a harmónica, em acção de graças, saía do bolso, é que os sorrisos se soltavam." - E era mesmo isso! Tenho na memória momentos desses. A música e a dança completavam o cerimonial do alimento. Agora, nem nos damos conta disto.
    Belíssimo texto a dar conta dos tempos e modo de agir das gentes que não têm um lugar fixo. O relógio dos homens só acarreta escravidão.
    Bjo, AC :)

    ResponderEliminar
  32. Bem pintado o quadro, caro AC.
    Todos juntos, a puxar para o mesmo lado, aparentavam ser uma unidade indestrutível de convicção e solidariedade. E resolviam a vida a contento das reais necessidades sem concessões nem submissões.
    E, para inveja dos outros, até havia espaço para a harmónica.

    Abraço

    ResponderEliminar
  33. Olá, AC.
    Belíssima descrição do que as memórias lhe trazem de gentes de um tempo que não se media por instrumentos e tudo tinha outro peso.
    Há tantos mundos no mundo.

    ResponderEliminar