terça-feira, 27 de setembro de 2016

ACERCA DA IMPRESCINDÍVEL ENERGIA DOS AMIGOS

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Da vida sei o que sei. 
E quanto mais sei, 
mais convencido fico 
que pouco, ou nada, sei.
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Os títulos e as honras 
há muito ficaram para trás.
Ter isto ou aqueloutro, 
maior ou menor que o outro,
é coisa que não satisfaz. 
Que procuro, então? 
Que águas fomentam o meu tesão?
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Numa qualquer encruzilhada,
alguém quer desistir.
Dou-lhe a mão, dá-me a dela,
abre-se uma nova janela,
há vontade de prosseguir.
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Da vida sabemos o que sabemos. 
E quanto mais sabemos, 
mais convencidos ficamos 
que pouco, ou nada, sabemos.
Mas, mão na mão, continuamos.
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sábado, 17 de setembro de 2016

A BIBLIOTECA QUE (AINDA) SORRI

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AC, Chuva em modo protegido
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Já chegou aos 90, mas a Ti Laurinda continua a gostar de gente, de corações a palpitar, de pessoas que gostam de ousar, de pousar, de (re)fazer, de rir. 
Os tempos mudaram muito, tanto que até parece outro mundo, mas ela não deixa que as suas memórias se apaguem. E, para os interessados, está sempre pronta para ensinar os rituais da confecção do pão e dos enchidos, como se secavam figos, como se cantava e dançava no seu tempo. Não lhe faltam histórias do outro mundo, temperadas de crenças, e até a receita de algumas mezinhas lhe continua a sair em voz pausada, mas sem hesitações. Quando o interlocutor vem com tempo gosta de falar da sua mocidade, das cantigas nos campos - às vezes, sabe, para enganar a fome - das desfolhadas, da apanha da azeitona, da boa vizinhança. 
- Veja lá que até dormíamos com a chave do lado de fora da porta!
Continua a gostar de viver, nota-se. Mas há algo que, de vez em quando, lhe turva o olhar. 
- Sabe, agora há estradas por todo o lado, boas casas, muita fartura de tudo. Nisso o mundo está muito melhor. Mas as pessoas estão diferentes, andam sempre a correr de um lado para o outro, já não dão importância à palavra dada. Têm muito, e ainda bem, que no meu tempo era uma desgraça pegada, mas nós éramos mais unidos, ajudavamo-nos uns aos outros. Agora cada um puxa para seu lado, olham de lado uns para os outros, desconfiado, queixam-se por tudo e por nada, qualquer coisinha as contraria. Porque será, mê senhor?
A chuva estival, ali mesmo à mão, serve-lhe de exemplo.
- Olhe, está a chover e toda a gente se queixa, por isto ou por aquilo. Mas as pessoas estão muito enganadas, já se esqueceram que quando chove, não chove.  É a vida a ser boa p´rá gente.
E a Ti Laurinda, matreira, sorri como quem pisca o olho...
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sábado, 10 de setembro de 2016

ESTRELINHA VAI, ESTRELINHA VEM...

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Ilustração de Luiza Maciel Nogueira
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Meio da tarde. Pelo terreno, espaço de amplas liberdades, cirandava um melro que, qual boneco articulado, ensaiava, com o bico, graciosos movimentos ritmados, de vai e vem, na captura de sementes ou de alguma lagarta distraída. 
Um dos pequenotes, movido pelo deslumbramento, tentou apanhar o pássaro, irrompendo de braços abertos. Sentiu o duro do chão, preço normal de qualquer lição. Os outros, rindo, afastaram o espectro do choro. 
Um dó li tá, 
Quem está livre
Livre está!
O melro, a distância segura, prosseguia no seu debicar. As crianças, num mundo só delas, continuavam a povoar a tarde de estrelas.
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sábado, 3 de setembro de 2016

PORTO DE ABRIGO

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Barbara Issa Vagnerovà, Pesquisas Fúteis
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Sempre foste assim. Queres saber, entender, fazer, numa vontade sem pausas, sem limites, sem fronteiras, como se tudo dependesse de ti, como se a química da vida, por mais delicada, estivesse ao teu alcance.
Admiro, à distância, a tua perseverança, essa crença extraordinária, por mais que caias, esse dom, capaz de dobrar qualquer cabo, de nos fazer acreditar na existência de milagres. Sabes, uma parte de mim continua sensível ao desejo de embarcar, mas a outra, filtrada em mil andanças, há muito descobriu o prazer do silêncio bordado no canto das aves. 
Continuo a observar-te, pelo canto do olho, enquanto trato das minhas plantas. Um dia destes, estou certo, irás atracar na minha horta, porto de abrigo onde as ondas, delicadas como os pássaros, vêm debicar na palma da nossa mão.
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