sábado, 29 de outubro de 2016

AQUI E ALI, O PERTO E O LONGE

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Fotografia de AC
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Conheço-te, à distância, pelos pequenos sinais que vais deixando, de forma cautelosa, sobre aquilo que cogitas da vida. É mais fácil, toda a colmeia o sabe, libertares-te quando, olhando em volta, colocas o dedo em riste, apontando. Mas, por comunhão, todos intuem que sentes mais dificuldade quando, em exercício inevitável, constante, tens que olhar para dentro de ti, encarar possíveis fragilidades, renegando, quase por instinto, indícios que possam conduzir à tua nudez. Dói, dói sempre.
Com a saga dos medos por enfrentar, alimentada pela imaginação, o conceito pode parecer-te arrepiante, tenebroso, mas, podes crer, a nudez é o que de mais puro temos, ponto de partida para, soltos de amarras, lobrigarmos novo patamar. Podes barafustar, contestar, mas apenas te arranhas a ti próprio, renovando o sofrimento, enquanto alimentas, em doses generosas, o labirinto que habita em ti, embora, quase sem te dares conta, vás deixando uma flor aqui, um abraço ali. Talvez, quem sabe, porque guardaste, no mais fundo de ti, o melhor das tuas memórias.
Quando, sempre à distância - estamos todos perto, no mesmo infortúnio, estamos todos longe, no mesmo desígnio - te sinto esbracejar, debater, a tentar romper a névoa, há um calorzinho agradável que, por mais ténue, mais subtil, me aconchega. Ainda não te rendeste, a vida, por mais madrasta, continua a ser um aliciante desafio.
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terça-feira, 25 de outubro de 2016

PAISAGEM

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Fotografia de AC
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A paisagem, com o vento ausente e a parca luz duma réstia de sol, quase parecia parada. Até o ténue ruído do tractor, à distância, a preparar, provavelmente, a terra para a sementeira de trigo, parecia fazer parte da quietude. Mais próximo, em cadência lenta, um cão emitia um ou outro latido, um quase exercício de desfastio perante a calma instalada, enquanto um rebanho, em serena comunhão com as ervas, saciava, tranquilamente, o natural apetite.
Mais à frente, acedendo ao convite do declive, porta aberta para o mais profundo do vale, as águas do rio,  fonte de toda a vida circundante, acentuavam o sentido de aparente apatia. Tudo parecia parado, embalado no adorno de ancestrais memórias. Apenas um bando de pintarroxos, estranhando a intrusão, ousou romper  o véu da calma instalada, esvoaçando para lugar mais seguro.
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sábado, 22 de outubro de 2016

OLHARES, AVULSOS, SOBRE A COMPLEXIDADE DAS COISAS SIMPLES

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Fotografia de AC
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Nem sempre estás, a vida, aos teus olhos, é demasiado exigente. Quando, por vezes, correspondes ao toque da campainha, a configuração do horizonte já tudo transfigurou. Sentes, como eu sinto, que tudo o que nos rodeia, para seguir em frente, não espera por ninguém. Por isso te maravilhas, em tempo de pausa, no observar das plantas, por isso te espantas, em aparente sobressalto, quando elas invadem o que, negligentemente, parecia teu.
Sentamo-nos. O ilusório sentido de posse vem à baila, em subtis acordes minimais, o exemplo das plantas é quadro omnipresente. Olhamos mais do que falamos, as imagens falam por si. O sorriso, à laia de apaziguamento, acaba sempre por brotar.
Levantamo-nos, contornamos a casa e, por momentos, detemo-nos na avalanche de folhas, qual tapete multicolor, que vai adornando o caminho. Aqui e ali, contudo, a onda verde, agora quase adormecida, não trava a sua marcha. Ambos sentimos, ambos percebemos, as palavras nada acrescentam. Sabes, como eu sei, que o lugar de cada um, no mundo, não é traçado a régua e esquadro, requer percepções complexas que, no final, induzem à simplicidade. 
Quando, de novo, nos sentamos, acabas por surpreender. Hoje não embarcas em jogos de palavras, limitas-te, após pausa apaziguadora, a invocar a memória do teu avô que, sentado na sua cadeira de patriarca, em pose de estudada gravidade, nunca se cansava de dizer que a vida era simples, nós é que a complicávamos.
Sorrimos, trocamos aparentes vulgaridades, chegamos mesmo a gargalhar. O teu avô, se nos visse, confortavelmente sentado na sua cadeira, não deixaria de sorrir.
Amanhã, quando partires, de novo, para a azáfama da grande colmeia, não te esqueças de levar contigo a serena linguagem das plantas.
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terça-feira, 18 de outubro de 2016

ESBOÇO, MAL AMANHADO, DA CANÇÃO DA PERSISTÊNCIA

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Fotografia de AC
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Refulgem os dias de outono, como que dando o melhor de si no anúncio da demanda perdida, mas tu persistes. Alcançaste, com o teu esforço, o patamar dos que querem perdurar, mas, chegado aqui, continuas a ter dúvidas, não sabes bem o que fazer. Ouves, no soprar dos ventos ressequidos, que as memórias se perpetuam na dimensão do percurso feito, nos gestos que motivam outras visões, outras atitudes, mas o teu instinto não adere, queres ir mais para lá do fado das ideias feitas. Continuas insatisfeito, o que conseguiste sabe-te a pouco. Continua, num olhar cada vez mais selectivo, a seduzir-te a ideia de chegar além, de desmitificar o que está ali, de abençoar o que está aqui.
Estás em contra-mão, sabe-lo bem, mas há muito que, para ti, isso deixou de ser problema. Continuas a querer perceber, antes de mais, continuas a querer ser, antes de tudo. Contigo, quando voares, não haverá fanfarras, contigo apenas se sentirão, ao de leve, os acordes da canção da vida.
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sábado, 15 de outubro de 2016

A VERDADEIRA HISTÓRIA DA BELA ADORMECIDA

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AC, Mulher adormecida
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Tinha adormecido, resignada, nos primórdios, não sabia bem em prol de quê. Lembrava-se, isso sim, do rumor do tempo que, apesar de cadenciado, se comprazia a confundir os outros, deixando, ao de leve, aqui e ali, pequenos sinais, quantas vezes maquilhados de travessuras, accionando a tecla da importância de cada um. E eles, ufanos pela escolha, apressavam-se a elaborar tratados, cultos, de cariz determinante, como se fossem os eleitos para a preservação das coordenadas do verdadeiro cenário.
Aprendera, com o tempo, que tudo se conjuga no infinito, a pressa apenas fazia sentido como antónimo da vida. Por vezes sentia-se tentada, é verdade, em deixar uma dica aqui, outra ali, mas até isso aprendera a controlar. Facilitar, assim lhe segredava o tempo, nada augurava de bom.
Continuava a dormir, mas de forma cada vez mais solta, mais apaziguada. Sabia, como que tatuagem em sentido crescente, cada vez mais entranhada na pele, que há rumos que não dependem só de nós. Cabe aos outros, enfrentando os medos, tecer a melhor forma de os pintar, de os esculpir, de os movimentar.
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terça-feira, 11 de outubro de 2016

FIGOS

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Fotografia de AC
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O sol já se inclinava quando, de cesta na mão, te abeiravas da figueira. Os pássaros, de papo cheio, já não cirandavam por ali. Debitavam poemas, por perto, à beira do ninho, e as suas estrofes, repetidas no dia a dia, como se tivessem atingido, há muito, o zénite da existência, tinham o condão de te apaziguar, de te embalar.
Olhavas, medias, colhias os figos mais maduros. Depois, com a cesta plena de ternos poemas, regressavas a casa, inundando-a com o sorriso das pequenas coisas. 
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sábado, 8 de outubro de 2016

O RUIR DO CESTO DA GÁVEA

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Sergei Aparin, Arm-char for the poet
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No início havia um poço. Fundo, muito fundo, por onde começaram a despontar, por acção da luz, muitos embriões duma coisa nova. Eram energia em estado bruto, eram matéria por eclodir. Debatiam-se por espaço, no instinto da sobrevivência, em constante embate, sem toque a rebate, e só os mais fortes chegavam ao cimo, supremo apelo, sem contraditório, de algo por descobrir. 
Os que chegaram, e apesar do espaço abundante, continuaram a batalhar. Acordar, no dia seguinte, implicava sempre tolher os passos a alguém.
As células continuaram a multiplicar-se. E, no esplendor da luz, alguns aprenderam a partilhar. Perceberam que, dessa forma, teriam mais a ganhar. Mas havia sempre um, mais célere, que teimava em se evidenciar. Estava-lhes no sangue. 
Na forma, com o passar dos tempos, tudo se pareceu aperfeiçoar, mas no conteúdo, ah, no conteúdo, o embrião teimava em não se metamorfosear. Para um qualquer visitante, a vida, neste mundo, era uma entidade insinuante, plena de cores e mistérios. Em breve, previam eles, seria igualdade de enaltecer, nada a poderia deter. Assim o transpareciam as luzes, cada vez mais intensas, assim o asseguravam as mensagens, cada vez mais sofisticadas. E comungadas.
O passar dos anos, contudo, trouxe novos esboços. Por entre o toque do despertar, cada vez mais cedo, e o regresso para o descanso, cada vez mais tarde, começaram a acontecer, por mais discretas, algumas falhas de luz. O sistema, ainda que atento, não impedia que, aqui e ali, surgissem perguntas, pequenas contestações, que com o tempo ganharam consistência. Eram uma minoria, lá isso eram, mas nunca se sabe o efeito dum possível contágio. E as medidas, em prol da segurança, não tardaram.
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Os aviões sobrevoam os ares, vemos passar as estrelas cadentes, o nosso quintal continua repleto de pequenas comodidades. Contudo, mesmo ao nosso lado, prestes a substituir a realidade virtual, o exército de deserdados, em sentido crescente, é cada vez mais real.
Pensamos que sabemos mais, mas estamos cada vez mais sós. Inquietante é a sensação de que, para lá da névoa, seres sem rosto riem, hienideamente, de nós.
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domingo, 2 de outubro de 2016

O FESTIVAL

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Fotografia de AC
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Na zona havia várias figuras diferentes, características, daquelas que são postal de qualquer lugar, sujeitas ao humor dos demais. Mas o Severino era caso único.
Antigo estudante em Coimbra, por onde deambulara vários anos, acabou por regressar à terra sem curso. Diziam uns, em voz baixa, que foram amores mal correspondidos. Outros, os mais antigos, rematavam a questão com deram-lhe por lá alguma coisa a beber, enquanto encolhiam os ombros em sinal de resignação. Fosse como fosse, a família colocara uma pedra sobre o assunto. E o drama do Severino, falado apenas à socapa, acabara por se desvanecer.
Os anos passaram. O Severino, herdeiro de terras e gados, foi gerindo as coisas ao seu ritmo. Falava com todos, sorria mesmo, mas apenas o indispensável. Não era bicho do mato, mas cultivava uma prudente distância, como que dizendo aos outros que cada um sabia da sua vida.
O Severino, sabedor privilegiado, através de antigos colegas, dos humores da política de subsídios dos burocratas europeus, tudo aproveitou, fosse abate ou implemento da vinha, do olival ou do que quer que fosse.
A vida não lhe corria mal. O dinheiro, embora pouco abundante, não faltava, dava emprego sazonal, percorria os campos como quem respirava. Mas sempre no mesmo registo: falava o indispensável, sem nunca se privar de sorrir.
As pessoas, a pouco e pouco, foram-se habituando àquela forma de estar. Continuavam a murmurar, estava-lhes no sangue, mas o tom era diferente.  A desconfiança, perante quem se detinha mais com as plantas do que com os homens, tornou-se respeito, do despeito adveio admiração. O Severino, contudo, pouco ou nada ligava.
Um dia a aldeia olhou-se, interrogada, para as máquinas que passavam em direcção a um dos campos do Severino. Da boca dele, nada. As opiniões dividiram-se, com algum calor à mistura, e mais se acentuaram quando, passado algum tempo, viram que, da paisagem dum velho olival, de troncos já bastante carcomidos, se vislumbrava agora um terreno liso, com três pequenos edifícios estrategicamente construídos, ladeados com uma ou outra árvore, de maior porte, poupadas, possivelmente, para sombra.
O falatório aumentou, os rumores eram mais que muitos, mas do Severino não se ouvia nada. Alguns, com maior proximidade, ainda ousaram perguntar-lhe o que era aquilo, mas ele apenas sorria. E só quando, uns meses depois, foram convocados para uma reunião no salão da Junta de Freguesia, é que ficaram a saber o que o Severino andara a tecer aquele tempo todo: a realização de um festival de música rock, com carácter anual, que traria à terra milhares de visitantes. 
Ainda mal a missa começara e já as bocas se abriam de espanto. O Severino, tal como os desconhecidos que o rodeavam na mesa, se queriam levar a deles avante, tinham muito que explicar. Mas ele, fiel ao seu registo, continuava a sorrir.
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