domingo, 29 de janeiro de 2017

ENSAIOS DE RESPIRAR

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(Sandra Louçano: como tudo tem uma sequência, este vídeo foi colocado aqui para repor alguma justiça. Foi esta música que se ouviu, preferencialmente, no enquadramento do post anterior)
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As portas abrem-se, num eterno cerimonial, como se tudo acontecesse pela primeira vez. 
Um olhar, dez, mil, numa multiplicidade em constante deslumbramento. Tudo cativa, tudo parece perto e longe, a vontade de desbravar conjuga-se, em paralelo, com a de albergar. As coisas parecem ali, à mão, qual visão meteórica, criando a ilusão de que o tempo é domável, que a vida pode esperar por nós. 
Às tantas, após maratonas de inconscientes piruetas, regadas com risos de montanha russa, aceitamos a farda da normalidade, pregada por quem nos abraça, por quem nos quer bem. É preciso, incutem-nos, lutar pela zona de conforto.
Vestimos a farda, muitas vezes desconfortável, em conflito com a pele. Começamos, então, a questionar o que é a vida. Queremos agarrá-la, senti-la, descodificar-lhe o segredo, mas ela teima em esquivar-se, sorrindo e mofando, desafiando a persistência do mais abnegado. 
Há quem desista, resignado, há quem opte por não olhar, satisfeito com aquilo que tem. Deles, suprema descriminação, é feito o reino dos céus, apregoam os pastores. Mas, para aqueles para quem o sentido das coisas é tudo, pecar, não aceitando, é eterno desígnio. Descobriram, à custa de muito pó na pele, que a liberdade e a dignidade, mesmo que, aqui e ali, sorriam, não são concessão, são apenas apeadeiro de conquista permanente, sem fim à vista. Os afectos, energia imprescindível, são o verdadeiro sustentáculo de tão grande fé.
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26 comentários:

  1. Ler este belíssimo texto do sentido da vida e dos afectos, ouvindo a Diana Krall, é a simbiose perfeita do desassossego com os afetos.
    Jean Paul Sartre dizia que (citação de memória) os judeus nos campos de concentração, depois de lhes tirarem tudo e nada mais tendo a perder, incluindo a própria vida, atingiam um estado de liberdade plena.Isto em 1942.
    Penso que nada é certo e nada se pode dar por adquirido.
    E se a Liberdade hoje não fôr defendida, amanhã será sunegada.
    Nada nos é dado de mão-beijada nas conquistas civilizacionais. Tudo foi com sangue e lágrimas.
    Gostei muito
    Abraço

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    1. Tem toda a razão, Luís, "nada nos é dado de mão-beijada". E, do adquirido, nunca nada é garantido, a não ser que façamos por isso.

      Abraço

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  2. Na verdade quase tudo se conquista contra a indiferença
    Não por fé mas fortes convicções
    Abraço amigo

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    1. Sabes, meu amigo, toda a convicção se baseia no crer, no acreditar. Ora, para mim, isso é fé. Em mim, nos outros, no que tu quiseres.

      Abraço

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  3. Gostava de saber comentar este belo texto como ele merece, mas bem sabe que me sobra em ignorância, o que me falta em cultura.
    Um abraço e uma boa semana

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    1. Elvira, já li comentários seus a coisas muito mais complexas. Não seja tão modesta, a Elvira possui uma grande sabedoria de vida.

      Abraço

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  4. Gostei do texto, AC... como sempre! Ah! Diana Krall... um prazer ouvir.
    : )

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  5. Diana Krall, sim. Cumplicidades. :)

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  6. Sim, a verdade absoluta se impõe: "liberdade e dignidade não são concessão e sim conquista permanente". Delícia voltar hoje a este espaço (e a todos os demais de amigos a quem sigo) e ler um texto como o seu, profundo, duro, mas sem perder a ternura... Depois de um ano muito difícil, de temores, angústia e perdas, este se prenuncia de paz e de calmaria. Perdoe a ausência. Feliz em voltar. Abraço.

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  7. Amar a vida com o deslumbramento de um recomeço, sempre... Mas não esquecer que tudo, mesmo tudo se conquista. E não ignorar os que nem seque podem ter esperança...
    Um belo texto.
    Uma boa semana.
    Beijos.

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  8. "Vestimos a farda, muitas vezes desconfortável, em conflito com a pele."...muitas vezes...! Gostei muito de tudo.Abraços AC

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  9. É o que digo...andamos muito próximos, de tanto que me identifico com estes sentires tão bem bordados em papel!
    Beijinhos

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  10. O eterno conflito entre viver, e ousar... ou apenas sobreviver e respirar... sem nada questionar... ou muito procurar... e deixando o tempo passar...
    Cada um com as suas escolhas... o que importa, é que a alma não esteja em conflito com a pele... para cada um se sentir pleno, e realizado, na sua própria pele...
    Diana Krall! Sempre uma maravilha!... Adoro as suas interpretações!...
    Beijinhos! Boa semana!
    Ana

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  11. Ac, gostei tanto de me ler que terei que voltar para melhor me entender.
    Beijinho.

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  12. As portas abrem-se e o público começa a afluir. Após soar a última das três pancadas de Molière, sobe o pano e a peça atrai os olhares de quem quer fazer da vida um eterno faz-de-conta. Só assim, muitos conseguem resistir aos embates da crua realidade…
    Meu querido amigo, eu peco constantemente, porque me recuso a vestir personagens que não encaixam na minha pele!!
    Excelente texto e reflexão sobre as vicissitudes da vida...a aceitação de uns, e a luta, por vezes inglória, de outros.
    Como sempre: adorei! :)

    Um beijinho, encantado, A.C. :)

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  13. Ahhh como gosto deste piano, que escolheu Diana para ser 'tocado'. Pois só posso compreender que é o instrumento que escolhe quais mãos e respiração irão sacralizá-lo.
    Ainda permaneço em plena viagem, por aqui. Com tão poucas linhas, tu AC, revela um portal de sentires, tendo a beleza sempre em magnitude.
    Desejo um 2017 amplo de alegrias, saúde e amorosidade.
    Beijinhos.

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  14. Um belo texto reflexivo e por demais filosófico sobre o sentido da vida...
    A verdade, é que nada, mas mesmo nada nos pertence, tudo nos é emprestado...

    Boa escolha musical...

    Abraço

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  15. Tem razão AC, mas incomoda porque dá trabalho: a conquista, o arar, o semear...
    Na anterior crónica O Pousio, agora, respirar. Em ensaio! Onde nós leva AC? Só temos de aguardar pela próxima.
    Energia. É fundamental dispendê-la para trabalhar a matéria. De que se fez e faz tudo no mundo. Até o homem e a mulher de um sopro (afago) animados.
    Bastou, basta ter fé.
    É na alternância de estados que se produz o milagre. Veja-se, a DK numa alternância de pretas e brancas. E é loira (a cor do trigo maduro(a))? Interessa o relevo? Sim, interessa, a inclinação ao sol, mas também o enlevo, a dedicação, o amor com que se molda o barro ou o aço. Rígido - dúctil. Até o respirar: inspiração - expiração.

    Escrito em respiração espontânea, ou seja, sem rede, smartphoneamente precário.
    Abraço, A(a)migo.

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  16. Poeta , seu texto é fascinante .
    Obrigada pela partilha .
    Beijos

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  17. Vamos ver qual o caminho que vamos percorrer.
    Ao som de Diana Krall será sempre agradável.

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  18. Como sempre, AC um magnífico texto... aguardemos...
    Bjs

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  19. AC

    um texto curto e intenso, porque nos fala do sentido da vida e nos deixa questões muito pertinentes,a vida está aí para a sabermos viver.
    gostei muito desta passagem, que fecha com chave de ouro.
    "Os afectos, energia imprescindível, são o verdadeiro sustentáculo de tão grande fé."
    gostei muito mesmo.
    beijinhos
    :)

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  20. Continuo a respirar pelas tuas "Interioridades"!
    E saio sempre renovada.
    Bjo, AC

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  21. Os afectos, energia imprescindível, são o verdadeiro sustentáculo de tão grande fé.

    o que acrescentaria... seja ela qual for!

    Gosto de algumas música da Diana, mas esta AC dá-me um sono do caraças o que te peço desculpa e neste texto eu punha outra...ó se punha:)))

    Um enorme abraço

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  22. Belíssimo este ensaio de respirar (vida).
    Tudo começa com esta consciência da respiração,
    autoconhecimento e escuta para que a energia
    afetuosa ecoa a verdade deste caminhar-respirar-viver...
    O vídeo-música encantador.
    Um final de semana alto astral, AC!
    Beijo.

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