terça-feira, 28 de março de 2017

QUADRAS À SOLTA - NA RUA DA MINHA TIA

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"La poesía es algo que anda por las calles. Que se mueve, que pasa a nuestro lado. Todas las cosas tienen su misterio, y la poesía es el misterio que tienen todas las cosas. (…) Por eso yo no concibo la poesía como una abstracción, sino como una cosa real, existente, que ha pasado junto a mí."
Federico Garcia Lorca
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Tendo como pano de fundo as palavras de Lorca, o Fundão, por estes dias,  está a vestir outra roupagem. De 19 de março a 4 de abril, com o patrocínio da União Europeia, através do seu programa Europa Criativa, esta pequena cidade do interior está a colocar no terreno o evento "Poesia na Rua", que se desenrola, em simultâneo, em Guadalajara (Espanha), Grenoble (França) e em Cologno Monzese (Itália).
Instado a escrever algo para um grupo de cerca de 100 crianças levar à cena, saíram-me estas quadras, todas à solta, onde se pretende recriar uma rua fantástica, maravilhosa - os miúdos simularão mesmo uma rua, povoada pelas personagens das quadras - onde tudo pode acontecer. Oxalá eles se divirtam.
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Na rua da minha tia
Há constante descoberta
Espreitam estrelas p’la janela
Mesmo quando o sol aperta.
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Na rua da minha tia
Há um burro a ladrar
Um sapato a dizer rimas
Um caracol a sprintar.
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Na rua da minha tia
Há um leão voador
Rabisca planos de voo
Debaixo dum cobertor.
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Na rua da minha tia
Os cavalos sentam-se à mesa
Pedem um fardo de palha
Com toda a delicadeza.
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Na rua da minha tia
Há baleias a passar
Engomam as conversas todas
Sem nunca as arranhar.
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Na rua da minha tia
Há formigas d’encantar
São todas namoradeiras
Todas gostam de dançar.
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Na rua da minha tia
Há um tapete de velas no ar
A desenhar mil aventuras
Com as aves sempre a remar.
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Na rua da minha tia
Os polícias andam descalços
Os sonhos são verdadeiros
Os ladrões são todos falsos.
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Na rua da minha tia
A chuva não cai no chão
Faz piruetas nos telhados
Em forma de coração.
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Na rua da minha tia
As borboletas usam redes
Para apanhar os poemas
Que respiram nas paredes.
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Na rua da minha tia
Há um homem muito elegante
Conta memórias a toda a gente
Que herdou dum elefante.
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Na rua da minha tia
Há uma quadra em cada flor
No aroma de cada uma
Se sente a palavra amor.
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Na rua da minha tia
Há bailes de adivinhas
As respostas chegam p’lo ar
Trazidas por joaninhas.
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Na rua da minha tia
Todos passam da cepa torta
As abelhas, quando chegam
Deixam mel em cada porta.
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Na rua da minha tia
Os dragões não têm asas
Dão passinhos de balê
Enquanto pintam as casas.
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Na rua da minha tia
As janelas abrem p‘ró mundo
Quanto mais a gente a olha
Mais a rua não tem fundo.
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Adenda, pós actuação: A miudagem portou-de bem, interpretando a filosofia da coisa da melhor maneira, de tal forma que, no final da sessão, por entre efusivos parabéns, foram convidados para apresentar "Na Rua da Minha Tia" na sede do Agrupamento de Escolas, no dia aberto à população. Em finais de Maio eles lá estarão.
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sábado, 25 de março de 2017

SAUDADE

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Havia um monte. E uma árvore. E uma fonte. Vindo de longe, movido a saudade, ouvia-se um lamento. Que fazer? Pegou nas lembranças, envolveu-as num ramo de flores e foi, de coração apressado, ao encontro dela.
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terça-feira, 21 de março de 2017

LEVE BREVETA, PROFUNDA SONATA

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Pintura de Barbara Issa Vagnerovà
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Vá, dá-me a mão. De que tens medo? De parecer algo que não controlas? De te sentires fora da corrente daquilo que os outros pensam? Vá, deixa correr o que sentes, o que não dominas, não tenhas receio dos acordes profundos, que ecoam para lá das portas em que te encerraste. Não tenhas pressa. Respira, profundamente, e pensa que estás no alto de uma montanha. És só tu e os elementos, mais os elementos que tu, és apenas um ínfimo ser ao sabor do vento. Sente-o, mas espera que ele amaine. Apercebes-te agora da leve cantilena que ele deixa ao passar pelas pedras? A música é para ti, podes crer, desde que a queiras ouvir. Vá, toca-me. Eu estou, tu estás, estamos vivos. Não é maravilhosa a sinfonia da vida?
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sábado, 18 de março de 2017

MANHÃS DE SÁBADO

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Pessegueiro, Fotografia de AC
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Após uma intensa semana de trabalho na escola - em que, apesar do empenho, tentar levar a bom porto uma nau que alguns persistem em comandar à distância, no conforto dos gabinetes, esquecendo realidades díspares, não é pêra nada doce - as manhãs de sábado são sempre momento de reencontro com o que de melhor habita em nós. Hoje, porém, tal era o cansaço, não houve azáfama obreira, numa eterna tentativa de harmonizar o mundo que nos rodeia à medida da nossa respiração. Não, hoje as mãos não mexeram na terra, houve apenas disponibilidade para curtas andanças para observar o andamento da horta de inverno - alhos, favas, ervilhas, este ano com a novidade de dois chuchuzeiros - e para assistir aos progressos da floração das árvores.
Olho, ao longe, e tudo parece parado. Tranquilidade é coisa que por aqui não falta, de tal forma que até os riscos dos aviões no céu se fazem notar. Lembram-me viagens, novos destinos, alimentam-me a vontade de tudo conhecer. Desenham-se algumas metrópoles, mas o pensamento, obstinado, persiste em transportar-me até aos Andes, ao reino do condor, aliciando-me com a perspectiva de caminhar nos cumes. É apenas um simulacro, eu sei, sempre me atraíram os espaços mais ou menos livres, em que, facilmente, somos confrontados com a nossa essência. E já poucos restam.
Os gatos, guardando a distância necessária para albergarem estatuto independente, já não interferem com a horta. Procuram, aqui e ali, um ratito do campo ou um pássaro desprevenido, mas não parecem muito empenhados. Os cães da vizinhança resguardam-se, silenciosamente, do sol, como que sentindo que não é a hora deles. As borboletas, pelo contrário, esvoaçam com vivacidade, poisando, amiúde, para depositar os ovos numa qualquer planta. A passarada, após o matinal concerto, recolheu, sensatamente, a refúgio seguro. Apenas os pardais, numa azáfama constante, não se coíbem de debicar aqui, debicar ali, enquanto uma ou outra andorinha persiste na construção do ninho.
Manhãs de sábado, eterno depósito abastecedor do meu respirar.
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terça-feira, 14 de março de 2017

PRIMAVERA

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 DamasqueiroFotografia de AC
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Éramos jovens potros
Imunes ao receio
E a primavera de Vivaldi
Em harmonia vibrante
Era o primoroso retrato
Do nosso entusiasmo
No galopar sem freio.
A seara ondulava, sensual
E viajávamos no sonho
Embalados no rumor da aragem
Que escrevia
Nas folhas dos freixos
Sinfonias à nossa passagem.
A paixão das cigarras
Morava dentro de nós
E a linha do horizonte
Meta por conquistar
Era a tela
Dos planos traçados
Dum mundo por desbravar.
Adormecia nos teus braços
Em nocturno de Chopin
Terna e doce vassalagem
E só o romper da aurora
Rebate do mundo lá fora
Quebrava o feitiço da viagem.
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Pereira, Fotografia de AC
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Reedição
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sábado, 11 de março de 2017

MUROS E QUINTAIS, SERVIÇO DE MESA COM AVENTAIS

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Fotografia de AC
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Todos os dias, apesar da pressa em satisfazer compromissos, cada vez mais sobrecarregados na exigência dos outros, há algo à flor da pele que argumenta, que questiona, que reivindica, afastando para lá a ideia do acenar submisso do autómato.
Vivemos num tempo de transição. Esbatem-se, cada vez mais, os ideais humanistas, em que o progresso deveria estar ao serviço do homem. No horizonte, assomando cada vez mais às claras, insinua-se um mundo controlado, vigiado, em que cada manifestação individual, ou social, é escrutinada ao mais ínfimo pormenor. As pessoas recebem cada vez mais brinquedos, acompanhados dum diploma de modernidade, enquanto que, em paragens "sem interesse estrutural", há quem clame por água, por pão, por um qualquer lugar onde não se oiça o sibilar das balas. No fundo, dão eles a entender, deveríamos estar contentes por vivermos para cá do muro.
Vivo, por opção, num local em que todos os dias se ouve o cantar da passarada, se vêem as plantas a crescer, se observam as estrelas no firmamento, convidando a viagens para lá de nós. E sinto-me grato por isso. Mas não, por mais que me cantem loas aos ouvidos, não vivo num mundo à parte. Gosto muito do sítio onde vivo, mas não posso esquecer, nunca, que sou parte integrante dum complexo sistema em que os verdadeiros poderes, cada vez mais na sombra e, a cada dia, mais fortes e subtis, vão muito para lá do cantinho de cada um. Estamos todos no mesmo saco, à mercê de cinzentos desígnios, mas há quem teime em dourar, a todo o custo, a pílula da existência.
Todos os dias, quando me levanto, encho a alma com o canto da passarada, mas nunca me esqueço, mesmo que em modo suave, do mundo em que vivo. Com os afectos a tiracolo, sempre.
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sábado, 4 de março de 2017

OS CONSTRUTORES DE LENDAS

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Pintura de Sergei Aparin
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Não sabiam bem por que o faziam, apenas sentiam que tinham que o fazer. Eram herdeiros de mil lutas, de iguais persistências, em prol de algo que vinha do mais profundo de si. Às tantas, perante tantas pedras no caminho, duvidavam, mas acabavam por prosseguir, deixando, em cada sítio, esboços de coisas diferentes, mapas de inquietudes, incompreensíveis para quem se habituara à segurança de cada coisa no seu lugar. E prosseguiam, prosseguiam sempre, indiferentes aos olhares, aos gestos. Sentiam, há muito, a bússola que os guiava, que os impelia, a estrela que, nos seus sonhos, lhes soprava a palavra liberdade.
Quando chegaram àquele vale, longe da agitação e da cobiça, sentiram que podiam ficar. Não havia colunas, nem torres, nem palácios, apenas algumas ruínas. Era um local simples, tranquilo, desprezado pelos outros, fora do corrupio habitual em que todos se querem ver, em que todos se sentem vivos porque os outros também lá estão. Talvez, ali, conseguissem momentos de pausa, mesmo que curtos, em que pudessem respirar, profundamente, tudo o que os norteava.
Jonas, que liderava o grupo, sabia que não os deixariam ficar ali muito tempo, mas não partilhou, com os outros, os seus receios. Era apenas uma pausa, mais uma, apesar de procederem como se o melhor fosse possível. Talvez fosse desta, pensavam eles. Mas Jonas, lá no fundo, sabia que estavam demasiado habituados a olhar para as estrelas, a tê-las por companhia.
Repararam o essencial das paredes, taparam fendas, deram sentido aos telhados. Escolheram os melhores locais para cultivar, semearam, limparam o terreno circundante. Nos tempos de repouso, em que todos se olhavam, havia sempre alguém que trauteava canções antigas, quem perscrutasse o futuro, quem dançasse, quem contasse histórias...
Começavam a habituar-se, coisa rara, mas um dia chegou um jipe com homens de uniforme. Receberam-nos com o melhor que tinham, tentaram conversar, mas os rostos dos visitantes, fechados, nunca destoaram da farda. Fizeram perguntas, pediram documentos, escrevinharam num livro. À despedida, impassíveis, deixaram a sentença: tinham que partir.
No dia seguinte, bem cedo, despediram-se do vale e empreenderam nova marcha. Um ou outro do grupo ainda olhou para trás, mas por pouco tempo. A herança era pesada, mas teimavam em procurar, sem saber bem onde, um local onde a palavra liberdade fizesse todo o sentido. E, embora em tom de lamento, cantavam, dentro de si nunca deixavam de cantar.
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