segunda-feira, 21 de setembro de 2009

RUA DA CALE

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Saiu do café, onde debitara dois dedos de conversa com o João, e dirigiu-se para a Rua da Cale. A mulher pedira-lhe que comprasse fruta e ainda mais qualquer coisa, que já esquecera, e aproveitou para dar um salto à mercearia do Joaquim Bocas.
Na velha artéria, longe do fulgor de outrora, quando aí se concentravam as actividades comerciais e artesanais do Fundão, apenas transitavam duas ou três pessoas, número muito longínquo das necessidades das pequenas lojas que ainda teimavam em abrir as portas. Os donos, com a resignação gravada no rosto, continuavam incapazes de conviver com uma realidade que não entendiam, e recordavam tempos passados, quando os fregueses eram muitos. Talvez ainda sonhassem com o regresso desses tempos, quem sabe!
Quando entrou na mercearia estava o Bocas, na obscuridade da loja, a limpar umas bugigangas de loiça que pareciam estar ali há décadas. Nos braços trémulos continuava a usar mangas-de-alpaca, tal como há quarenta anos atrás, quando, na sua meninice, começara a frequentar aquela loja para se abastecer de cromos de futebol, rijamente disputados com outros petizes. Cumprimentaram-se e o rosto do velho animou-se um pouco.
- Então, que vai ser hoje?
- Dois quilos de maçã bravo esmofo e um pacote de arroz agulha.
- Estas sim, têm sabor, não são como as maçãs que vêm da Espanha. São da quinta do meu cunhado. Não há melhor, meu rapaz!
Quando saiu da Rua da Cale, tal como sempre que ali ia, sentiu que estava a sair de um dos últimos resquícios das paisagens da sua infância. Os amigos não entendiam aquele capricho que o levava, de quando em vez, a fazer compras na mercearia, quando a pequena cidade estava servida por vários hipermercados, com tudo mais barato e moderno. Mas ele apenas sorria, enigmático. Apesar da decadência evidente do local e da tristeza dos olhares, sempre que podia dava ali uma saltada. Então, qual alquimia cinéfila, a atmosfera da rua transformava-se e, não raras vezes, sentia no ar os gritos de júbilo de um pequenote a quem era permitido entrar no paraíso quando, ao desembrulhar os cromos que envolviam pegajosos rebuçados de meio tostão, gritava a plenos pulmões:
- Saiu-me o Eusébio!!! Saiu-me o Eusébio!!!
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3 comentários:

  1. São estes comercios teimosamente abertos a quem passa que nos avivam as memórias...os cheiros com as memórias visuais que nos mostram quem já fomos.
    Ultimamente, existe um regressar de produtos da minha infância e a cada um vem colada um história, e como se diz recordar é viver!
    As " bolinhas de neve" que me lembram a venda do "zé latas", onde existia o único telefone publico de Unhais; e as bolachinhas de baunilha que a minha avó comprava quando iamos á praça de alvalade, como recompensa por ajudá-la com as compras,todas feitas la dentro.
    Saudades boas...
    E os nossos filhos de que terão saudades??

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  2. O texto trouxe-me a infância em Milhazes e em Barcelos.Talvez por ser filha de comerciante e por gostar de estar à frente do balcão quando vinha de férias, este texto trouxe-me memórias lavadas desse tempo.
    Lindo o texto em que o narrador não consegue esconder o autor.

    LIA

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  3. Parabens senhor professor o seu blog está um espectáculo.

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