sábado, 25 de julho de 2020

ESBOÇO DE TELA EM DISCRETAS TONALIDADES

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Margarida Cepêda, Azul
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Para a Graça Pires
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Há, na tua convicção, uma vontade que, apesar de adornada com cores reservadas, tudo ousa enfrentar. Não derrubando, isso nunca, mas respeitando, respeitando sempre, tentando entender olhando, sentindo, por mais que inquiete e doa. Depois, com o soltar de pequenas réstias de luz, vais vencendo os medos, construindo alicerces para um mundo novo, de janelas cada vez mais abertas, mas com espaços interiores onde apenas têm guarida as flores mais discretas e delicadas. 
No epicentro, resguardado como fio invisível que tudo sustenta, o veio inicial que te fez iniciar a jornada. É aí que reside o segredo, o precioso Graal que, depois de tanta demanda, descobriste que sempre esteve perto de ti.
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quarta-feira, 22 de julho de 2020

MIGUEL

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Pormenor de A Criação, de Miguel Ângelo
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Há um novo ser que desponta, rompendo as águas
um jardim que renasce, adornando a vida
a esperança a montar residência em todos aqueles  que o rodeiam.
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A vida, assim, é mesmo bela.
Bem-vindo, Miguel!
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terça-feira, 21 de julho de 2020

TEMPO SEM TEMPO

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Salvador Dali, A Persistência da Memória
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A canícula tem sido inclemente, tolhendo gestos e pensamentos, configurando um galinheiro em estado de sítio, com as galinhas a perderem o norte. Mas eis que, repentinamente, os deuses se compadecem, e enviam uma chuva apaziguadora, entremeada de raios e trovões, qual recado para os pretensos donos dum qualquer galinheiro.
A vida quer-se simples, apregoa o filósofo da reconciliação, mas isso dá uma trabalheira danada. E, pondo de lado qualquer reflexão, condição mínima para qualquer tentativa de evolução, dá-se primazia ao grito, à vitimização, tentando condensar a razão de ser aos gestos mais básicos e mais boçais. Dizem-me que é assim, que é da natureza humana, mas tenho dificuldade em aceitar essa argumentação. É que, para lá do básico, há sempre uma margem de progressão, alicerçada em princípios nobres e elevados, assim nós o queiramos. É uma luta dura, eu sei, uma luta de sempre. Com avanços e recuos. E não é à toa que, no mundo em que vivemos, emergem, ciclicamente, figuras de banda desenhada, ou de qualquer má ficção, como Trump, Putin, Bolsonaro, Kim Jong-un...
Voltemos à chuva benfazeja, permitam que me centre na minha horta. Ela sofreu, há tempos, um forte revés, mas, a pouco e pouco, começou a renascer, produzindo tomates, curgetes, pepinos, alfaces, cebolas, pimentos... Como em tudo, há que dar tempo ao tempo. E o gozo que me dá, depois da rega, colher esta ou aquela espécie para abastecer a cozinha!
Infelizmente, vivemos num tempo em que todos parecem querer tudo para hoje, olvidando as memórias, individuais e colectivas, de como se chegou até aqui. E exigimos, exigimos cada vez mais, como se tudo viesse dum saco sem fundo.
Agradeço aos deuses a chuva retemperadora, propícia a uma pequena pausa, mas ela não esbate a evidência: olhar para o nosso ego, continuamente, sem nos preocuparmos com a visão e o bem-estar dos outros, vai acabar por dar cabo de nós, sejamos bons ou maus. Sem excepção.
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sexta-feira, 17 de julho de 2020

O GRITO

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Fotografia de Flavio Scalzo
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Caminhavam quase hirtos, a medo, não se desviando do rumo pré-definido, como se em cada vulto, em cada esquina, ou em cada movimento, espreitasse o perigo. 
Fazia calor, o suor começava a insinuar-se, o incómodo fazia-se cada vez mais presente. Quase sem se darem conta, iam ajeitando as máscaras, tentando aliviar o não aliviável: a insegurança no recém-viver, a incapacidade racional de estabelecer pontes harmónicas para a nova forma de estar. 
Tentavam seguir as regras, mas elas mudavam a cada instante, acentuando a insegurança geral. Além disso, na luta pela sobrevivência, só alguns podiam ficar resguardados, em casa ou em qualquer poiso distante. Os outros, a grande maioria, os tais que o cronista de antanho designou de "ventres ao sol", muitos deles achocolatados, tinham que lutar, continuamente, por um lugar no autocarro, no comboio, ou no barco, onde o distanciamento social era remetido, sem aviso de recepção, para a procedência. Tinham que chegar ao destino, ou não recebiam.
Alina, veterana desta luta diária, desceu as escadas para entrar no metro do Marquês. Aproveitando um breve momento em que não via ninguém por perto, retirou a alça da máscara da orelha direita, manteve-a a meia haste e, com toda a convicção, lançou o grito libertador, prolongado pelas paredes do túnel:
- Foooodaaaa-se!
Depois, já mais aliviada, voltou a ajeitar a máscara e correu, desalmadamente, para não perder o comboio da sobrevivência.
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quinta-feira, 16 de julho de 2020

REDENÇÃO

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Imagem retirada da net
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Dizia-se amarela. Depois azul. Logo a seguir, quase sem pausas, assumia-se roxa, verde ou siena, pronta para o que desse e viesse.
Procurava-se? Não, nem tanto. Era apenas uma questão de sobrevivência para um ego sem sustentação, que dependia totalmente da energia dos outros. Então, sem verdadeiramente as sentir, ia desfilando cores, como estratégia, até que alguém se dignasse olhar. Depois, caso um ratinho cheirasse o queijo, fazia o pino, pintava a manta, queimava o sutiã. Numa tela resguardada, claro, longe dos rebentos, delicadas joaninhas que, felizes, se deslumbravam com as flores do jardim. E, por entre efabulações descontínuas, sem capacidade para pintar os cenários que evocava, acabava sempre por perder a cor,  afugentando a presa, dando guarida ao despeito e ao rancor.
Lá fora, indiferentes ao secreto jogo multicolor, as joaninhas continuavam a sorrir. Talvez nelas, tecedeiras de cores alegres e vibrantes, residisse a verdadeira redenção, e não tivesse que fazer como Marcel Proust: discorrer em busca do tempo perdido.
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domingo, 12 de julho de 2020

LIÇÃO PRIMEVA

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Imagem retirada daqui.
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Um passeio em família, um vale com um ribeiro, a merenda.
Entre palavras e sorrisos, um melro, ladino, abeirou-se dumas migalhas. Com todos ligados à corrente das palavras, apenas o menino reparou, e o melro continuou. 
Já saciado, o melro partiu, o menino o seguiu. Foi então, importante lição, que ele percebeu que voar, para lá do falar, só mesmo na imaginação.
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quarta-feira, 8 de julho de 2020

PODERÁ LEVITAR SER SINÓNIMO DE MERGULHAR?

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Talvez fosse da conjugação dos astros, dos cromossomas, ou da alma rebelde com livre arbítrio. Não sabia explicar como o fazia, mas levitava, constantemente, enquanto os outros se limitavam a observar. Admirando ou deplorando.
Disseram-lhe que, para ser entendido, tinha que aportar em praias já habitadas, conjugar os verbos dentro da norma. Tentou, tentou, mas quanto mais tentava, mais náufrago se sentia. E então percebeu que, para agradar, mais refém tinha que ficar: de pastores, aduladores, manipuladores, confessores, ditadores, estupores...
Libertou-se, a custo, da névoa da normalidade. Sondou os ventos, libertou as íntimas aves, apanhou o expresso da incerteza. E começou, de novo, a levitar, dando cor e forma às paisagens que ia tentando domar, com dificuldade, no inevitável mergulho aos abismos mais profundos da sua alma.
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sábado, 4 de julho de 2020

GATA ESCALDADA DE ÁGUA FRIA TEM MEDO

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Descia a rua, em passo gingado, cadenciado pela música dos fones, como se cada movimento fosse tão natural como o respirar.
Entrou na marginal, fintando os semáforos, sempre com a mesma ginga. Depois, num alarde de audácia, contornou as barreiras e desceu para o areal, sempre no mesmo ritmo, como se deslizasse nas notas dum blues muito pessoal.
Quando chegou ao areal fez uma pequena pausa. Descalçou os sapatos de salto alto, adaptou os pés nus à nova textura e, retomando a ginga, encaminhou-se para o lugar onde a água beijava, delicadamente, a areia.
O sol já se despedia, dourando as águas, uma ou outra gaivota sobrevoava o local. Mas ela não se deteve. Entrou na água e, ao primeiro contacto, deu um salto de recusa, enquanto os fones iam pelos ares.
- Porra, que está fria!
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