sábado, 16 de dezembro de 2017

FELIZ NATAL, GUGA!

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Fotografia de AC (2013)
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Havia um mundo para lá das luzes da avenida, recheado de sombras, onde residiam os vencidos da vida. As estatísticas mostravam-se arredias, pouco ou nada sensíveis com tal gente, que só servia para atrapalhar as contas duma qualquer folha de Excel. Mas, por mais que inventassem novas borrachas, novas formas de subtrair, aquele mundo existia, pleno de grandezas e misérias. Ali, no patamar mais baixo da existência, povoado por um batalhão de desistentes semi-adormecidos, havia corações a palpitar, gente que, nos confins da alma, teimava em sonhar com melhores dias.
Guga tentou manter-se agarrado ao sono, num exercício quotidiano esculpido na prática da sobrevivência. O despertar da grande colmeia, numa correria desenfreada, nada lhe trazia de bom, antes pelo contrário. Àquela hora nunca davam nada e, do seu rasto, ficava apenas o perturbar do parco descanso concedido pela díspar fauna noctívaga. Tentou dormitar, mas não conseguia. Levantou-se, a custo, e esgueirou-se para os lados do Dragão Vermelho, reles bar de engate a preços acessíveis. De vez em quando o pessoal da limpeza, gente do bairro, deixava-o esgueirar-se até aos sanitários, que tresandavam a urina, e por lá saciava as necessidades mais prementes do corpo. Por vezes olhava-se ao espelho, mas era raro, só o fazia quando se sentia capaz de enfrentar os seus fantasmas.
- Despacha-te, Guga, que o patrão pode aparecer por aí!
Por ali ainda tinha nome, ainda que adaptado às circunstâncias, mas só ali. Do outro, associado a outras vivências, de há muito lhe tinha ocultado o rasto, embora, quando o fundo do poço ficava mais à vista, se insinuassem as memórias. Saiu, com um aceno, o pessoal dali nada mais lhe exigia. Sabiam bem que, na vida, há um limiar que a todos pode driblar.
Ao fim da tarde, quando a roda da vida parece endoidecer, Guga começou a estranhar. O movimento era o de sempre, gente apressada por todo o lado, mas naquela tarde havia algo diferente, como se a pressa ganhasse contornos de vida, para lá dos gestos mecânicos. Continuava a haver pressa, mas esta era diferente. Talvez fosse a expressão dos rostos, talvez os gestos mais soltos, como que alheados das grilhetas, talvez fosse tudo isso ou qualquer outra coisa que lhe escapava. O certo é que, apesar de apressadas, as pessoas pareciam transportar algo de precioso dentro de si. Até as moedas, habitualmente escassas, pingavam na sua caixa com outra intensidade.
As ruas foram ficando vazias, mas mesmo os mais retardatários transportavam aquele estranho brilho nos olhos, como se, de repente, descobrissem na sua vida algo que valesse a pena. Guga estranhava, mas não entranhava. E, às tantas, com a rua às moscas, levantou-se do seu poiso diurno, passou pelas traseiras do Clementina, onde uma empregada, de modo furtivo, lhe costumava dar umas bifanas, e dirigiu-se, sem qualquer pressa, para o beco onde, por entre cartões, sacos de plástico e um ou outro cobertor, aconchegava a sua solidão.
Naquele princípio de noite, porém, algo destoava. Encafuada num dos cobertores, lambendo as suas crias, uma mãe gata acabava de dar à luz. Guga parou, meteu a indignação no bolso e, sem se dar conta, deixou-se embalar no quadro, como se, de repente, a vida lhe mostrasse outra face. Ficou por ali, encantado, sem nada dizer, não se atrevendo a dar qualquer passo. Só despertou quando, à entrada do beco, surgiu o Tripeiro, de garrafa na mão, que lhe atirou, com um quase sorriso:
- Feliz Natal, Guga!
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sábado, 9 de dezembro de 2017

PALAVRAS, TAKE 1

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Júlia Tigeleiro, É só um olhar...
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Parecia nada ter de especial, mas ninguém lhe ficava indiferente. Incisiva, sorridente, persuasiva por condição - muito mais quando acreditava convictamente naquilo que dizia, ou fazia - meneava a espessa cabeleira ondulada enquanto fazia valer o seu ponto de vista. E insistia, não desistia facilmente.
Vais ver que gostas, dizia-me ela, dando forma ao seu perfil entusiasta. E, rendido a tanta crença, lá fui.
À primeira vista, envolvida num fato cinzento e resguardando o olhar atrás duns óculos finos e redondos, a conferencista não suscitava grande crédito. Talvez fosse preconceito meu, considerava, mas o olhar da Inês, que me era enviado embrulhado num sorriso apaziguador, continuava a garantir que valia a pena. Por fim, depois de sucinta apresentação, a suspeita lá começou a debitar palavras, que a determinada altura começaram a merecer alguma atenção.
A vida, dizia ela, não é um caminho estreito, ladeada dos arbustos de que mais gostamos, como se pudéssemos manipular tão sabedora ama. Não, a senhora em causa ultrapassa o nosso conhecimento. Podemos tentar adivinhá-la, adorná-la com toda a espécie de cultos, sentir que estamos próximos, venerá-la mesmo, mas nem mesmo assim a esquiva madame se compadece.  
Até aqui tudo bem, pensei. Estava a gostar do rumo da coisa, em crescendo. 
Seguimos a intuição, estudamos, tentamos desvendar os pequenos e grandes sinais, porfiamos, mas nada. A grande resposta teima em se ocultar. 
Começava-me a interessar, como se por ali houvesse preocupação em construir, não em vender.
De vez em quando, prosseguia ela, condescendemos numa pausa para viajar, para caminhar no que resta da natureza, para dançar, aqui e ali conseguimos introduzir o riso. Mas não basta.
Apurei melhor o ouvido. Será que a conferencista iria ousar debitar alguma fórmula?
A vida, meus caros, é uma constante descoberta. Em nome do conforto e da segurança deixámos que alguém se apropriasse dela, ditando regras e modos, cores e odores, a um preço módico. Mas apenas na aparência. Quase sem nos damos conta, qual menino apaziguado dos seus medos pela figura incontornável da mãe,  ficámos reféns do que nos venderam, daquilo a que nos habituaram. É preciso reagir, é urgente não dar a outra face. Nós, instituição que se preocupa com o aparecimento dum novo homem, temos uma linha de atendimento que...
Afinal era mais do mesmo, uma venda ao vivo com contornos aveludados. Segredei qualquer coisa ao ouvido da mulher de farta juba, que não estranhou, levantei-me e saí.
A Inês apareceu no bar uma hora depois. Não vinha eufórica, longe disso, mas sentia-se bem. Ambos sabíamos que nos esperava uma noite regada por muitas palavras, condicionadas por uma única regra:  filtradas de vazio e de fel, com muita alma e coração. Só assim, para nós, elas faziam sentido. Era a única forma que conhecíamos de tentar (re)construir a vida.
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sábado, 2 de dezembro de 2017

O CAÇADOR DA LUA

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AC, Beijo lunar
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Já lá vão muitos anos, mas é como se fosse hoje. Nas noites frias de Inverno, à lareira, os mais velhos gostavam de recordar, de contar, inundando a noite com personagens vestidas com roupagens muito próprias, como se nelas se escondesse a explicação das coisas. Eu adorava ouvi-los, hipnotizado pelas palavras e pelos gestos, e foi nessas histórias que comecei a desenhar o mundo, muito para lá da geografia que me rodeava.
Zé Rosendo é pura ficção, é claro, nascida num momento em que, no aconchego da lareira, a memória desses momentos se fez presente. E, em homenagem a eles, deixo-vos com o Zé Rosendo.
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Espreitava. Não por defeito, mas por condição. As noites bem podiam enrolar, num jogo de crescente aparece, crescente esconde, mas ela fazia-se sempre notar. Mesmo na ausência. E Zé Rosendo, bicho de pouca convivência, habituado à caça furtiva, sem nada para lá dos sentidos, sentia-se farto de tanto espreitar. Queria o mundo certinho, com tudo no lugar, como se a pequena parcela que habitava fosse o centro do mundo. Só assim as coisas, para ele, faziam sentido.
Uma noite, após dar voltas e mais voltas no toutiço, resolveu armadilhar a Lua, como se de bicho se tratasse. Comprou dois foguetes ao Estoira-Noites, fogueteiro de serviço nas aldeias circundantes, dirigiu-se para a Portela, sítio mais alto das redondezas, e preparou o foguetório. Quando a atrevida, bem redondinha, se balançou no céu, mesmo a jeito, o Zé Rosendo, soltando o caçador que lhe impregnava as entranhas, sacou do isqueiro e acendeu um cigarro. Depois, mal contendo a impaciência, ateou o primeiro foguete e orientou-o na direcção do disco amarelado.
Ainda o segundo foguete lhe beijava as mãos, prestes a partir, e já o caçador da Lua sentia que algo estava errado. Mas o objecto lá se esgueirou em direcção ao céu, enquanto a noite se enfeitava de pequenas lágrimas de luz, que caíam harmoniosamente, reabastecida aquando do estouro do segundo foguete.
Zé Rosendo, atónito com o espectáculo, sentiu-se testemunha de algo transcendente, como se de milagre se tratasse. Depois, diluída a euforia da luz, olhou de soslaio para a Lua e, lentamente, começou a ajoelhar-se.
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