sexta-feira, 27 de outubro de 2017

APRENDIZ

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AC, Bosque de coníferas (Serra da Estrela)
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Os passos eram lentos, cautelosos, próprios de quem está fora do seu ambiente, como se, a qualquer momento, algo pudesse acontecer que perturbasse o momento. Havia vida, muita vida, pressentia, mas quase em contenção, como se aguardasse o próximo gesto do invasor para determinar as suas intenções. Parecia que o desmoronar do equilíbrio dependia dum gesto menos conseguido, dum respirar fora de contexto, do desabar duma intenção ainda por concretizar. 
Achou melhor parar. Os minutos foram passando e, naquilo que julgava silêncio, algo se começou a insinuar: pequenos sons, leves como o cair duma folha, como o voo dum qualquer insecto, como a delicada carícia da brisa... Começou a sentir, lentamente, que fazia parte do que o rodeava, que era apenas mais um ser a palpitar. 
Os músculos começaram a relaxar. O som da queda das folhas tornou-se mais nítido; não muito longe o movimento da água entoava a sua eterna sinfonia; um ou outro pássaro começava a dar sinal de vida. Respirou fundo, em acto libertador, enquanto se fixava na arquitectura das folhas, delicado tecido de discretos seres sempre presentes, sempre a nosso lado, que teimamos em manipular, não lhes dando carta de alforria.
Sentou-se numa pedra. Tirou a máquina fotográfica da mochila e, já totalmente integrado, começou a fotografar, como se quisesse semear, dentro de si, as sensações que as árvores lhe transmitiam.
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AC, Bosque de faias (Serra da Estrela)
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sexta-feira, 20 de outubro de 2017

OS CASTANHEIROS DO POÇO DO INFERNO

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AC, Trilho na Serra da Estrela (zona do Poço do Inferno)
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A solicitação chegara, inesperada, via correio electrónico. A resposta, perante tão apelativo desafio, só podia ser uma.
O ponto de encontro ficara marcado para Manteigas, uma espécie de presépio em pleno vale glaciar do Zêzere, onde se acertaram os últimos pormenores.
Chegados à zona do Poço do Inferno, não muito longe da vila, o primeiro impacto, já adoçado no percurso de acesso, foi de plena aceitação. A vegetação envolvia-nos de tal forma que, por momentos, nem sabia bem como chegara ali, a um vislumbre de portal que nos transportava, quase sem darmos conta, à percepção e à transcendência. Talvez fosse a determinação em me levantar cedo, talvez fosse o filtro, cada vez mais apurado, de investir nas coisas aparentemente simples, em que a arquitectura verde, de tão harmoniosa, convida, de forma irrecusável, à libertação das amarras da alma. Fosse como fosse, mal ali cheguei senti que valia a pena, que estava em casa, na casa que deveria ser de todos nós. Um privilégio esverdeado, mesclado, aqui e ali, por belas e delicadas pinceladas, obedecendo ao sortilégio das primeiras tonalidades outonais.
O percurso, adornado, maioritariamente, por castanheiros, com uma ou outra faia ou um pinheiro a intrometer-se, parecia preparado para os deuses. O chão, atapetado quanto baste pelas folhas precursoras do mergulho em espiral, abafava os passos dos caminhantes, imprimindo-lhes um som peculiar, mas aconchegante. Os sorrisos de satisfação instalavam-se naturalmente, como se cirandar por esta parte da Estrela fosse receita miraculosa.
O tempo passava, sem ninguém dar conta, com os sentidos cada vez mais ligados à arquitectura de troncos e folhas, musicados por um ou outro chilreio, só distraídos com o piscar de olho das castanhas que, numa quase ousadia, espreitavam dos ouriços que enfeitavam o caminho. Ante a promessa duma boa jeropiga no final do percurso, algumas foram mesmo parar à mochila.
Mais abaixo, já perto da zona onde a ribeira de Leandres e o rio Zêzere se abraçam, surge a primeira pausa. Das mochilas saltam acepipes, soltam-se as palavras, a apreciação da jeropiga é consensual: envolvente, matreira, convidativa a mais um trago. Vindos das proximidades, dois cachorros Serra da Estrela, de rabito a dar a dar, chegam-se por perto, despertando carícias e sorrisos. Mesmo ao lado, em discreta sinfonia ancestral, a água da ribeira faz-se ouvir. Ainda faltava fazer a Rota das Faias, a caminho do Covão da Ponte, mas o dia já estava ganho.
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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

ESTAVA MADURA NO RAMO, MAS NÃO A COLHI

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AC, Romãzeira
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Sempre que posso desvio-me dos caminhos principais, apesar de, aparentemente, eles terem largueza, bom piso, luzes, sinais, câmaras, holofotes... Curiosamente é por eles que toda a gente quer passar, sempre cheia de pressa, condicionada por um qualquer chip, como se a vida se resumisse ao momento efémero da sua passagem. E como eles correm!
Eu, mortal em contramão, cada vez tenho menos pressa, confesso. Aprendi que a maturação, para se exprimir da melhor forma, requer a pacificação do tempo, ou seja, muito suor interior. 
Um destes dias, porque sim, passei junto duma velha quinta, quase abandonada. Os muros, sinal de sabedoria do construtor, mantêm uma postura digna, sem quebras, adornados com heras alimentadas pelo tempo. Espreitei. Uma romãzeira, apesar do desprezo a que parecia votada, continuava a pintalgar aquela espécie de refúgio onde, quero crer, outrora alguém descia as escadas, tranquilamente, de cesta na mão, para levar para casa aquela flor outonal.
Mudam-se os tempos e as vestes, mas a espiral das vontades parece a mesma. A minha, num primeiro impulso, foi subir o muro e colher uma romã, mas algo me prendeu. É que, cada vez o sinto mais, não é a romã que temos na mão que importa. O que faz sorrir, interiormente, é a que levamos dentro de nós.
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