sábado, 24 de novembro de 2012

AS VOLTAS DO PÃO, COM AMOR

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Pintura de Margarida Cepêda
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Envolvo-me com a farinha, a água, o fermento e o sal. O acto de amassar é cerimonioso, muito longe da aparente simplicidade, herdeiro que é de memórias profundas, plenas de significado: o esforço da sementeira, da ceifa, da moenda, etapas de um ciclo transportador de todas as esperanças, com risos, temores e cautelas. 
O acto de amassar não dispensa o fato das memórias. A pouco e pouco a massa rende-se à cadência cerimonial dos gestos, abrindo portas ao cimentar da dedicação e da perseverança. Cada gesto transporta a herança de mil gestos anteriores, ancestralidade feita sabedoria nas voltas do tempo.
Levedar é dar lugar à manifestação de alegria das carícias. E a massa, crente nas intenções, deixa-se moldar antes de entrar no forno, decisiva viagem sem retorno.
O amor, o sempiterno amor, carece das voltas do pão. Precisa ser feito, constantemente refeito, por vezes reinventado, mas sempre com delicada cerimónia.
O amor e o pão, feitos com entrega, serão sempre eterna bênção.
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sábado, 17 de novembro de 2012

ACERCA DOS HUMORES DO VENTO

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Hélio Cunha, Premonição da Morte de Ícaro
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O velho esperava-o junto da fogueira. Saudou-o, respeitosamente, e aguardou que o mandasse sentar. Quando o ancião lhe fez um leve sinal,  clareou a voz e, entre algumas hesitações, acabou por lhe falar da preocupação que sentia com o respirar do mundo.
O olhar do ancião manteve-se inalterável. Dobrou-se um pouco, ajeitou os paus do lume e, tranquilamente, as palavras começaram a brotar.
- Múltiplas facetas tem o vento. Delas todos sabemos, dele se teceram loas e memórias, mas guardou-se o baú a sete chaves.
Fez uma pequena pausa e prosseguiu.
- Quando o vento, insinuante, teima em acariciar-nos a pele, a princípio conjecturamos, mas acabamos por nos render. Aparentemente passou a ser nosso, e os afagos, com pouco esforço, parecem não ter limite. Mas, em plena festança, ele surge, rugindo, a cobrar pela lisonja.
Um pau rebelde soltou-se da fogueira numa erupção de fagulhas. O ancião, com gestos tranquilos, colocou-o no lugar. E prosseguiu.
- A lição de Constantinopla há muito ficou esquecida. Hoje os anjos têm sexo, mas o vento continua sem rosto. E ri-se, à gargalhada, de D. Quixote.
As palavras, pausadas, ecoavam no vale como se dele fizessem parte. O aprendiz, aturdido com o ardor do fumo, esforçava-se por lhes sentir o voo, mas faltava-lhe a abrangência.
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domingo, 11 de novembro de 2012

DEVANEIOS EM TONS DE PERTO E LONGE

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Hélio Cunha, O Altar da Noite
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Ecoa, tempo, ecoa...
Não olhes para o lado, não  olvides o rumor dos homens. São seres imperfeitos, é certo, amantes do seu umbigo, sempre de olho no quintal dos outros. Falam alto nos dias de sol, tagarelam, dançam, mas à noite, vasto terreno de mitos e medos, gritam, estrebucham, confrontam-se com a sua nudez. Lá bem no fundo sabem que de pouco precisam, mas é um pouco que exige muito: que entendam, que questionem, que se envolvam, que se superem, que saibam dar. Só assim poderão abranger o aroma das flores, respirar madrugadas e entardeceres tranquilos. 
A manhã, contudo, afasta os pruridos da noite, e o plástico das flores é cada vez mais perfeito.
Ecoa, tempo, faz ouvir a tua melodia. Talvez, impelidos pelas memórias, os homens se dispam de vestes alheias e ousem enfrentar o seu destino.
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sábado, 3 de novembro de 2012

RECOLHIMENTO

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Pintura de Carlos Godinho
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Hoje a chuva, imperativa,  requer espaço para melodias de uma só corda, primeiros embalos dos distantes aromas de Maio.
Recolho-me a ancestrais aconchegos. Na vizinhança da lareira há sempre pequenas feridas para lamber, há sempre terrenos de assombros por cultivar.
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