sábado, 26 de maio de 2018

O MEU PEQUENO PARAÍSO

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AC, Rosmaninho
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Cheguei a casa cansado do algaraviar dos homens, da necessidade constante, alheia às aprendizagens, de colocar cuspo no nariz dos outros como forma de afirmação. Não, não vinha, tal como o Eugénio, com os olhos rasos de água, mas o semblante irradiava nuvens cinzentas.
Uma pequena pausa, o calçar das botas, o cirandar pelo espaço circundante, alquimia natural da essência dos milagres. Estava no meu pequeno paraíso.
Olhei de relance para a pequena horta. Depois, sem pressa, contornei as árvores de fruto, detendo-me, aqui e ali, com uma papoila mais exuberante, até sentir que, ao de leve, algo começava a fazer das minhas pernas um qualquer esboço de estrada. Eram formigas, incomodadas no eterno labor de encher o celeiro, enquanto duas ou três borboletas, indiferentes à ameaça da chuva, acariciavam, delicadamente, as ervas e as couves.
Quando cheguei junto dos rosmaninhos, vizinhos duma ou outra giesta, já as nuvens se começavam a desvanecer. Recordei o momento em que, há dias, na limpeza do terreno, não consegui cortá-los. São demasiado especiais, é impossível ficar imune à espiritualidade que inspiram. E por lá ficaram, pintalgando o terreno com a sua cor inconfundível. Olhei, absorvi o perfume. Sentia que, subtilmente, se abriam janelas dentro de mim. 
A passarada, até aí cautelosa, começou, de mansinho, a fazer-se ouvir, com as notas em crescendo como se o espaço fosse, verdadeiramente, seu. E era. Já de sorriso instalado, alheio a qualquer cinto de segurança, franqueei as portas à sinfonia e deixei-me embalar, qual tripulante duma qualquer nave em que tudo, ou quase tudo, parecia fazer sentido...
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sábado, 19 de maio de 2018

VELADAMENTE

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Margarida Cepêda, The three veiled ones and the revealed one
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Longos são os caminhos, diversas são as suas configurações.
Juramos, na casa Partida, manter-nos fiéis à matriz, em nome disto ou daquilo, que nos alegra ou entristece, mas ela, pois mais que nos debatamos, é condicionada pelo que se nos vai deparando, obrigando-nos a reformular, a cada instante, a percepção daquilo que nos rodeia. É a aprendizagem, pura e dura, em que de pouco nos valem as credenciais. Ou resistimos, ficando por ali, ou ousamos continuar, sujeitos a muitas tempestades, enfrentando os medos, com algumas bonanças a adoçar o percurso, mas sempre sem fim à vista. Uma coisa é certa: sem enfrentar os medos, ousar vencê-los, nunca sairemos do mesmo patamar.
Ontem perguntaste-me - tu, menina e moça - porque nem sempre tudo é calmo e sereno, como se o mundo devesse, por natureza, ser um lugar pacífico, apenas à espera que o fruissem. Não te respondi de imediato, afinal estás apenas no início duma longa etapa. Mas, sorrindo, acabei por te dizer que nada, mesmo nada, surge de mão beijada, que há um longo caminho a percorrer até podermos sentir, no mais fundo de nós, o sentido de recompensa.
Muito irás caminhar, menina e moça, até sentires que as coisas fazem sentido. Até lá, vive cada momento como se fosse único, em cada passo dá o que de melhor tens. Ri, indigna-te, chora, comove-te, cai, volta a rir, levanta-te, mas nunca te esqueças de estender a mão. Essa é a melhor prova de que o mundo, para seguir um novo rumo, está cansado das doutrinas de Maquiavel.
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sábado, 12 de maio de 2018

O BEIJO DA NUVEM

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AC, Beijo da nuvem
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Maio insinuou-se, sedutor, convocando tudo e todos para o habitual festival de cores e aromas. 
As espigas, a caminho da maioridade - ornamentadas, aqui e ali, com o alegre colorido das papoilas - ajudavam à festa de forma discreta, mas prometedora. Não queriam ocupar o palco, contentavam-se com a promessa, num farto Junho, de encher as arcas dos bastidores.
Por perto, nas orlas dos caminhos, as giestas vestiam-se de branco e amarelo. O rosmaninho, de místicas vestes, ajudava a compor a tela, enquanto, obedecendo a ancestral apelo, procurava apaziguar o infatigável labor das abelhas.
Os deuses, saindo do seu torpor, invejaram o quadro. E, não resistindo a deixar a sua marca, segredaram às nuvens para beijarem, delicadamente, a terra.
Chamei-te para veres, chamei-te para sentirmos. Estava na hora da mais natural das comunhões.
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domingo, 6 de maio de 2018

CRÓNICA DUM HOMEM SIMPLES

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AC
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Arredara-se dos homens, seres de mil faces, e acomodara-se numa pequena quinta abandonada. Mau negócio aos olhos dos outros, um pequeno paraíso, feito refúgio, no cintilar dos seus. Os filhos bem tentaram demovê-lo, mas nada feito. Era mesmo aquilo que ele queria.
Alberto limpou, cortou silvas, fez obras, rasgou a terra. Quanto mais fazia mais se ligava, mais jorrava, dentro dele, um sentimento de pertença.
Sentia-se grato a cada dia que passava, de alma aberta ao crescimento e ao definhar das plantas, ao distanciamento respeitoso da bicharada. Só os pardais, eternos senhores de qualquer lugar, pareciam indiferentes à sua presença.
Com o tempo foi descobrindo a magia dos enxertos, qual alquímica arte de multiplicação dos frutos. Tentou macieiras, cerejeiras, pessegueiros, pereiras, abrunheiros... Ganhou-lhe o jeito e, vá lá saber-se como, começou a ganhar prestígio nos seus vizinhos, que de vez em quando o convidavam para exercer o seu talento. Talvez fosse pelo reconhecimento da sua arte, talvez fosse pelo pretexto de saber mais daquele homem simples, de olhos brilhantes, que nunca se queixava fosse do que fosse. E isso intrigava-os. Alberto ajudava no que podia, tentava ser cortês, mas depressa regressava ao seu refúgio. Não era dado a grandes conversas.
Os filhos visitavam-no uma vez por ano, mas depressa se iam. Amarrados pelos compromissos de outras vidas, continuavam a não entender aquela espécie de felicidade do pai, cada vez mais entranhada.
Com o tempo começou a tentar enxertos de várias espécies na mesma árvore. De uma só qualidade era fácil, a questão residia quando tentava congregar várias espécies. Tentou, cogitou, voltou a tentar.
O tempo dum homem nesta vida é limitado, e Alberto bem o sabia. Tudo tem um rumo, um caminhar, e outros homens ocupariam o espaço dos que, entretanto, iam partindo, deixando um legado natural, por mais ínfimo. Sentia-o profundamente, a comunhão com a natureza assim lho ditava. Talvez, por o sentir de forma tão profunda e, em simultâneo, natural, nunca se inquietou com questões de vida ou de morte. Continuava a fazer o que achava que devia, que lhe dava satisfação, num permanente deslumbramento pelas manifestações da vida. Por vezes, alheio à noção do tempo, era capaz de ficar horas a observar um besouro na sua labuta diária, era capaz de se deslocar uma distância considerável só para saber onde um melro fazia ninho...
Um dia, no fim do Verão, também chegou a sua vez. Os filhos, depois do funeral, reuniram-se na casa da quinta, fazendo contas à vida, e só então repararam numa árvore, diferente de todas as outras, que dava ameixas, pêssegos, pêras, maçãs... 
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