sábado, 26 de março de 2011

O CALOR DAS MÃOS

.António Tapadinhas, Azul, azul
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Desligam-se as amarras do convencional, passo irreversível para o vislumbre da arquitectura do entendimento.
O confronto com a nudez, em paisagens pouco definidas, resgata o choro umbilical. O olhar vai-se fixando em minúsculas crateras, pequenos vales, grutas dispersas, instantâneos orientados em convergência disforme. A visão começa a construir referências, integrando os ventos num campo cada vez mais nítido. A pouco e pouco insinua-se a textura do barro, e o choro mistura-se com o riso. Aumenta a dimensão do olhar. A percepção do barro amaina o vento, mas não faz desaparecer a inquietude. São tantas as estrelas perante um pedaço de argila...!
É então que se sente o desabrochar da flor, rompendo a ténue fronteira da solidão. As estrelas continuam longe, mas há um calor novo que renova o sentido das coisas. O calor das tuas mãos.
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domingo, 20 de março de 2011

ESPERA

.Hélio Cunha, Movimentos de um visionário
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Pudera eu amainar as tuas inquietações, vesti-las com as cores mais sublimes e tranquilizadoras. Mas, sabes, eu não posso percorrer o caminho por ti e oferecer-to numa bandeja. A convicção, na sua aparente disponibilidade, requer olhares plenos e pegadas profundas.
As flores, em apelo mudo, gritam aos quatro ventos a simplicidade dos aromas, mas apenas as sandálias do artesão parecem estar em harmonia com a mensagem.
Espero, mas não desespero. Por aqui há muito que as mimosas estão em flor.
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segunda-feira, 14 de março de 2011

SOBREVIVÊNCIAS

.Margarida Cepêda, As nossas teias
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Os tempos não iam para grandes assomos de liberdade.
O trabalho no terreno, verdadeiro sustentáculo de todo o edifício, gemia até mais não com a carga opressora. A cúpula, por seu lado, nunca se dava por satisfeita, enfeitiçada que estava na análise dos gráficos. E, na lógica do gabinete, mais um ponto percentual não custava nada. Todos sentiam o cheiro do medo, e as chefias intermédias, entaladas que estavam entre o coração e a razão, tentavam encontrar pé no mar da sobrevivência.
O Teles, chegado há pouco a um cargo de chefia - na verdade não mandava nada, era apenas um mero transmissor - começou por sentir cócegas no ego aquando da sua nomeação. Mas em breve o sorriso deu lugar à angústia quando se apercebeu do seu verdadeiro papel.
O tempo, contudo, faz milagres. E o Teles, qual ovo de Colombo, julgou encontrar a solução para anular a sua estreiteza. Forjou um projecto que agradasse às instâncias superiores e, em simultâneo, piscasse o olho às bases.
A cúpula, sorridente, bateu-lhe nas costas como quem elogia um menino. As bases, porém, já há muito tinham perdido a vontade de sorrir. O Teles era apenas mais um que tinha vendido a alma ao diabo.
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segunda-feira, 7 de março de 2011

BRISA

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.Margarida Cepêda, Prescrutando
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Princípio da noite. As primeiras estrelas, holograma de outros lugares, encenam o convite à transcendência. A lua, quarto crescente de lendas encantadas, é farol da veia poética, despertar de sentidos adormecidos. Tudo muito curvilíneo, muito sensual, o universo a conspirar no feminino. E a alma, carente de novos desbravares, acede ao desafio, embarcando em percursos de descoberta, no revolver das partículas onde assenta o livro da vida.
Uma brisa leve, um arrepio, uma ausência sentida.
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domingo, 6 de março de 2011

(DESAS)SOSSEGADAMENTE

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Os devaneios eram múltiplos, mas faltava-lhes o essencial, circunscritos que eram à margem de segurança. E parecia tudo tão bem delineado, tão bem colorido, que ficava admirada quando, ao fim da tarde, as promessas do horizonte não vinham ao seu encontro, bem deitada que estava na sua espreguiçadeira. E desacreditava. Mas esse era um estado de espírito fácil de sustentar. Sempre bem instalada, pegava no Livro do Desassossego e começava a folhear. Encontrava ali matéria abundante para, com um encolher de ombros, justificar que a linha do horizonte era um mito.
O poeta, convenhamos, merecia melhores leitores.
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