quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

O NATAL DO TIAGO

.
Paul Gauguin, La Veille de Noel
.
.
Começaram a chegar, bem cedo, acomodando-se na sala o melhor que podiam. Todos tinham recebido o recado, sem necessidade de trompetas. Uns pelo vendedor de pão, que fazia o circuito pela região de dois em dois dias, outros pelo carteiro, visitante semanal, outros por um qualquer compadre que se tinha ido abastecer à vila, com passagem obrigatória pelo Casal da Pena, residência do João Profeta. Dos que estavam mais longe, em Lisboa e no Porto, se encarregaram os progenitores, que o respeito pela proveniência a isso obrigava. A mensagem era simples: quinta-feira, dia da Sra. da Conceição, todos em minha casa. E o todos abarcava filhos e filhas, genros e noras, netos e netas.
Quando a casa ficou composta, com plena ocupação de bancos, cadeiras e o colo das jovens mães, o João Profeta entrou na sala. Caminhava devagar, como que a impor a sua presença, alicerçada em alta estatura, costas direitas e um olhar que impunha respeito, forjado muito para lá de vãs cumplicidades. Olhou em volta, percorrendo os olhos dos circundantes, remirou-os e, finalmente, soltou um sorriso, prenúncio das primeiras palavras.
- É com muito agrado que vos acolho em minha casa. Esta família sempre esteve unida, por laços de sangue, mas chegou a altura de lhe darmos outro significado.
A audiência ouvia, expectante, sabendo que daquela boca nunca saíam palavras ocas. João Profeta virou-se, devagar, até se enquadrar na gravidez de Lídia, mulher do seu neto João. Estendendo o braço na sua direcção, continuou:
- Esta mulher está prestes a deparar-se com a  maternidade. Dentro dela germina uma nova vida, prestes a brotar, e toda a gente, à sua volta, irá sentir a graça desse natal.
A assembleia não tugia nem mugia. Os filhos, elo transmissor da forma de estar de pai para netos, sabiam bem que, daquela fonte, apenas jorravam palavras com significado.
- Este ano, se nada afrontar esta vontade, vamos recrear o Natal em minha casa. Já falei com o Dr. Ventura, médico da Lídia, que me disse que, quanto ao seu estado, tudo está a decorrer de forma natural, e que estava disposto, desde que tivesse as condições mínimas, a estar presente na hora do parto. Aqui.
Ouviu-se um burburinho na sala. A Lídia e o João, contudo, mantinham-se tranquilos. João Profeta, entretanto, prosseguiu:
- Também falei, de coração nas mãos, com a Lídia e o João, que me ouviram e entenderam. Assim sendo, daqui a duas semanas quero-os todos aqui, com vontade de estar e partilhar. A organização da estadia deixo-a por conta dos meus filhos, que sabem bem o que hão-de fazer.
Os dias passaram. A casa do João Profeta começou a ganhar um movimento inusual, com entradas e saídas pautadas pelo uso das ferramentas. Reparou-se parte do soalho, reviu-se a instalação eléctrica, abasteceu-se a despensa, cortou-se lenha para encher o resguardo até ao cimo. O médico, entretanto, passou pela casa para escolher a divisão mais adequada. Ficou-se pelo quarto maior, onde acomodou compressas, agulhas, seringas, lâminas, xylocaína, povidine tópico, gazes, uma sonda. A cozinha, ampla, levou uma volta de alto a baixo, com tachos e panelas a confrontarem-se com uma barrela como há muito não viam.
A hora aproximava-se. Na véspera do previsto começaram a chegar filhos e netos, instalando-se em tudo o que era divisão. Abraçaram-se, trocaram impressões. De seguida, não fosse o progenitor espicaçá-los, despertaram colchões, manusearem lençóis e cobertores, puseram a conversa em dia. O João Profeta, omnipresente, evitava falar, apenas impunha a sua presença. E só quando a Lídia e o João chegaram é que lhe ouviram a voz, quase sempre dirigida ao elemento feminino: vem para aqui, senta-te ali, descansa, o que é que queres comer. O João, compreensivo, apenas sorria.
À noite comeu-se o tradicional: bacalhau cozido com couves e batatas, regados com o vinho da produção do João Profeta, a que se seguiu um arroz doce e um pudim de ovos de estalo. A conversa insinuou-se, de forma fácil, os afectos estavam demasiado presentes. O João Profeta sorria, satisfeito, como que de pazes feitas com a vida, enquanto as mulheres, na sua sabedoria, iam fritando as filhós, enquanto entoavam cânticos.
Às tantas, já o calendário transbordava para lá da meia-noite, ouviu-se um choro a irromper na vida de cada um: acabara de nascer o Tiago, símbolo de tudo o que ali os trouxera. O Dr. Ventura, refém da sua palavra, afastou as portas do quarto grande para mostrar, a toda a família, o símbolo daquele encontro: a união, a paz, a entreajuda. Os copos ergueram-se, em uníssono, deixando as filhós para segundo plano. O velho João Profeta, com voz embargada, lá acabou por dizer:
- Que o natal do Tiago seja sempre referência para todos nós. Saúde!
Dizem as pessoas que, nessa noite, a Serra da Gardunha brilhou como nunca dantes, vá lá saber-se o porquê.
.
.
.
Um Natal pleno de significado para todos os meus amigos e leitores!
.
.

sábado, 17 de dezembro de 2016

PINHAL

.
Fotografia de AC
.
.
Caminhava, inspirando o ar dos pinheiros, mastros de velhos veleiros insinuados pela leve bruma, quando te pressenti para lá da curva do castanheiro. Sim, eu sei que não eras tu, era apenas a vontade de te sentir, ali, longe das amarras, povoando o pinhal de novos encantamentos.
Ontem, quando te vi para lá dos pinheiros, estuguei o passo, quase sem me dar conta, dando lastro à fantasia, não fosse ela gorar-se pela lentidão dos meus passos.
.
.

sábado, 10 de dezembro de 2016

ESBOÇO DE TELA PARA LÁ DOS MUROS

.
.
.
Custara a chegar, por entre solavancos na terra batida, mas valera o esforço.
O enquadramento parecia perfeito, quase talhado à medida. Dir-se-ia que, por ali, ficara marca ancestral, de seres com outra noção de tempo e espaço, qual sinal, para lá da beleza, da efemeridade de todas as posses. Talvez, quem sabe, se perdessem, algures, na rota, cegos pela ambição. Algo, contudo, ficara para os vindouros, bárbaros perfumados de demasiadas (in)certezas, quase todas rodeadas de muros, mas com uma inesgotável capacidade de surpreender.
Ainda que a prazo, o enquadramento, naquele recanto, parecia fazer tábua rasa da tirania das desgraças feitas, dando voz ao que de mais íntimo nos povoa a alma.
.
.

sábado, 3 de dezembro de 2016

PARA LÁ DO TORPOR, RESPINGOS DE COR

.
AC, Gardunha
.
.
Subíamos a serra, confiantes, em busca de sinais, de pequenas telas metamorfoseadas de vida.
Para trás ficavam as amarras, a cada dia mais fortes, na sua, mais que estudada, subtil forma de se insinuarem. Via-te desperta, atenta a cada passo, mergulhando, cada vez mais, no irrecusável convite da paisagem. A amálgama de cores preenchia-te, sem dramas, dando forma à tua ânsia de respirar, à tua necessidade de construir. Mantinhas-te tranquila, transpirando serenidade, o sorriso que esboçavas dizia-me que a libertação, embora a prazo, ganhara asas.
Sentíamo-nos bem. Continuávamos a subir, destilando a harmonia da sã convivência entre cerejeiras, carvalhos e castanheiros. Parávamos, aqui e ali, dando corpo ao prazer das pausas, para acentuar impressões e visões de renovadas arquitecturas. Só nos detíamos quando começávamos a divisar os limites da tela. 
Invertíamos a marcha. Sabias, como eu, que o cerco era cada vez mais estreito, que a Roma, à míngua de pão, sobrava-lhe cada vez mais circo. Para além dos devaneios, em busca de novas galáxias, restava-nos a cumplicidade, a dignidade na convicção do caminho a percorrer.
.
.

sábado, 26 de novembro de 2016

OUSAR

.
AC, Medronho
.
.
A chuva, persistente, não se cansa de encharcar os caminhos, como que a semear a passagem para os mais persistentes. 
Para lá do abrigo, em permanente desafio, insinuam-se preciosidades, adequadas ao tempo, acenando, em discretos sinais, com o muito que existe para lá do convencional. E eu, humilde viajante da vida, sinto-me grato pelo que ouso, pela recompensa do que sinto.
Encharcam-se os caminhos, mas a vida, para quem ousa, continua a aquecer a alma.
.
AC, Medronhos
.
.

sábado, 19 de novembro de 2016

A PENA, APENAS...

.

.
.
Há uma pena, para lá das penas, que recusa viver num mundo de pena.
Há uma pena, para lá das penas, que se agita, febril, enquanto, num grito surdo, dá vida a uma folha de papel.
Há uma pena que, apesar das penas, esbraceja, luta, grita, enquanto se desnuda.
Há uma pena, para lá das penas, que sente que vale a pena.
.
.
Ontem, quarta-feira, a Luiza presenteou-me, a propósito deste texto, com o desenho que o encima. Gratíssimo, amiga! (24/11/2016)
.
.

sábado, 12 de novembro de 2016

A LENTA VALSA DAS MEMÓRIAS

.
Fotografia de AC
.
.
Ontem, quando te reencontrei, após efusivo cumprimento, não resististe em apelar às memórias. Pensavas, essencialmente, nas tuas, como se o mundo girasse em torno da tua época de esplendor. Ouvi-te, atenciosamente, acompanhei-te na reconstrução de tempos áureos, mergulhei nos cenários em que tu, menina e moça, eras motivo de romaria. Encantavas, filtravas olhares, imaginavas tapeçarias forjadas pelos poemas que te sussurravam.
Ontem, quando me despedi de ti, houve algo que viajou para lá da tapeçaria desbotada. Sim, eu sei que tu dizes que sabes, mas às vezes esqueces-te: a vida, na sua essência, vai muito para lá do esplendor. A vida, no seu âmago, requer, acima de tudo, harmonia.
Amanhã, quando te reencontrar, gostava que esquecesses, por momentos, o receituário da tua subsistência, encalhado entre a terra e o céu, e me falasses, por entre sorrisos, das músicas de roda da tua meninice, em eterno canto de embalar. Se te enganares na melodia, recomeça. Vais ver que tudo acaba bem.
.
.

sábado, 5 de novembro de 2016

ÀS VEZES

.
Fotografia de AC
.
.
Às vezes, quando ouso sair dos caminhos, sem roupagem catalogada, novos mapas parecem desenhar-se, como se houvesse outro mundo para lá da cortina.
A constância, porém, apesar de muito cortejada, não é menina casadoira. Há horas em que, por mais que se porfie, não se consegue despir o fato-macaco da existência. Mas quando a alma, insatisfeita nave-mãe, ilude as manchas de óleo, irisando-as, nada há que detenha novos olhares, novas arquitecturas, novas reconstruções.
Às vezes, quando ouso sair dos caminhos, a poesia parece tatuada na minha pele.
.
.

sábado, 29 de outubro de 2016

AQUI E ALI, O PERTO E O LONGE

.
Fotografia de AC
.
.
Conheço-te, à distância, pelos pequenos sinais que vais deixando, de forma cautelosa, sobre aquilo que cogitas da vida. É mais fácil, toda a colmeia o sabe, libertares-te quando, olhando em volta, colocas o dedo em riste, apontando. Mas, por comunhão, todos intuem que sentes mais dificuldade quando, em exercício inevitável, constante, tens que olhar para dentro de ti, encarar possíveis fragilidades, renegando, quase por instinto, indícios que possam conduzir à tua nudez. Dói, dói sempre.
Com a saga dos medos por enfrentar, alimentada pela imaginação, o conceito pode parecer-te arrepiante, tenebroso, mas, podes crer, a nudez é o que de mais puro temos, ponto de partida para, soltos de amarras, lobrigarmos novo patamar. Podes barafustar, contestar, mas apenas te arranhas a ti próprio, renovando o sofrimento, enquanto alimentas, em doses generosas, o labirinto que habita em ti, embora, quase sem te dares conta, vás deixando uma flor aqui, um abraço ali. Talvez, quem sabe, porque guardaste, no mais fundo de ti, o melhor das tuas memórias.
Quando, sempre à distância - estamos todos perto, no mesmo infortúnio, estamos todos longe, no mesmo desígnio - te sinto esbracejar, debater, a tentar romper a névoa, há um calorzinho agradável que, por mais ténue, mais subtil, me aconchega. Ainda não te rendeste, a vida, por mais madrasta, continua a ser um aliciante desafio.
.
.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

PAISAGEM

.
Fotografia de AC
.
.
A paisagem, com o vento ausente e a parca luz duma réstia de sol, quase parecia parada. Até o ténue ruído do tractor, à distância, a preparar, provavelmente, a terra para a sementeira de trigo, parecia fazer parte da quietude. Mais próximo, em cadência lenta, um cão emitia um ou outro latido, um quase exercício de desfastio perante a calma instalada, enquanto um rebanho, em serena comunhão com as ervas, saciava, tranquilamente, o natural apetite.
Mais à frente, acedendo ao convite do declive, porta aberta para o mais profundo do vale, as águas do rio,  fonte de toda a vida circundante, acentuavam o sentido de aparente apatia. Tudo parecia parado, embalado no adorno de ancestrais memórias. Apenas um bando de pintarroxos, estranhando a intrusão, ousou romper  o véu da calma instalada, esvoaçando para lugar mais seguro.
.
.

sábado, 22 de outubro de 2016

OLHARES, AVULSOS, SOBRE A COMPLEXIDADE DAS COISAS SIMPLES

.
Fotografia de AC
.
.
Nem sempre estás, a vida, aos teus olhos, é demasiado exigente. Quando, por vezes, correspondes ao toque da campainha, a configuração do horizonte já tudo transfigurou. Sentes, como eu sinto, que tudo o que nos rodeia, para seguir em frente, não espera por ninguém. Por isso te maravilhas, em tempo de pausa, no observar das plantas, por isso te espantas, em aparente sobressalto, quando elas invadem o que, negligentemente, parecia teu.
Sentamo-nos. O ilusório sentido de posse vem à baila, em subtis acordes minimais, o exemplo das plantas é quadro omnipresente. Olhamos mais do que falamos, as imagens falam por si. O sorriso, à laia de apaziguamento, acaba sempre por brotar.
Levantamo-nos, contornamos a casa e, por momentos, detemo-nos na avalanche de folhas, qual tapete multicolor, que vai adornando o caminho. Aqui e ali, contudo, a onda verde, agora quase adormecida, não trava a sua marcha. Ambos sentimos, ambos percebemos, as palavras nada acrescentam. Sabes, como eu sei, que o lugar de cada um, no mundo, não é traçado a régua e esquadro, requer percepções complexas que, no final, induzem à simplicidade. 
Quando, de novo, nos sentamos, acabas por surpreender. Hoje não embarcas em jogos de palavras, limitas-te, após pausa apaziguadora, a invocar a memória do teu avô que, sentado na sua cadeira de patriarca, em pose de estudada gravidade, nunca se cansava de dizer que a vida era simples, nós é que a complicávamos.
Sorrimos, trocamos aparentes vulgaridades, chegamos mesmo a gargalhar. O teu avô, se nos visse, confortavelmente sentado na sua cadeira, não deixaria de sorrir.
Amanhã, quando partires, de novo, para a azáfama da grande colmeia, não te esqueças de levar contigo a serena linguagem das plantas.
.
.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

ESBOÇO, MAL AMANHADO, DA CANÇÃO DA PERSISTÊNCIA

.
Fotografia de AC
.
.
Refulgem os dias de outono, como que dando o melhor de si no anúncio da demanda perdida, mas tu persistes. Alcançaste, com o teu esforço, o patamar dos que querem perdurar, mas, chegado aqui, continuas a ter dúvidas, não sabes bem o que fazer. Ouves, no soprar dos ventos ressequidos, que as memórias se perpetuam na dimensão do percurso feito, nos gestos que motivam outras visões, outras atitudes, mas o teu instinto não adere, queres ir mais para lá do fado das ideias feitas. Continuas insatisfeito, o que conseguiste sabe-te a pouco. Continua, num olhar cada vez mais selectivo, a seduzir-te a ideia de chegar além, de desmitificar o que está ali, de abençoar o que está aqui.
Estás em contra-mão, sabe-lo bem, mas há muito que, para ti, isso deixou de ser problema. Continuas a querer perceber, antes de mais, continuas a querer ser, antes de tudo. Contigo, quando voares, não haverá fanfarras, contigo apenas se sentirão, ao de leve, os acordes da canção da vida.
.
.

sábado, 15 de outubro de 2016

A VERDADEIRA HISTÓRIA DA BELA ADORMECIDA

.
AC, Mulher adormecida
.
.
Tinha adormecido, resignada, nos primórdios, não sabia bem em prol de quê. Lembrava-se, isso sim, do rumor do tempo que, apesar de cadenciado, se comprazia a confundir os outros, deixando, ao de leve, aqui e ali, pequenos sinais, quantas vezes maquilhados de travessuras, accionando a tecla da importância de cada um. E eles, ufanos pela escolha, apressavam-se a elaborar tratados, cultos, de cariz determinante, como se fossem os eleitos para a preservação das coordenadas do verdadeiro cenário.
Aprendera, com o tempo, que tudo se conjuga no infinito, a pressa apenas fazia sentido como antónimo da vida. Por vezes sentia-se tentada, é verdade, em deixar uma dica aqui, outra ali, mas até isso aprendera a controlar. Facilitar, assim lhe segredava o tempo, nada augurava de bom.
Continuava a dormir, mas de forma cada vez mais solta, mais apaziguada. Sabia, como que tatuagem em sentido crescente, cada vez mais entranhada na pele, que há rumos que não dependem só de nós. Cabe aos outros, enfrentando os medos, tecer a melhor forma de os pintar, de os esculpir, de os movimentar.
.
.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

FIGOS

.
Fotografia de AC
.
.
O sol já se inclinava quando, de cesta na mão, te abeiravas da figueira. Os pássaros, de papo cheio, já não cirandavam por ali. Debitavam poemas, por perto, à beira do ninho, e as suas estrofes, repetidas no dia a dia, como se tivessem atingido, há muito, o zénite da existência, tinham o condão de te apaziguar, de te embalar.
Olhavas, medias, colhias os figos mais maduros. Depois, com a cesta plena de ternos poemas, regressavas a casa, inundando-a com o sorriso das pequenas coisas. 
.
.

sábado, 8 de outubro de 2016

O RUIR DO CESTO DA GÁVEA

.
Sergei Aparin, Arm-char for the poet
.
.
No início havia um poço. Fundo, muito fundo, por onde começaram a despontar, por acção da luz, muitos embriões duma coisa nova. Eram energia em estado bruto, eram matéria por eclodir. Debatiam-se por espaço, no instinto da sobrevivência, em constante embate, sem toque a rebate, e só os mais fortes chegavam ao cimo, supremo apelo, sem contraditório, de algo por descobrir. 
Os que chegaram, e apesar do espaço abundante, continuaram a batalhar. Acordar, no dia seguinte, implicava sempre tolher os passos a alguém.
As células continuaram a multiplicar-se. E, no esplendor da luz, alguns aprenderam a partilhar. Perceberam que, dessa forma, teriam mais a ganhar. Mas havia sempre um, mais célere, que teimava em se evidenciar. Estava-lhes no sangue. 
Na forma, com o passar dos tempos, tudo se pareceu aperfeiçoar, mas no conteúdo, ah, no conteúdo, o embrião teimava em não se metamorfosear. Para um qualquer visitante, a vida, neste mundo, era uma entidade insinuante, plena de cores e mistérios. Em breve, previam eles, seria igualdade de enaltecer, nada a poderia deter. Assim o transpareciam as luzes, cada vez mais intensas, assim o asseguravam as mensagens, cada vez mais sofisticadas. E comungadas.
O passar dos anos, contudo, trouxe novos esboços. Por entre o toque do despertar, cada vez mais cedo, e o regresso para o descanso, cada vez mais tarde, começaram a acontecer, por mais discretas, algumas falhas de luz. O sistema, ainda que atento, não impedia que, aqui e ali, surgissem perguntas, pequenas contestações, que com o tempo ganharam consistência. Eram uma minoria, lá isso eram, mas nunca se sabe o efeito dum possível contágio. E as medidas, em prol da segurança, não tardaram.
.
Os aviões sobrevoam os ares, vemos passar as estrelas cadentes, o nosso quintal continua repleto de pequenas comodidades. Contudo, mesmo ao nosso lado, prestes a substituir a realidade virtual, o exército de deserdados, em sentido crescente, é cada vez mais real.
Pensamos que sabemos mais, mas estamos cada vez mais sós. Inquietante é a sensação de que, para lá da névoa, seres sem rosto riem, hienideamente, de nós.
.
.

domingo, 2 de outubro de 2016

O FESTIVAL

.
Fotografia de AC
.
.
Na zona havia várias figuras diferentes, características, daquelas que são postal de qualquer lugar, sujeitas ao humor dos demais. Mas o Severino era caso único.
Antigo estudante em Coimbra, por onde deambulara vários anos, acabou por regressar à terra sem curso. Diziam uns, em voz baixa, que foram amores mal correspondidos. Outros, os mais antigos, rematavam a questão com deram-lhe por lá alguma coisa a beber, enquanto encolhiam os ombros em sinal de resignação. Fosse como fosse, a família colocara uma pedra sobre o assunto. E o drama do Severino, falado apenas à socapa, acabara por se desvanecer.
Os anos passaram. O Severino, herdeiro de terras e gados, foi gerindo as coisas ao seu ritmo. Falava com todos, sorria mesmo, mas apenas o indispensável. Não era bicho do mato, mas cultivava uma prudente distância, como que dizendo aos outros que cada um sabia da sua vida.
O Severino, sabedor privilegiado, através de antigos colegas, dos humores da política de subsídios dos burocratas europeus, tudo aproveitou, fosse abate ou implemento da vinha, do olival ou do que quer que fosse.
A vida não lhe corria mal. O dinheiro, embora pouco abundante, não faltava, dava emprego sazonal, percorria os campos como quem respirava. Mas sempre no mesmo registo: falava o indispensável, sem nunca se privar de sorrir.
As pessoas, a pouco e pouco, foram-se habituando àquela forma de estar. Continuavam a murmurar, estava-lhes no sangue, mas o tom era diferente.  A desconfiança, perante quem se detinha mais com as plantas do que com os homens, tornou-se respeito, do despeito adveio admiração. O Severino, contudo, pouco ou nada ligava.
Um dia a aldeia olhou-se, interrogada, para as máquinas que passavam em direcção a um dos campos do Severino. Da boca dele, nada. As opiniões dividiram-se, com algum calor à mistura, e mais se acentuaram quando, passado algum tempo, viram que, da paisagem dum velho olival, de troncos já bastante carcomidos, se vislumbrava agora um terreno liso, com três pequenos edifícios estrategicamente construídos, ladeados com uma ou outra árvore, de maior porte, poupadas, possivelmente, para sombra.
O falatório aumentou, os rumores eram mais que muitos, mas do Severino não se ouvia nada. Alguns, com maior proximidade, ainda ousaram perguntar-lhe o que era aquilo, mas ele apenas sorria. E só quando, uns meses depois, foram convocados para uma reunião no salão da Junta de Freguesia, é que ficaram a saber o que o Severino andara a tecer aquele tempo todo: a realização de um festival de música rock, com carácter anual, que traria à terra milhares de visitantes. 
Ainda mal a missa começara e já as bocas se abriam de espanto. O Severino, tal como os desconhecidos que o rodeavam na mesa, se queriam levar a deles avante, tinham muito que explicar. Mas ele, fiel ao seu registo, continuava a sorrir.
.
.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

ACERCA DA IMPRESCINDÍVEL ENERGIA DOS AMIGOS

.
.
Da vida sei o que sei. 
E quanto mais sei, 
mais convencido fico 
que pouco, ou nada, sei.
.
Os títulos e as honras 
há muito ficaram para trás.
Ter isto ou aqueloutro, 
maior ou menor que o outro,
é coisa que não satisfaz. 
Que procuro, então? 
Que águas fomentam o meu tesão?
.
Numa qualquer encruzilhada,
alguém quer desistir.
Dou-lhe a mão, dá-me a dela,
abre-se uma nova janela,
há vontade de prosseguir.
.
Da vida sabemos o que sabemos. 
E quanto mais sabemos, 
mais convencidos ficamos 
que pouco, ou nada, sabemos.
Mas, mão na mão, continuamos.
.
.

sábado, 17 de setembro de 2016

A BIBLIOTECA QUE (AINDA) SORRI

.
AC, Chuva em modo protegido
.
.
Já chegou aos 90, mas a Ti Laurinda continua a gostar de gente, de corações a palpitar, de pessoas que gostam de ousar, de pousar, de (re)fazer, de rir. 
Os tempos mudaram muito, tanto que até parece outro mundo, mas ela não deixa que as suas memórias se apaguem. E, para os interessados, está sempre pronta para ensinar os rituais da confecção do pão e dos enchidos, como se secavam figos, como se cantava e dançava no seu tempo. Não lhe faltam histórias do outro mundo, temperadas de crenças, e até a receita de algumas mezinhas lhe continua a sair em voz pausada, mas sem hesitações. Quando o interlocutor vem com tempo gosta de falar da sua mocidade, das cantigas nos campos - às vezes, sabe, para enganar a fome - das desfolhadas, da apanha da azeitona, da boa vizinhança. 
- Veja lá que até dormíamos com a chave do lado de fora da porta!
Continua a gostar de viver, nota-se. Mas há algo que, de vez em quando, lhe turva o olhar. 
- Sabe, agora há estradas por todo o lado, boas casas, muita fartura de tudo. Nisso o mundo está muito melhor. Mas as pessoas estão diferentes, andam sempre a correr de um lado para o outro, já não dão importância à palavra dada. Têm muito, e ainda bem, que no meu tempo era uma desgraça pegada, mas nós éramos mais unidos, ajudavamo-nos uns aos outros. Agora cada um puxa para seu lado, olham de lado uns para os outros, desconfiado, queixam-se por tudo e por nada, qualquer coisinha as contraria. Porque será, mê senhor?
A chuva estival, ali mesmo à mão, serve-lhe de exemplo.
- Olhe, está a chover e toda a gente se queixa, por isto ou por aquilo. Mas as pessoas estão muito enganadas, já se esqueceram que quando chove, não chove.  É a vida a ser boa p´rá gente.
E a Ti Laurinda, matreira, sorri como quem pisca o olho...
.
.

sábado, 10 de setembro de 2016

ESTRELINHA VAI, ESTRELINHA VEM...

.
Ilustração de Luiza Maciel Nogueira
.
.
Meio da tarde. Pelo terreno, espaço de amplas liberdades, cirandava um melro que, qual boneco articulado, ensaiava, com o bico, graciosos movimentos ritmados, de vai e vem, na captura de sementes ou de alguma lagarta distraída. 
Um dos pequenotes, movido pelo deslumbramento, tentou apanhar o pássaro, irrompendo de braços abertos. Sentiu o duro do chão, preço normal de qualquer lição. Os outros, rindo, afastaram o espectro do choro. 
Um dó li tá, 
Quem está livre
Livre está!
O melro, a distância segura, prosseguia no seu debicar. As crianças, num mundo só delas, continuavam a povoar a tarde de estrelas.
.
.

sábado, 3 de setembro de 2016

PORTO DE ABRIGO

.
Barbara Issa Vagnerovà, Pesquisas Fúteis
.
.
Sempre foste assim. Queres saber, entender, fazer, numa vontade sem pausas, sem limites, sem fronteiras, como se tudo dependesse de ti, como se a química da vida, por mais delicada, estivesse ao teu alcance.
Admiro, à distância, a tua perseverança, essa crença extraordinária, por mais que caias, esse dom, capaz de dobrar qualquer cabo, de nos fazer acreditar na existência de milagres. Sabes, uma parte de mim continua sensível ao desejo de embarcar, mas a outra, filtrada em mil andanças, há muito descobriu o prazer do silêncio bordado no canto das aves. 
Continuo a observar-te, pelo canto do olho, enquanto trato das minhas plantas. Um dia destes, estou certo, irás atracar na minha horta, porto de abrigo onde as ondas, delicadas como os pássaros, vêm debicar na palma da nossa mão.
.
.

sábado, 20 de agosto de 2016

CRÓNICA ESTIVAL - O TONINHO

.
Todos os anos, pelo estio, o pequeno burgo é tomado de assalto. Centenas de pessoas, aproveitando a pausa do chicote, apontam a bússola naquela direcção, em busca de algo que as renove, que as faça sentir que a vida não é mera ilusão, que vale mesmo a pena. Os residentes, resignados à invasão, acabam por tentar tirar partido do fenómeno: uns alugam casas; os poucos pescadores, amarrados a uma prática ancestral, vendem peixe na praia; outros povoam as artérias para aliciar os veraneantes a comprar conquilha, acabadinha de apanhar; da serra algarvia, a dois passos, chegam vendedores de figos, de tomates, de melão e de outras novidades do campo...
O Toninho, já entradote na idade, também gosta de povoar as ruas com a sua "loja". Vendedor de circunstância, o que o move não é o lucro. Gosta de conviver, de olhar para as pessoas, de sentir o calor humano. Baixo, magro, de boné na cabeça, ostenta um bigode farfalhudo que parece complemento do enorme nariz, que se esbate perante o calor humano que emana dos olhos. Não, o Toninho não está ali unicamente na mira de mais uns euritos para beber um copo, até porque aquilo que tenta vender pouco apela a quem passa, ele quer, essencialmente, que reparem nele, que lhe acenem, que lhe falem.
O Toninho tem uma bicicleta, com que se desloca, regularmente, para umas surtidas ao campo, o seu mercado abastecedor. Umas vezes, se tiver sorte e o dono das figueiras não rondar por ali, consegue uns figos, que depois ostenta numa cesta de verga, com dois passarinhos de plástico pendurados no cimo, virados em sentido oposto. 
- Esses passarinhos cantam bem, Toninho!
- É verdade, e cada um canta para seu lado!
E o Toninho, satisfeito, solta uma gargalhada. A "loja" é o seu passaporte para entrar no mundo das pessoas, carta de alforria das limitações que o amordaçam no resto do ano. 
Quando o dono da loja não consegue figos da figueira, vira-se para as alfarrobeiras ou para os cactos. E, na sua montra, apregoa, com voz forte e colocada, os figos-da-índia: 
- Olha a loja do Toninho, pode provar que não paga nada!
Quando os frutos são total impossibilidade, o nosso vendedor não desanima. Pega num monte de conchas, de diversos tamanhos, e coloca-as por cima de uma caixa de fruta virada ao contrário. No meio, para harmonizar a banca, uma pequena jarra com duas flores de plástico. É quanto lhe basta para atrair a atenção das crianças, maravilhadas, que trazem sempre os adultos pela mão.
O Toninho, enfeitado, eternamente, num genuíno sorriso, apenas quer que reparem nele, que lhe retribuam o gesto. É quanto lhe basta.
.
.

sábado, 30 de julho de 2016

EPIFANIA

.
Fotografia de AC
.
.
A luz esgueirava-se, por entre as árvores, cedendo o palco às cigarras, quando tu chegaste, devagar, do lado do canteiro das alfazemas. O brilho dos teus olhos, destilando aromas de verão, era convite ao mergulho, e eu, inebriado, não sabia se era rio, se era lago, ou se era mar...
.
.

sábado, 23 de julho de 2016

(DES)NORTE

.

.
.
Por vezes, nas tuas deambulações, pareces querer redimensionar os muros, entregue aos teus próprios desafios. Tento encontrar-te, sentir-te, embora saiba que, nessas alturas, só tu possas definir o teu fio condutor, algures entre a luz e a sombra. Ainda, e sempre, forjado em equilíbrios, é isso que verdadeiramente te define.
Num universo tão vasto, pleno de cenários, de oportunidades, insistimos, dando voz ao medo, em querer reduzi-lo à nossa dimensão. De tanto querer medir as coisas, numa escala que não entendemos, feita à medida da nossa ignorância, quase deixámos de acreditar. Abrimos as portas aos vendilhões do templo.
Prosseguimos a nossa peregrinação, plena de pontas soltas, em busca de defesas e alguma humildade. Tarefa dura, desafiadora, num mundo em que a intolerância, eterna aliada das verdades supremas, investiu, com grosso orçamento, no ministério das fronteiras. E nós, caminhando por veredas, quase sempre à bolina, sem saber do norte, tentamos, por entre as folgas, manter viva a lucidez, aliada da dignidade e da esperança, cada vez mais cambaleantes: uma pista aqui, um gesto ali, sementes dum mundo por que todos ansiamos, mas que teima em dar sinais contrários. 
Talvez, um dia, consigamos forjar o nosso destino. Talvez, quem sabe, consigamos derrubar os muros interiores, verdadeiro sustentáculo de outros muros. A vida ganhará, por certo, uma outra dimensão.
.
.

sábado, 16 de julho de 2016

POSTAL MERIDIONAL

.
Sergei Aparin, Via del Pellegrino
.
.
Galgadas as últimas curvas, a urbe desenha-se, inesperadamente, em cores delicadas, apelativas, numa pequena baía pintada num azul mediterrânico.
Durante o dia não se vê vivalma, mas ao entardecer, prenúncio de todas as coisas, o pátio das casas, antecâmara do palco de trocas e baldrocas, começa a ganhar vida. 
Nas ruas, cenário de aprendizagens geométricas, o sol faz vénia à sombra,  dando início ao desfile, enfeitado de subtilezas, em que se enaltece, mais que tudo, o gesto e o olhar, jogo de múltiplas promessas, quase todas vãs. Mas doces. Os aromas, moldados em partidas e chegadas, tendem em fixar-se em salsa e tomilho, impregnados, aqui e ali, de alecrim, mas é impossível ignorar, vinda dos lados do porto, a insinuação da canela. Os peregrinos do destino, embriagados pela envolvência do cenário, esquecem, por momentos, a delegação nos outros das suas atribuições.
Num qualquer pátio, em contra-mão, dedilhando uma guitarra, alguém teima em dissecar o caminho dos outros. Talvez, quem sabe, para reinventar-se a si próprio.
.
.

sábado, 9 de julho de 2016

DA ETERNA VONTADE EM EFABULAR VERDADES

.
Fotografia de Ana Freire, do blogue Art and kits
.
.
A vida, mentora de todas as artes, eterna senhora sarcástica, que se alimenta, no seu status, da vontade de quem ousa tentar entendê-la, é exercício diário, num mundo em que, cada vez mais, pouco tempo há para essa abertura. A senhora continua a sorrir, mesmo sabendo que o défice é maior que a mais negra previsão. Ela sabe bem das virtudes da esperança, capazes de iludir qualquer vidente.
Quando te questionam, em aparente leveza, dizes que não, não tens tempo a perder. Abanas a cabeça porque continuas, para lá de teres que alimentar uma família, a julgar-te único, capaz de efabular múltiplas teorias. Mas, pelo menos quando te deitas, pensa bem: quando há algo em que acreditas, em que derramas o teu sangue, se necessário, isso só te vincula a ti? Mas... e os outros? És tu que comandas a sua vontade? És tu que controlas as suas emoções? És tu que delineias os seus anseios? A vida é bem mais do que isso, acredita, embora estejas demasiado ocupado - são as metas a alcançar, não são? - para pensar nisso. A maior parte das vezes, como consequência do número que te saiu na rifa, um beco sem saída. Então, nesse caso, que fazer?, questionas.
Eu não sei, deduzo que tu não saibas, mas gostaria muito de sentir que estás interessado em tentar saber. Não do teu quintal, que cada um sabe do seu, mas do quintal de todos nós.
Sabes, vendedores de doutrinas há muitos, cada um com a sua verdade. Contudo, para lá da sua veemência, há algo transversal que nos poderá unir. Basta acreditarmos.
.
.

sábado, 2 de julho de 2016

AQUA LUMINAE

.
Música de C. N. Gil, do blogue OQMDNT
.
.
Quando te pressinto, quando te olho, levando-me para lá de qualquer fronteira, há uma intenção, em cada gesto, que transcende as cores com que nos trajaram, com que nos querem, continuamente, continuar a adornar.
As pontas soltas, convocadas pelo súbito despertar, esforçam-se por apreender os sinais, numa dança coreografada, toda ela, em tons serenos. E é nesta aparente tranquilidade, portal mesclado de subtis apelos, que a parte luminosa da alma se distende, com vontade de irromper, de abraçar. 
Ponta a ponta, para lá da efemeridade do momento, tudo se parece soltar. É a hora dos possíveis milagres.
.
.

sábado, 25 de junho de 2016

ESTRADAS POUCAS, INSATISFAÇÕES MIL

.
AC, Estrada
.
.
há um segredo por desvendar, em cada curva
há um corpo por desnudar, em cada enlace
há uma inquietude por cuidar, por mais que turva
há uma estrada por trilhar, por mais que abrace.
.
.

sábado, 18 de junho de 2016

(DES)FADO

.
AC, Nuvem-pássaro
.
.
Olhamos, sentimos, tentamos compreender. E, por todo o lado, correspondendo à irracionalidade do medo, irrompem fronteiras, marca simbólica do que nos separa, deixando, cada vez mais, para o fim da fila, aquilo que nos poderia unir. 
Os sonhos são matéria quase profana, em detrimento das bandeiras, os profetas do apocalipse continuam a construir igrejas, com fácil recrutamento de diáconos, os muros rivalizam com as ervas daninhas. Triste fado, o da gente adormecida, apenas reagindo a instintos, presa fácil de qualquer gavião. Fado que se faz canção, lamento que, apenas consistente, aquando de copo na mão.
Há um mundo que não quer fado, há um mundo por reconstruir. Tanto de mim que quer ficar, tanto de mim que quer partir.
.
.

sábado, 11 de junho de 2016

JUNHO

.
AC, Coimbra, margem esquerda do Mondego
.
.
Quando Junho, exuberante de vida, descia do indomável corcel, as varandas, até aí enfeitadas de promessas, vestiam-se de certezas. Era a hora dos grilos e das cigarras, em harmonia com os pássaros, entoarem a sua sinfonia. Era a hora de tu chegares.
.
.

sábado, 4 de junho de 2016

O ILUSIONISTA

.
Hieronymus Bosch, O Ilusionista
.
.
As vestes, bem engomadas, eram complemento de gestos precisos, elegantes, que prendiam qualquer olhar. Na rua, num gabinete, ou em qualquer outro lugar onde palpitasse coração de gente. Aprendera que as pessoas, mesmo as supostamente mais sábias e poderosas, tinham sempre uma fenda, por mais discreta, à espera de algo que as surpreendesse, que as maravilhasse.
O homem, cata-vento, em roda viva,  da sua própria ignorância, bem tenta camuflar a sua essência, mas, qual músculo involuntário, há sempre algo revelador das suas forças e fraquezas, da sua constante instabilidade. Quase sem se dar conta, é essa fragilidade que lhe mantém a chama viva para novos passos, novos olhares, novas atitudes. No fundo, depois de pisar, derrubar e reconstruir as pedras do caminho, o homem, na sua individualidade, mais não almeja que a redenção.
Alfredo pertencia a uma estirpe que se perdia na bruma dos tempos. Conhecedor das grandezas e misérias da espécie humana, mais não fazia que explorar a imperfeição de fortes e fracos, de ricos e pobres, de avarentos e filantropos, de cépticos e sonhadores. Em suma, alimentava-se da fraqueza dos outros, da capacidade em saber explorar a tal fenda, por onde, embora negados, de viva voz, até os milagres eram permitidos, quantas vezes desejados. Era por ali, no que de mais frágil e ingénuo tinha o homem, que ele costumava investir.
Também Alfredo, contudo, tinha as suas debilidades. E, à medida que o cheiro da fraqueza humana o ia inundando, de tanto a espremer, ia desenhando, cada vez com maior minúcia, cenários para a sua possível redenção. Talvez, quem sabe, conseguisse almejar a sua façanha mais gloriosa: iludir-se a si próprio.
.
.

sábado, 28 de maio de 2016

ZÉ LOBO

.
AC, Arte urbana, com reutilização de materiais, de Bordalo II
.
.
A chuva retomara a sua cadência, de lentas vestes, tecidas em gotas anti-ressalto: onde caíam, ficavam.
Zé Lobo apertou o capote, ajeitou o chapéu e pôs-se a caminho. Sentia-se, a cada ano que passava, mais acossado, havia cada vez mais caminhos na serra. E vozes. Uns caminhavam, outros andavam de bicicleta, outros ainda, os mais temíveis, iam sugando, a pouco e pouco, a mancha de carvalhos e castinçais, substituindo-a por cerejeiras. As máquinas tornaram-se familiares por ali, trazendo toda a espécie de ruídos. E sempre com o olhar, cobiçoso, virado para cima, em busca de mais.
Zé Lobo começou a subir, por veredas quase imperceptíveis, em passo ligeiro. As velhas botas, companheiras de muitas andanças, mal se ouviam, tal a familiaridade com o meio. Mas já pouco lhe restava para andar, o espaço de que dispunha era cada vez mais curto. 
Passou ao lado da Penha, cada vez mais acessível aos outros. Em baixo, no seu casario secular, Castelo Novo parecia um velho ao sol, a contar aos vindouros, já praticamente inexistentes, os tempos de dias mais prósperos. E, para apimentar a narrativa, rebuscavam-se na memória as histórias de encontros com lobos, no caminho da serra, que levava até  Alpedrinha. Renunciou ao olhar e prosseguiu para os lados do Castelo Velho, onde já nem as pedras faziam jus às lendas, em direcção a S. Vicente da Beira. Para aquelas bandas ainda havia algum espaço para respirar, mas a merecer, cada vez mais, mil e um cuidados. 
A chuva aquietara. Zé Lobo parou junto a um agigantado penedo de granito e sentou-se. Da bolsa de pano, que trazia a tiracolo, sacou do que restava do pão, que lhe deram no Souto da Casa, e dum naco de queijo. Enquanto comia, quase sem vontade, sentia que o seu tempo se esgotava. Já ninguém ouvia as suas histórias, contadas na taberna, ou em qualquer largo de aldeia, debaixo duma árvore, ao fim da tarde, a que costumava misturar ingredientes do outro mundo. Comia e bebia, nessas alturas, e ainda enchia o saco para levar consigo. Outros tempos.
Estava na hora de continuar, mas algo reteve Zé Lobo. Espraiou o olhar, de modo quase indefinido, pela paisagem circundante, que abrangia para lá de Monsanto, até à raia de Espanha, e deixou-se ficar. A noite, a longa noite, aguardava por ele para avivar, ainda mais, os seus fantasmas.
.
.

sábado, 21 de maio de 2016

FOGACHO EM TEMPO IMPERFEITO

.
Sergei Aparin, Last Taxi
.
.

No mergulho em secreta angústia
de tanto tentar perceber as coisas,
há algo que arde, encandeia,
mesclando de alegria, quantas vezes tristeza, 
este renascer constante, de sonhos vacilante,
da vida que, por vezes, se incendeia.
.
.

sábado, 14 de maio de 2016

ROSMANINHO

.
AC, Rosmaninho
.
.
Quando a chuva amainou, esgueirando as suas gotas pelos infindáveis mistérios da terra, as abelhas, vestindo, incansavelmente, a farda da harmonia, reiniciaram a sua faina. 
Também tu, sedenta de ar livre, te aventuraste na vereda que leva aos rosmaninhos, como que a redescobrir o lugar de cada coisa na percepção do mundo. A erva ainda estava húmida, mas não te importaste. Tocou-te a singeleza, o aroma lavado, penetrante, como que a lembrar-te das virtudes da nudez. A habituação, nos homens, tende a induzi-los em efémeras certezas, coçando o umbigo, privando-os do discernimento e da clareza. Sim, eu sei que tu já sabias desta fragilidade, mas nunca é demais lembrá-la. Só assim, com vestes de humildade, o que nos rodeia tende a manifestar-se, mostrando, cada vez mais, a subtileza da sua essência.
Quando regressaste, em passo pausado, o teu olhar transparecia como um livro aberto. Sentias-te solta, apaziguada, em comunhão com os delicados milagres de cada dia.
.
.

sábado, 7 de maio de 2016

O IRRESISTÍVEL SORRISO DAS PLANTAS

.
AC, Neblina com Gardunha ao fundo
.
.
As sementeiras primaveris clamam pela sua hora, mas a chuva não dá tréguas, principalmente para quem se circunscreve aos finais de semana para piscar o olho à terra. 
Quem parece feliz são as plantas espontâneas, a redescobrir memórias de convívios ancestrais. Crescem, ufanas, com um viço estonteante, como se, de repente, obedecessem a um qualquer manifesto descolonizador. Eu bem lhes digo que há lugar para todos, mas parecem-me renitentes. E, obstinadas, continuam a crescer, argumentando, desta vez, com matéria existencialista.
Olho a chuva, expectante,  através da vidraça. A passarada, acautelada, não se mostra, também ela à espera duma pausa para procurar sementes e lagartas. As plantas, de um verde vivo, parecem sorrir, em espontânea afirmação de tudo o que é novo. E eu, rendido à sua beleza, também sorrio. Mas quando a chuva der folga, e por mais sedutora que seja a sua exuberância, as plantas vão ter que aprender a partilhar o seu espaço comigo.
.
.

domingo, 1 de maio de 2016

VIOLETAS

.
.
.
Em memória de minha mãe
.
.
Já era tarde, mãe
E a translação
Em relógio solar
Deixava sulcos
Cavados e profundos
Na vontade
Do teu respirar.
Ainda falavas
Com vontade
Da Maria menina e moça
Quando, à tardinha
No fontanário
Em apelo de mulher
Trocavas olhares
Dissimulados
Com o príncipe aldeão
E as violetas
Deslumbradas
Davam as mãos
Na elaboração do cenário
Que formalizava
As razões do coração.
O sol já se despedia
Para lá do monte
Mas ainda sentia
No teu olhar
O aroma das violetas
Que engalanou
Naquele fim de tarde
Com emoção e sem tino
O oráculo que descrevia
Num voar de cotovia
A luz do teu destino.

.
.

sábado, 23 de abril de 2016

A CEREJEIRA QUE MUDOU DE RUMO

.
AC, Enxertos
.
.
Em tempo de efemérides, cada vez mais formatadas, deixei para trás, no aconchego da sala, a voz dum cavaleiro da utopia, o eterno Zeca Afonso.  O terreno, circundante à casa, esperava por mim, em rotina tecida, aparentemente, em silêncios. Nada mais enganador. Cada planta tinha a sua história, assim houvesse alma para a ouvir. A toda a hora. 
Passei pele recanto dos rosmaninhos, que cresce por ali em livre curso, para desconsolo dos meus vizinhos. Para eles todo o terreno deve ser aproveitado. Ver giestas, rosmaninhos e outras plantas silvestres, em espontânea auto-gestão, é completo desperdício. O meu sorriso apenas lhes trava as palavras, não o pensar. Para quê dizer-lhes algo? Habituados que estão a tirar o melhor proveito da terra, jamais conseguirão compreender a minha satisfação na fruição de cores e odores. E, encolhendo os ombros, acabam também por sorrir.
Perto da horta tinha crescido uma cerejeira brava. Este ano, atiçado pela ousadia, atrevi-me a fazer-lhe uns enxertos. Talvez conseguisse, naquele viço quase indomável, encontrar a harmonia adequada para ela se redescobrir com outros enfeites. Ela lá estava, à minha espera. Os enxertos parecem ter conseguido penetrar-lhe no âmago, de tal forma que, já este ano, alguns frutos se anunciam. Olho, respiro, absorvo. Tento ouvir, tento perceber. A cerejeira, outrora brava, parece-me feliz com o seu novo destino.
.
.

sábado, 16 de abril de 2016

ESBOÇO DUM(A) POET(IS)A

.
Fotografia de João Craveiro
.
.
Ontem, quando passava no caminho das cerejeiras, em contínua procura de alimento para a alma, vi-te, de relance, a olhar para o seu florescer. Sentiste-me e, em vez de partilhares o teu encantamento, começaste a falar da lama nas botas, das incómodas abelhas que, nem com uns pingos de chuva, deixavam de incomodar.
Não sorri, podias interpretar mal. Mas, cá dentro, todo eu era contentamento. Embora não admitas, a poesia vive dentro de ti. E, quando aprenderes a olhar as coisas de frente, vais descobrir que, com ela, até o maior desassossego pode dar azo à mais bela das metáforas.
.
.

O MEU ANÓNIMO

.
Tenho um anónimo que me adora. Gosta de aparecer, como visita regular, como que a dizer que a vida é injusta. Canta-me loas? Não, não é bem o caso, é mais uma questão da sua própria existência. É por isso que se expressa em linguagem vernácula, bem pontuada, o que me leva a pensar que o meu anónimo acredita na redenção. Ele bem se esforça por agredir, fazer mossa, mas, podem crer, é apenas alguém a tentar chamar a atenção. O meu anónimo, no fundo, apenas se ressente das poucas vezes que lhe dizem que gostam dele. Pois bem, aqui fica o meu contributo para a sua emancipação: caro anónimo, qualquer pessoa, digna desse nome, não gosta de cobardes!
.
.

domingo, 10 de abril de 2016

A HARMÓNICA

.
Sergei Aparin, In memory of my grandfather
.
.
Caminhavam. Não sabiam bem para onde, mas caminhavam. O tempo não se media por instrumentos, era o estômago que ditava leis. O estômago e, acima de tudo, os filhos, mola impulsionadora de todas as intenções, de todos os passos. 
De vez em quando, numa pequena pausa, a harmónica saía do bolso, entoando lamentos e anseios. Alheavam-se, por momentos, do mundo, num forjar de forças que não requeria explicação. Era assim, simplesmente, imitando o deambular do sol e da lua.
Quando encontravam alguém, os sentidos ficavam alerta. Andarilhos de muitas paisagens, conhecedores das grandezas e misérias do homem, procuravam, no interlocutor, sinais de abordagem: se era sensível aos outros, se era mesquinho, se olhava de frente. E agiam conforme as circunstâncias.
No regresso, passada a curiosidade das crias, a ordem instalava-se. Cada grão tinha um preço, cada gesto uma intenção. E comiam, gratos. Só quando a harmónica, em acção de graças, saía do bolso, é que os sorrisos se soltavam.
.
.

sábado, 2 de abril de 2016

OLHARES

.
Foto de AC
.
.
Há algo, no olhar, que revela muito da essência de cada um. Não é o olhar das imagens de cinema, quando aquele actor, ou actriz, pega em nós e nos transporta para determinado contexto, determinada situação, com a qual tendemos a identificar-nos. Não, não é isso, deixemos os ícones de fora. Estou a referir-me ao olhar livre, com espontânea ligação à alma, em que, de repente, nem que seja por um só instante, conseguimos alhear-nos das amarras, das convenções, em que a roupagem é um empecilho. Nessas alturas, únicas, em que permitimos que a nudez nos inunde, fora de qualquer ideologia, a vida ganha outras cores, outra configuração. E, deixem que vos diga, é no cultivar destas pequenas conquistas que, lentamente, e por mais que o mundo se agite, a serenidade fica cada vez mais perto.
.
.

sábado, 26 de março de 2016

ORÁCULO DAS NUVENS

.
AC, Nuvens
.
.
Há algo, no vale, alheio ao florir tardio das árvores, que sugere desconforto, inquietude. Sente-se, no ar, o clima das mudanças não desejadas, uma sensação de frio, alheia à geofísica, que tolhe olhares calorosos, que impele ao fechar das portas.
Olho para ti e, por mais que teimes em sorrir, as janelas que aprendemos a partilhar não escondem o que te vai na alma. O mundo está a mudar, cada vez mais depressa, mas nem sempre para melhor. Não era o que querias, eu sei, não foi nisso que te empenhaste. Esboço uma ou outra generalidade, que é depois da tempestade que vem a bonança, mas o barulho surdo da intolerância, cada vez mais pesado, não te deixa acreditar. Falas como se todos fossem teus filhos, teus netos, querias que o mundo fosse uma enorme casa pintalgada de todas as cores.
Por mais que, no mais fundo de mim, continue a encontrar crença na capacidade de regeneração do homem, há momentos em que as palavras de nada servem, são meros escolhos. É hora de te abraçar.
.
.

sábado, 19 de março de 2016

AVIÕES

.
Foto de AC
.
.
gosto de os ver passar
de sentir
que há sonhos por trilhar
que há sempre para onde ir
.
.

sábado, 12 de março de 2016

PORTO DE ABRIGO

.
AC, Amendoeira
.
.
No sossego do vale o mundo era roda a girar, sem obstáculos, cada  movimento parecia obedecer a ordem divina. O teu riso, suprema dádiva, era homenagem espontânea à vida,  que fruías, sem te dares conta, em total harmonia com a envolvência. A realidade era circunscrita, é verdade, mas era a tua. E acreditavas.
Quando partiste, com mil sonhos na alma, os teus olhos diziam tudo: querias abraçar o mundo. E esbracejaste, lutaste, insististe... De repente, na ressaca da tua navegação por recibos verdes e contratos a prazo, dou-me conta da transfiguração do teu ar: sério, quase sem expressão, a argumentar com falta de esperança. Sentes-te cercada, ameaçada, afinal o mundo não é como imaginaras. E, supremo sintoma, já nem falas das flores.
Ontem, quando chegaste, apesar do teu semblante carregado, gostaria de te ter mostrado as amendoeiras em flor, mas o seu auge passara, vinhas atrasada. Talvez, quem sabe, estes dias por aqui te façam redescobrir o milagre da simplicidade. Não sei se ainda te lembras, mas as cerejeiras e os pessegueiros estão quase a ficar em flor.
.
.

quarta-feira, 9 de março de 2016

ECOS DA BESTA

.
Fotografia de AC
.
.
Divago, olhando a terra, como se cada dia fosse um milagre. Houve esforço aqui, houve dedicação, houve a percepção de que cada coisa carece do seu tempo para se manifestar. Sem pressas.
De longe, cada vez mais perto, chegam-me notícias de gente apressada. Os que fogem, ansiando apenas por abrigo, tocam-me a alma, sinto-os como meus, a sua pressa é a mesma da presa acossada. Os que encurralam, contudo, debitam pressas de eficácia. Os números, para eles, estão inflacionados, há demasiadas pessoas a interferir no mau desempenho da fórmula do bem-estar. E é preciso eliminar, eliminar, eliminar...
Olho a terra, divago na sua simplicidade, continuo a senti-la eterno milagre. Mas, por mais que o evite, o eco do clamor teima em aproximar-se. No mundo dos homens, com memória de rédea curta, os ciclos de intolerância teimam em repetir-se.
.
.