domingo, 27 de dezembro de 2015

DA ESQUECIDA ARTE DE BEM VIZINHAR

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Fotografia de Cropping View, Telhas de vidro
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A Ti Joana tinha milho na arca, a vizinha tinha galinhas.
A Ti Joana, que tinha milho em demasia, deu parte à vizinha. A vizinha, que tinha muitas galinhas, deu uma poedeira à Ti Joana.
A galinha poedeira pôs ovos. A Ti Joana reservou alguns para a galinha chocar, com os outros fez um bolo. E partilhou-o com a vizinha, que lhe perguntou se precisava de sementes de ervilha.
Manhã cedo, quando o canto do galo se fez anunciar, já a Ti Joana aquecia água para o café da manhã. Quando saiu, de cesta na mão, bateu à porta da vizinha e inquiriu:
- Maria, vou à horta. Queres que te traga alguma couve?
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sábado, 19 de dezembro de 2015

CONTO DE NATAL

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Fotografia de JB
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A década de sessenta iniciara-se há pouco.
Na aldeia, inclinada à inclemência dos gelos da Estrela, não se poupava na lenha. Em casa do Luís Pereira o lume crepitava desde muito cedo, inundando a cozinha com um calor só visto nas grandes azáfamas.
Da horta, logo de manhã, tinham chegado as mais apetecíveis couves, que iriam fazer companhia, na Consoada, ao bacalhau já demolhado, comprado na mercearia da menina Amélia. Mas havia ainda muito que fazer: só de doces ainda faltavam as filhós, que seriam fritas a meio da tarde, as rabanadas, o arroz doce...
O João, cinco anitos de gente, cirandava pela casa tentando não perder pitada de todo aquele movimento, só visto naquela altura do ano. Enquanto a mãe e as irmãs davam voltas à massa para as filhós, o pequeno não arredava pé, como se toda aquela lida desse asas ao encantamento com que vivia a época.
- Oh João, vai brincar lá para fora!
É o vais! O João empolgava-se a respirar todos aqueles preparativos para "a noite mais longa do ano", como dizia o pai, e só quando era preciso reforçar o lume é que ele condescendia em ir ao quintal para trazer mais uns cavacos. Era preciso aquecer bem a casa para receber o Menino Jesus!
Durante a fritura das filhós, toda a casa se via envolvida em cânticos. Enquanto lhes davam forma e as colocavam no azeite quente, as mulheres entoavam, em louvor do Menino:
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........Ó meu Menino Jesus
........Ó meu menino tão belo
........Só Vós pudestes nascer
........Na noite do caramelo.
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À Consoada, após a oração dirigida pelo chefe da casa, as atenções centraram-se no bacalhau e nas couves que, a pouco e pouco, iam desaparecendo de duas grandes travessas. Aos dois filhos mais velhos, já homens feitos, foi-lhes permitido acompanhar o pai e o avô num copo de vinho, que a ocasião era de festa. A noite ia decorrendo, animada, como seria de esperar numa mesa com dez pessoas irmanadas pelos mesmos sentimentos. As filhós e as rabanadas iam temperando a conversa, que alternava aqui e ali com as canções que as mulheres tentavam impor e a que todos aderiam...
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........Da vara nasceu a vara
........Da vara nasceu a flor
........Da flor nasceu Maria
........De Maria o Redentor.
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Ainda a mesa da Consoada não estava apanhada e já o João, afoito, corria para a cozinha, na ânsia de colocar os sapatos para a prenda do Menino Jesus. Ainda esboçou um gesto para levar também as botas feitas no Zé Brás, o sapateiro da terra, para ver se o leque das prendas aumentava, mas os olhos da mãe disseram-lhe que não valia a pena. Pouco depois recebeu ordem para ir para a cama, enquanto os mais velhos, com outro estatuto, saíam para a missa do Galo, a que se seguiria uma ida ao madeiro, que combatia o ar gelado da noite no adro da igreja.
No dia de Natal, bem cedinho, ainda antes do galo cantar, o João foi o primeiro a levantar-se. Com o coração aos pulos, correu para a cozinha e galgou a distância em dois tempos. Pegou no embrulho que estava junto dos seus sapatos, atado com um grosseiro cordel, e desembrulhou-o logo ali. Então, deslumbrado, pegou na camisola e nas calças novas e levou-as, instintivamente, ao seu corpito de menino. Que bem lhe ficariam na missa de Natal!
A manhã custou a passar, pois nunca mais chegava a hora de vestir a roupa nova. Ansiava pelo momento de subir a igreja, de peito inchado, exibindo a roupa para os amigos. Quando, finalmente, chegou a autorização da mãe, ele e os irmãos partiram para a igreja, onde os aguardava o encantamento das enormes figuras do presépio que o padre Nicolau tinha mandado vir do Porto.
Enquanto faziam o caminho o João continha-se para não correr. Queria chegar à igreja o mais rapidamente possível para ver o presépio, mas com a roupa direitinha. Contudo, os cânticos que se ouviam ao longe ainda acirravam mais a vontade de chegar depressa. Os irmãos, que lhe notavam a ansiedade, sorriam uns para os outros. Apesar das partidas que ele lhes pregava, gostavam muito da vivacidade do irmão mais novo, e sabiam o que ele estava a sofrer para dominar a sua vontade. Às tantas, já com a igreja à vista, o pequeno não se conteve mais e começou a correr. Os irmãos ainda tentaram segurá-lo, mas quem o conseguiu foi uma pedra solta no meio do caminho, que o fez estatelar no meio do chão.
Voltou para trás, a soluçar, vergado à enorme desilusão de ver a sua roupa nova toda enlameada. Nada o parecia reconfortar. Só a Maria José, com o jeitinho e a paciência que só as mães têm, o convenceu a vestir outra roupa. E o João, que sonhara com uma entrada triunfal na igreja, subiu a coxia de cabeça baixa, só estacando em frente do presépio. Então, à vista daquelas maravilhosas figuras, o miúdo começou a esquecer-se da roupa que vestia. Deitou os olhos para o Menino e, qual milagre de Natal, teve a certeza que Ele também olhava para si. E sorria-lhe.
Durante o almoço toda a gente estranhou o silêncio do João. Não que ele estivesse triste, longe disso, mas mostrava-se tão ausente do que tinha no prato que parecia longe dali, absorto em mil pensamentos. Mas o que passava na sua cabeça devia ser coisa boa, pois de vez em quando esboçava um sorriso. E só mais tarde, quando lhe puseram uma taça de arroz doce à frente e o viram desenhar um menino com a canela, é que perceberam o encantamento que ia na alma do pequeno.
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sábado, 12 de dezembro de 2015

APOLOGIA DAS PEQUENAS BRISAS EM TEMPO DE TORNADOS

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Fotografia de AC
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Quando ontem, ao final do dia, me despedia do revoltear da terra, vi-te passar, determinada, como quem domina o destino. E eu, que apenas tento entender-me na aparente simplicidade das voltas do sol e da lua, fixei-me na convicção que transportavas, no quase hipnótico cadenciar dos teus passos.
Avançavas, firme, sem enjeitar o caminho. As árvores, quase despidas, lamentavam a escassez de pássaros para saudar a tua passagem.
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sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

ACERCA DOS INCONTROLÁVEIS BRINQUEDOS DOS MODERNOS FEITICEIROS

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O ser humano já demonstrou, quase à exaustão, que não sabe ser senhor do seu destino. Reformulá-lo, tal a evidência, não é o problema, a verdadeira questão surge no tipo de reajuste, em quem o controla. E voltamos ao início, à luta pelo poder. Só que as armas, hoje, estão muito além do(s) feiticeiro(s).
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sábado, 5 de dezembro de 2015

ACERCA DA CONSTRUÇÃO DE PROFUNDOS SORRISOS

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AC, Caminho velho
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Perguntas-me, em jogo matreiro, com quantas teias se tece a vida. Sorris, fruindo no meu rosto breves decomposições, até estabilizar no teu sorriso. E como sorris, caramba!
Tu sabes, de cor, o que me move quando percorro novos caminhos, mas ainda te interrogas quando insisto em revisitarmos o que está para lá das luzes, em trilharmos o que já ninguém trilha. A questão não se prende com memórias, que ambos cultivamos, mas com a possibilidade de espreitar o futuro por ali. 
É a minha vez de questionar, de expandir sorrisos, de aguardar pela tua mudança de expressão. E viajo no teu ar surpreso, desprevenido, até surgir a descoberta. 
Nessa altura, quando os sorrisos se reencontram, o velho e o novo refundem-se. Tu sabes, eu sei, o importante é caminhar.
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