quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

PARA O NOVO ANO A ESPERANÇA, SEMPRE!

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Precisamos, para lá de palavras, de gestos que contem, que acrescentem, que toquem verdadeiramente na alma. Se isso acontecer, qual utopia em eterno superlativo, o mundo vai mesmo melhorar. Talvez, quem sabe, com a vontade em verdadeiro equilíbrio, para lá de ambições desenfreadas, as crianças que vão nascendo tenham um verdadeiro futuro à sua frente. Oxalá!
Para todos os que por aqui passam, e não só, que 2021 seja consignador da tatuagem da esperança. Em versão profunda.
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sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

EU NATALICIO, SEM PINGA DE PAPEL DE EMBRULHO. E TU, APARENTEMENTE DE BEM COM O MUNDO, FAZES O QUÊ?

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Imagem retirada do google
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Rebusco, em jeito de retrospectiva, em 2009 e, sem surpresa, qual eterno pesquisador, resgato palavras como se fossem pedras em eterna combustão. Afinal, sem qualquer admiração, e apesar da presença do bicho, nada mudou.
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Aproximou-se e, com ar de quem sabe o que está a fazer, levantou a frágil tampa. Lá dentro, no meio dos detritos da abundância, uma ideia desprezada debatia-se, inconformada com a inevitabilidade dos tempos. Pegou numa velha vassoura e varreu a zona contígua ao contentor, tornando-o a estrela do beco. Então, com a solenidade de algo que contivesse a maior premência, pegou numa placa, virou-a e escreveu algo no verso. Depois de a colocar de modo a nela incidir a luz do candeeiro, afastou-se do local.
Quando os almeidas saltaram do camião para recolher o lixo, depararam com uma placa onde, em letras gravadas a fogo, se podia ler: "AQUI AGONIZA O ESPÍRITO DE NATAL".
Naquela noite, no desconcertante beco, o lixo ficou por recolher.
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O tempo passou, de melhorias do beco nada constou. E assim penamos, colados na TV, no Twitter ou no Face qualquer coisa, como se dali algo de bom pudesse advir, para lá de nós.
Continuamos tolos, como sempre, assim registou o cronista. Para que conste.
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quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O ETERNO CONJUGAR DO VERBO

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Presépio, em telha mourisca, do meu ex-aluno Francisco Paulo
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O homem carregou no acelerador do velho Fiat Uno, lata amolgada carcomida pela ferrugem, mas os gemidos da mulher, no banco de trás, diziam-lhe que não iriam chegar a tempo à maternidade. A hora aproximava-se, assim lho diziam os constantes apelos da mulher, e o desespero incapacitante levou-o a virar no primeiro desvio, recurso último de quem não sabe o que fazer. O velho carro, a dar o que não podia, entrou numa rua escura, esburacada, pejada de armazéns abandonados. A cadência dos gemidos acentuou-se, accionando o chiar dos travões. Era agora.
Enquanto o homem, desesperado, tentava acudir à mulher, das imediações começa a irromper vida. Rostos barbudos, de cabelo em desalinho, caminham para o epicentro. Enquanto ajudam o casal, sente-se o ranger dum enorme portão a rodar. Um movimento inusitado começa a insinuar-se na zona. 
Estendem dois cobertores no chão, entre duas enormes pilhas de paletes, e acomodam a mulher. Ao lado, movido a urgência, alguém acende um fogão de campismo e põe água a aquecer. Vindos do exterior, dois bidões, prenhes de madeira seca a alimentar as chamas, começam a aconchegar o improvisado abrigo. 
Quando se ouve o primeiro choro, nascem lágrimas para temperar o júbilo. De repente, qual quadro há muito esquecido, o enorme armazém torna-se pequeno para tanto rosto barbudo, de olhar intenso, como se algo novo, quase indefinível, despertasse dentro deles.
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Dezembro de 2013
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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

CRÓNICA A PRETO E BRANCO, COM FORTE ASSOMO DE CORES

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AC, Gardunha vista do pequeno paraíso
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A manhã acordou escura e fria, reivindicando grossas roupas de lã, enquanto convidava, sem qualquer favor, ao recolhimento. Como a Natureza, sabemos nós, é avessa a salamaleques, é melhor dizer que, onde se estampa convite, se deve ler obrigação.
A reserva de lenha, no abrigo, assoma ao espírito, mas sem necessidade. Ainda por ali há combustível, com a lareira a laborar diariamente, para cerca de um mês. Há, no entanto, que providenciar para uma nova leva de lenha grossa, de sobro ou de azinho, que de lenha miúda, para iniciar a combustão, há muita por aqui.
O Whisky, um canídeo que é hóspede habitual, parece não sentir o frio. Clama por companhia, de pau na boca, para exibir a sua perícia escapatória, numa espécie de toca e foge, em que o desafiado tem que fazer o papel de cobaia, a fazer de conta que se esforça para o apanhar. É claro que, para seu deleite, o cão leva sempre a melhor, enquanto o oponente arfa, rendido, mas sorridente.
No terreno circundante, para além da área ajardinada, da horta de verão já só sobram couves e alho francês. Há, pois, que preparar a terra para a horta de inverno, que já não é cedo para iniciar o cultivo dos alhos, das favas e das ervilhas. Tal como os dias, diz o ditado que, no dia de Natal, os alhos já têm um bico de pardal.
A neve na Gardunha, mais escassa, contrasta com a abundância de branco na Estrela, mais a norte, mas com a certeza de que os cerejais agradecem a dádiva, tamanha, para eliminar as diversas pragas. Deleito-me, num epicentro de delícias várias, grato por usufruir dum horizonte tão gratificante.
Vou ao abrigo para abastecer a lareira de lenha e, por ente os paus, deparo-me com uma vespa em estado, parece-me, de hibernação. E, a propósito de tudo, ou de nada, assoma-me ao pensamento o tal bichinho omnipresente, que a todos condiciona. Oxalá a neve o aniquilasse, ou, no mínimo, adormecesse, mas parece que o frio tem efeito contrário. É por estas e por outras que ninguém quer o termómetro na mó de baixo nos contornos da sua vida. Por inerência, penso no Natal que se aproxima, em que um "bicho" maior deveria ser foco canalizador dum amor mais elevado. Mas, rendendo-me à evidência, condicionados pelas grilhetas, já quase todos se renderam às luzes ofuscantes dum amor menor, vendido em episódios, redimensionado, a todo o instante, pelos números duma qualquer caixa registadora. Adiante.
Chegam-me, entretanto, notícias do Miguel, num vídeo em que o meu neto evidencia, a cada dia que passa, uma vontade genuína de abraçar o mundo que, paulatinamente, se vai desenhando nos seus sentidos, ancorado, sempre, numa imensa ternura. Sorrio, de peito aberto, pois há coisas que não têm preço.
E a vida prossegue, bem apoiada em convicções tecidas em esperança, enquanto inicio o despertar da lareira com recurso a duas pinhas, apanhadas no final do verão num dos muitos pinhais das redondezas.
A paisagem pode arrefecer, mas a alma, em momento algum, pode deixar de se tentar aquecer. É do nosso desígnio.
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domingo, 29 de novembro de 2020

O SUSTENTÁVEL MUNDO DAS TEIAS

AC
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Não gostava da ventania. Fazia-lhe lembrar tempos de intolerância em que nada estava seguro no seu lugar, como se cada confidência fosse presságio dos piores desígnios. Mas quando o vento amainava, entoando, em modo suave, uma discreta sinfonia nas copas das árvores, sentia vontade de ter asas. Era então que se deixava transportar, planando, escolhendo as melhores correntes, viajando quase sem bússola, até sentir a alma cheia.
Um dia sentiu vontade real de sair do seu nicho, acicatado na vontade de percorrer novas latitudes,  sobrevoar oceanos, conhecer novas gentes, degustar novos sabores. E, por entre a necessidade de registos, testes e vacinas, sentiu que, para continuar com âncora, tinha que se deixar envolver numa vasta teia. Foi então que, vencidos medos e preconceitos, se tornou fácil depurar a falácia do sorriso artificial, começando a abraçar a vida de forma espontânea,  fomentando  teias de cumplicidade, fosse onde fosse. No fundo, se pretendia abraçar a harmonia das coisas, estava cada vez mais convicto de que, para se ser, passava por aí o verdadeiro poder.
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terça-feira, 24 de novembro de 2020

POSTAL OUTONAL EM CONTRAMÃO

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AC
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Começavam a fechar-se as cortinas, anunciando o fim da temporada, mas havia actores que, chegando tarde à boca de cena, teimavam em contrariar o estipulado, reivindicando o direito a ser. Tudo parecia estar contra, com a envolvência de rostos a não esconder a contrariedade, mas eles não desistiam, implorando ao Sol que retardasse o rumo inclinatório.
Não há memórias, nem livros, que relatem a condescendência do Astro. Contudo, quase de forma imperceptível, o Sol, naquela tarde, demorou-se um pouco mais sobre os ramos da figueira. E os figos, apaziguados, acabaram por se render ao cerrar da cortina, enquanto tentavam dissimular o sorriso que lhes aquecia a alma.
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sexta-feira, 20 de novembro de 2020

MENINA DO MAR

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Corria a praia, manhã após manhã, à procura nem sabia bem do quê. Por vezes, quando as ondas vinham de mansinho, levantava a saia e deixava que a água lhe acariciasse as pernas, como que a manter viva a chama de algo que sentia, mas ainda não vislumbrava. E assim se deixava andar, praia fora, qual personagem de romance a quem estava destinado um papel de realce, à espera dum qualquer sinal.
O tempo ia passando, em manhãs repetidas, e de sinais apenas a satisfação da carícia das águas, do cheiro da maresia, da arquitectura do voo das gaivotas... Mas persistia, tecendo convicções mil, acreditando que os elementos acabariam por recompensar tanta devoção, tanto crer.
Hoje, quando alguém a vê passar, os mais velhos, moldados que estão na luta pela sobrevivência, já nem ligam. Os mais novos, porém, ávidos da abertura de novos portais, a princípio estranham, mas acabam por respirar os desafios lançados no ar. E, como que conduzidos por mão invisível, sentem-se impelidos a desvendar os desígnios daquela senhora, eterna Menina do Mar. E, embora lentamente, começam a redimensionar o seu navegar.
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quinta-feira, 12 de novembro de 2020

CASTANHAS COM JEROPIGA: O ELOGIO DAS COISAS SIMPLES

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AC, Em busca dos tímidos ouriços
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Passeavas, lentamente, no caminho que levava aos castanheiros, como que a querer absorver a despedida das folhas que enfeitavam o chão. 
Quando chegaste, um ou outro ouriço ainda se apegava à árvore, qual ave com receio do primeiro voo, mas a maioria fazia companhia às folhas, enriquecendo, com novas formas, o tapete que se ia formando.
Deste folga aos passos, enquanto te concentravas, sem a mordaça do tempo, no mosaico outonal. E, quase sem te dares conta, começaste a tecer considerações acerca dos espinhos, qual antecâmara antes de se aceder ao fruto, acabando por embalar na vereda que te sussurrava que, sem esforço, não há recompensa. Por momentos, se tivesses a viola por perto, ousarias dedilhar, de improviso, uma qualquer melodia. Mas não tinhas. Sem alardes, sentiste a canção em ti, sorriste, e começaste a apanhar as castanhas. Por perto, aproveitando um raio de sol, a passarada tecia loas à vida. Talvez a verdadeira canção.
À noite, numa roda de amigos, com as castanhas como fonte de partilha, embaladas em acordes de jeropiga, a canção possível acabou por surgir. Naquele momento, tão nosso, com um piscar de olho à vida, éramos nós a passarada.
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quinta-feira, 29 de outubro de 2020

CONSIDERAÇÕES NO CAIR DA FOLHA

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AC, Início do recolhimento
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O sol vai-se inclinando, convidando ao recolhimento. As borboletas, contudo, continuam a pousar nas couves, depositando ovos e mais ovos, dos quais eclodem lagartas que, aproveitando o facto de eu não utilizar produtos químicos na horta, vão deglutindo folha após folha, conferindo ao conjunto um rendilhado a que, confesso, não acho muita piada. Se elas as comem, não as como eu nem os meus. Rendo-me à evidência.
As folhas das árvores, entretanto, vão caindo, começando a estrumar o solo para a ressurreição do próximo ciclo. Enquanto passeio, olhando para a configuração do mosaico cromático, o pensamento, com toda a naturalidade, começa a soltar-se. E, a propósito sabe-se lá do quê, evoco as palavras adolescentes dum papel amarelado descoberto uns dias antes, aquando dumas arrumações: "Não sei quem tu és, mas imagino-te. És alguém para quem eu esteja, sempre, disposto a dar e receber tudo, TUDO!" Assim mesmo, com ponto de exclamação, e a última palavra reforçada com maiúsculas. 
Não posso deixar de sorrir, pensando na veemência do "tudo" na convicção dum adolescente. E, quase em modo automático, relembro a quebra da espontaneidade nas crianças à medida que vão crescendo, para a associar ao soçobrar das convicções juvenis aquando do embate com a realidade.
Crescer é mesmo assim, dir-me-ão alguns. Certo, mas é também aí, para os menos acautelados, que começa o declinar dos sonhos. E, não tendo estrutura para aguentar o embate, a pessoa definha, como uma planta com pouca água, limitando-se a tentar sobreviver.
Um sonho tem que ser coisa viva, associada à lucidez, e defendido como coisa preciosa, roupa imaginária da qual nunca nos poderemos libertar. Para isso há que desafiar os medos, os tais que, na sombra, caminham sempre connosco, definindo muito do caminho a trilhar: ou cedemos, prescindindo daquilo que poderá estar para lá da próxima curva, ou seguimos em frente, ousando enfrentar o labirinto de sombras que nos tenta cercear os passos, acenando com artificiais zonas de conforto. São uma luta constante, os medos, e deles não há memória dum confronto leal. São insidiosos, traiçoeiros, sempre prontos a explorar as fraquezas do caminhante, semeando tentações sem fim. É por isso que, à chegada, embora de bem com o universo, o vencedor da caminhada é um solitário. Porque poucos o conseguem.
Na horta, indiferentes a considerações humanas, as lagartas continuam, num manjar silencioso, a rendilhar as couves.
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sexta-feira, 23 de outubro de 2020

DE ALMA CHEIA

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 AC, Estrela vista da Gardunha
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Olho para ela. É forte, dominadora, altiva, mas com o tempo tornou-se acessível, à custa do sacrifício de alguns flancos, desmultiplicando-se, conforme a latitude, em vários portais.
Continua bela, continua fonte de vida, apesar dos abusos. Dela brotam águas mil, moldando, lentamente, o omnipresente granito, eterna promessa irrigadora que se alarga para lá do horizonte. Mas começa a cansar-se de alguns admiradores do tipo "maria vai com as outras" que, incapazes de se debruçar sobre a sua essência, teimam em deixar rasto por onde passam.
Desta vez entro por Manteigas, uma espécie de presépio vivo espalhado pela parte mais baixa da encosta, onde o Zêzere galga os últimos pedregulhos antes de lobrigar um percurso mais tranquilo. À minha espera está o Zé Pedro, profundo conhecedor de todos os recantos da Estrela, que, após os cumprimentos mesclados de sorrisos,  me questiona.
- Então, subimos o vale glaciar do Zêzere, em direcção às Penhas da Saúde, com paragem no Covão d'Ametade, ou vamos para as Penhas Douradas?
Sugiro o percurso das Penhas Douradas, mas não para lá chegar. Quero revisitar a Rota das Faias, que nesta altura apresenta uma policromia de sonho, com nuances entre o verde, o amarelo, o laranja e o castanho. Sensibilidades.
Sorriu, assentiu e lá fomos nós, galgando a inclinação curva após curva, até lobrigarmos um chafariz a debitar a frígida água das entranhas da serra, a anteceder o cruzamento, à direita, que nos levaria ao nosso objectivo. Paramos o carro numa pequena folga de terra batida, saímos e olhamos em volta. Reparo que, desde a minha última visita, o mato está mais curto, como se um aparador tivesse passado por ali, e disso dou conta ao meu anfitrião. Explicou-me que isso se devia a um projecto inovador, que envolvia um rebanho considerável de cabras, e que, para além da exploração tradicional do leite, para queijo, e da carne, o objectivo era a prevenção de incêndios. Quanto mais as cabras comessem, menos as labaredas teriam que comer. Gostei da ideia.
Aconchegamos as mochilas - só agora reparo que me esqueci da máquina fotográfica - e damos os primeiros passos em direcção ao santuário. No início, quase sem me dar conta, acelero o passo, qual criança no almejar dum brinquedo, com pressa de chegar, mas quando as faias nos começam a envolver, impondo respeito, o ritmo desacelera, numa postura quase reverencial. É então hora de abrir as portas da alma, de nos deixarmos envolver na suave tonalidade das cores outonais, de deixarmos que a arquitectura das folhas seja parte integrante da Grande Arquitectura. E, por momentos, não há palavras, quase que não há passos, que se dane a máquina fotográfica. Aquilo que nos envolve é muito maior, aquilo que nos preenche, como se todas as peças do grande puzzle estivessem no lugar, não tem cotação em qualquer mercado. É um momento único, longe e perto de tudo, a percepção ao alcance duma mão, dum olhar ou dum sentir, mas que, simultaneamente, se mantém à distância, como que a resguardar-se para alguns momentos, para alguns eleitos. E por ali ficamos, em puro deleite, cientes de que não podemos levar as faias connosco, apenas uma leve tatuagem.
Quando nos despedimos, já em Manteigas, poucas palavras troco com o Zé Pedro. Ele já me conhece, basta-lhe olhar para o meu rosto para saber que regresso de alma cheia. E, cúmplice, sorri.
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Rota das Faias - Imagem retirada da Net
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sexta-feira, 16 de outubro de 2020

UMA ILHA DE M...

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Passas por mim uma, duas, três vezes e, inevitavelmente, reparo nas tuas passadas. És alguém que acredita que, para além das amarras da luta pela sobrevivência, é bom andar ao sabor do vento, sem grandes preocupações, como se, a partir do metafórico apito da sirene, pudesses navegar para uma ilha só tua. Se alguém quiser mudanças, que lute.
Estás enganado, já há muito que as ilhas estão todas monitorizadas, até as do pensamento. Sabes, já que não te queres fazer ouvir, a única forma de passares despercebido é disfarçares-te de lixo. Há tanto por aí que, com toda a certeza, encontrarás a tua ilha no meio de tanta porcaria. Não sei se isso te diz algo, mas haverá sempre alguém que diz não.
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sexta-feira, 9 de outubro de 2020

MONDADEIRAS

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Mondavam paulatinamente, como sempre fizeram, como sempre viram os mais velhos fazer. A pressa era inimiga da perfeição, diziam, o que interessava era fazer bem. O manajeiro é que não estava pelos ajustes, e não se cansava de instigar o rancho de mulheres, que se espraiva pelos campos, obedecendo ao ritmo pausado duma canção dolente, entoada a meia voz por algumas das mondadeiras.
Nas horas de maior calor circulava uma bilha de água, pretexto mais que suficiente para endireitar as costas. Curta pausa, por mais saborosa, pois não ia além dum suspiro de alívio. E voltava-se ao ritmo da canção dolente, como se a música, cadenciando os gestos, abafasse as palavras do manajeiro. 
As ervas dos outros, sem amor, nunca são iguais às nossas.
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sexta-feira, 2 de outubro de 2020

(IN)CONFORMIDADE

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AC, Abóbora
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Já as folhas amarelecem, anunciando a transumância das estações, mas ela nem repara na beleza dourada do apogeu do pulsar da vida, qual efusiva despedida, a deixar promessas no ar dum novo ciclo. Está tão ocupada em perpetuar o estio - na forma, não no conteúdo – que, sem se dar conta, vai perdendo a harmonia do caminho antes do inverno da vida chegar. 
Ouve, meu amor, não fiques emaranhada na teia do teu próprio labirinto. Se estiveres atenta, e o assumires com dignidade, há tantas estórias na história duma ruga, dum cabelo branco, que os medos se esvaem nos caprichos do vento. Além disso, se precisares, eu estarei sempre por perto. Sabes, ainda há tanto por acontecer...!
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sábado, 26 de setembro de 2020

GALGANDO O EQUINÓCIO, COM TERNURA

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Fotografias (com um intervalo de 2 minutos) de AC
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Volvido o equinócio, e já com a maioria dos frutos recolhidos, a natureza começa a recolher-se, num porto de abrigo muito próprio, arrastando nesse movimento tudo o que a envolve. O sol inclina-se, os animais recolhem-se, as sementes resguardam-se, e os solos, descansando, começam a revigorar.
Há, no entanto, uma panóplia de vida a emergir, quase em contramão, qual serviço mínimo para manter tudo em funcionamento: aves, como os tordos, que se vêm resguardar, mais a sul, da inclemência do frio setentrional, árvores que prometem frutos, como o diospireiro e a laranjeira, ou que simplesmente florescem, como a nespereira. E, enquanto nos vamos preparando para a estação fria, os milagres da vida, assim os queiramos observar, continuam a estar presentes, qual fio condutor duma vida aparentemente irregular, mas plena.
Por aqui, no meu pequeno paraíso, a passarada continua a debicar nos figos pingo de mel, dando corpo à expressão "chamou-lhe um figo". Mas, em amena convivência, e tal a abundância, sempre vou colhendo alguns para provar e, essencialmente, para fazer compota. É quanto me basta.
As amendoeiras já entregaram a carta a Garcia, mas os dois castanheiros que por aqui há ainda estão à espera de melhores dias - já não falta muito - para proporcionarem a sua oferenda. Até lá, e sem preocupações de maior, vou recolhendo os frutos dos tomateiros, que continuam a produzir, enquanto vou gerindo, conforme as necessidades, a colheita do alho francês, dos lombardos e da couve galega. As abóboras, já quase totalmente alaranjadas, começam a ficar no ponto, tal como as malaguetas, dum rubro tentador. As alfaces, duma maturação mais fácil, continuam a replantar-se, e sempre de satisfação plena. O feijão e as curgetes já lá vão, enquanto um ou ou outro pimento ainda se esforça por despontar. Olhando para o céu, bandos de garças começam a movimentar-se, em forma de >, como que a querer reconfigurar algo. Elas lá sabem.
Ontem, ao fim da tarde, e como os pequenos milagres, por aqui, estão sempre presentes, o sol resolveu presentear-me com um festival de cor, pleno de mensagens de copo meio cheio. Olhei, absorvi, registei, agradeci. E a conclusão surge, de forma natural: a vida, por maiores que sejam as dificuldades, e por mais que a queiram pintar de negras cores, continua a ser grata. Assim a queiramos ver e abraçar.
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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

POR TERRAS DA MAÚNÇA

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AC, Serra da Maúnça
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O convite surgira, apelativo, e não havia como dizer que não. E lá fomos em busca da Serra da Maúnça, prolongamento geológico da Serra da Gardunha.
A partida foi dada no santuário de Santa Luzia, no Castelejo, padroeira dos olhos, situado num promontório com uma bela vista envolvente. Mas o projecto, sedutor, iria exigir mais, muito mais. 
As primeiras centenas de metros foram tranquilas, com passagem por vacarias e pomares de variada índole, com predominância de cerejais, de plantação recente. Mas logo o caminho se começa a inclinar, como que a lembrar que as coisas gratas exigem sempre um esforço suplementar.
Passámos por matagais, com predominância de urzes e giestas, que rejuvenesceram a zona, substituindo o pinheiro, após dramáticos e inquietantes incêndios. Mas, indiferente às cogitações dos visitantes, o caminho continua a inclinar. E a marcha torna-se mais lenta, enquanto as colmeias se tornam elemento habitual da paisagem, com um leve zunzunar como música de fundo.
Mais um esforço, um gole de água vem mesmo a propósito, e começam a surgir medronheiros e alguns castanheiros, com mais colmeias de permeio. Por aqui cultiva-se mesmo o mel.
Chegamos, finalmente, ao topo. Um ou outro pinheiro, sobreviventes de incêndios e ventanias, a fazer companhia aos aerogeradores eólicos que povoam o alto das montanhas envolventes. Estacionamos junto dum afloramento granítico, autêntica ilha em mar xistoso, e deixamo-nos transportar na paisagem, disponível num ângulo completo, quase diria mais que giro. A distância, consagrada em diferentes horizontes, cada um com a sua particularidade, convida a um sorriso discreto, mas de ampla satisfação. Os deuses estavam mesmo generosos quando configuraram a altitude e a latitude daquela  montanha.  Quantas perguntas refugiadas na penumbra, como se tudo fosse perceptível! Ali, perante o impacto da grandiosidade da envolvência, a repor cada um no seu verdadeiro lugar, ninguém ostenta rótulos, ali apenas se sente. Profundamente. 
Refeita a alma, havia que cuidar do corpo. E os acepipes, saídos das diversas mochilas, cumpriram bem a sua função, dando azo a uma conversa despreocupada, bem condimentada de risos e sorrisos.
Bem refeitos de corpo e espírito, e com a conversa em dia, percorremos o que restava do cume e começámos a descer, serpenteando até à aldeia do Açor, onde, por entre sorrisos, aproveitámos para adquirir alguns produtos locais: mel, aguardente de medronho - de produção do ano anterior - queijo de cabra e algumas romãs. Ainda houve quem invocasse as castanhas, mas essas ainda precisavam de mais um tempo de maturação. 
Um adeus, mais sorrisos, e a descida continua até à Enxabarda, terra de confirmada resistência às históricas invasões francesas, onde nos aguarda o transporte que nos levará de volta ao Fundão, de alma cheia e de bem com o mundo. Sem máscaras.
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sexta-feira, 18 de setembro de 2020

SÃO TOMATES, SENHORA, SÃO TOMATES

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Fotografia de AC
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Neste verão atípico, em que os abraços foram substituídos por acenos e ideias tontas (raios, quem se lembrou da cotovelada? Um adepto da inovação folclórica?), a horta, apesar dos percalços, acabou por fazer sorrir quem nela se empenhou.
- Que levas aí?
Foi a curiosidade que matou o gato, dizem, mas não é caso para tanto. As coisas estão bem à vista, sabiamente tecidas na incerteza, a testar a paciência dum qualquer santo dos bons velhos tempos, mas sem a máscara dos santos d'agora, que têm muitos fogos por apagar para salvaguardar a dízima.
- Que levas aí?
A criatura não desiste, a insistência corre-lhe nas veias, e invoca calamidades e desgraças pré-definidas. Parece a testemunha trampada duma seita, seja ela qual for, que só se afasta com uma qualquer assinatura num papel, com letras ou em branco, de preferência no píncaro das alvuras. Aleluia!
- Que levas aí?
Olho, condescendente, para o papel representado, qual moderna intérprete shakespeariana adaptada aos novos tempos, a superlativar o tom dramático. Não evito um sorriso, mas convoco, de forma dissimulada, uma pausa: convido a criatura para me ajudar a fazer doce.
- Que levas aí?
Perante tanta insistência, e para que um suposto sagrado não se confundisse com o profano, tive mesmo que evidenciar.
- São tomates, senhora, são tomates.
Titubeando, a criatura retirou-se. Para minha satisfação e de toda a zona envolvente, nunca mais voltou a passar por perto.
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sábado, 12 de setembro de 2020

HÁ UM LUGAR...

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Fátima Marques, Utopia
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Há um lugar onde as praças se povoam, à noite, para beber as palavras que contam, enquanto os sorrisos contagiam. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde as escarpas se povoam, à noite, para ver a lua reflectida nas águas, enquanto as estrelas fazem coro. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde os velhos contam histórias, ao fim da tarde, enquanto os meninos reinventam os sonhos. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde as pessoas cantam, quando o sol nasce, enquanto cada um ocupa o seu lugar. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde as pessoas se olham, olhos nos olhos, durante todo o dia, enquanto asseguram o amanhã. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde as crianças nascem, durante todo o ano, para um mundo desenhado à sua medida. Mas eu não sei onde.
Há um lugar onde os seres vivos se respeitam, de forma natural, enquanto as cascatas se transformam em musas. Mas eu não sei onde.
Há um lugar com que todos sonham, mas a chama vai-se consumindo na aridez do caminho. Até morrer.
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terça-feira, 8 de setembro de 2020

ELAS

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Margarida Cepêda, A forma é o invólucro da pulsação
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Começaram por, sendo muito, ser pouco mais que nada.
Resistiram como rocha para lá de tântrica, indestrutível na resiliência, intuindo sempre a melhor saída para contornar a força máscula.
Foram, a pouco e pouco, ganhando espaço, principalmente em meios onde se cultivava a lucidez, a inteligência e o bom senso, para o qual investiram de forma discreta. Continuavam a ser olhadas como acessórios, mas começavam a fazer sentir a sua voz. E, aproveitando uma aberta aqui, outra ali, começaram a votar, a frequentar universidades, a escalar cargos de responsabilidade, provocando ondas de choque que abalaram ideias feitas.
Hoje, libertas de amarras, elas chegam-se à frente no assumir dos novos desafios globais e, apesar das resistências, começam a rir-se das competências dos seus comparsas do género oposto, eternos meninos mascarados de guerreiros, à boleia duma condescendência de séculos.
Eles, em momentos de desafio, costumam encher o peito, como se a honra se medisse em testosterona, mas já há muito, de forma subtil, que perderam o confronto. Desta forma, jamais jantarão o coração delas.
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É urgente outra via, eu sei. Eles que cresçam e... talvez se almocem e se jantem mutuamente. O mundo agradece.
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sábado, 5 de setembro de 2020

OLHAR DO ALTO DA MONTANHA

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Margarida Cepêda, Procurando o principio
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Pareciam vir de longe, mas já se tinham instalado há muito. Trouxeram, consigo, novas formas de ser, novas formas de estar, irrompendo nos preconceitos de quem estava. 
Houve embate, houve controvérsia, mas, após algumas desavenças, as novas gerações, de ambos os lados, acabaram por selar a concórdia. E criaram novas canções, novas danças, novas histórias...
Em nome da união, preciosidade a defender, prescindiram de subir às montanhas para ver ao longe, não se abeiraram do mar, a grande mãe, para perceber melhor a profundidade das coisas. E seguiram, muralhando-se. Hoje, unificada a forma de estar, continuam a olhar para quem chega como um corpo estranho, sujeito às mais variadas provas para ser aceite. No fundo, apesar de se considerarem na senda certa, continuam a ser uma ilha, sujeita às mais diversas intempérie de tudo o que é desconhecido. 
Cometendo os mesmos erros de outras eras e de outras latitudes, crêem-se donos da verdade. Mas, por mais defesas que criem, por mais demagogos que elejam, o mundo irá sempre ter com eles, derrubando muros de papel. É que, para lá de palavreados fáceis, a nova filosofia, a irromper, discreta, mas com a força do inadiável, precisa de todas as cores para se multiplicar e assentar. Talvez, então, entendidas as crenças de todos os lugares, com um especial olhar sobre as coisas naturais, consigamos discernir o melhor rumo para o nosso futuro.
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terça-feira, 1 de setembro de 2020

ETERNAMENTE

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Luísa Sobral, Dois namorados
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Cresceram juntos, num mundo limitado por serras e preconceitos, e começaram a olhar-se, olhos nos olhos, num maio especialmente florido e perfumado.
Quando quiseram partilhar o encanto que os unia, fecharam-se portas e janelas. E eis que, em pleno drama, alguém é impelido a partir, ela, e o outro que fica, ele, mas a prazo, e novas teias se foram tecendo na vida dos dois. 
Ela, passado um tempo, já noutro cenário, casou com outro, com filhos de permeio, mas ele nunca mais a esqueceu. E guardou-se para ela.
A roleta do tempo girou, os filhos cresceram, dando novas braçadas na vida, ela acabou por ficar viúva. Dele, nem rasto.
Um dia, num daqueles acasos manipulados pelos deuses, cruzaram-se num jardim. Ela sorriu, ele sorriu, e nunca mais se separaram daquela sensação dum maio florido, tornando-a permanente. E, para gáudio dos deuses, continuam a sorrir, com a luz própria dos predestinados. 
Os filhos dela, rendidos, acabaram por aplaudir a eternidade daquele amor.
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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

ARQUITECTURAS

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Imagem retirada daqui
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Quando o calor concedia em aliviar a terra do seu abraço ofegante, costumavas passar, à tardinha, no caminho que levava ao que restava dos campos de margaridas. 
Apesar da trégua solar, não dispensavas um chapéu de aba larga, num bege apaziguador, que apenas libertava o rosto quando levantavas o olhar, curiosa, para tentar vislumbrar, lá no alto, a arquitectura dos ninhos das cegonhas. 
Nesses primeiros dias de Estio, enquanto o astro amainava a respiração dos outros, a tua simples passagem incendiava as minhas tardes.
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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

TRIANGULAÇÕES

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Imagem retirada da Net
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Devem ter por perto um pombal, mas, durante o dia, parecem ter fixado por aqui o seu território. 
Esvoaçam dos fios, na rua em frente da casa, para a figueira mais alta, situada nas traseiras, daí para os abetos, mais à ilharga, num triângulo de navegação em que o arrulhar é constante. Parecem felizes assim, a triangular, sempre lá no alto. Ao contrário dos parentes citadinos, nunca se aproximam. Devem ter, por certo, alimento farto, ou então tentavam apanhar umas sementes. Então o que os faz andar por aqui? A sensação de liberdade?
Hoje, bem cedo, enquanto apanhava tomates na horta, mais uma vez o arrulhar se fez sentir, com os pombos a empreender viagem da figueira para os abetos, indiferentes à restante passarada. Não sei se, com toda a pacatez que por aqui existe, se sentiram incomodados com a minha presença, mas, a ser assim, estes amigos vão ter que aprender a partilhar o espaço. Eles, lá no alto, enquanto se deleitam a triangular, que arrulhem, mas a horta é espaço sagrado para mim. A não ser que gostem de tomates, de couves, ou de outra hortícola qualquer,  que sempre se arranja qualquer coisa, mas não me parece.
Com um sorriso de permeio, fica a conclusão, enquanto se levam os tomates para casa: os pombos que triangulem, à vontade, desde que não façam disto as Bermudas. 😏
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terça-feira, 18 de agosto de 2020

MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE OS PARAÍSOS

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Ladeado de montanhas, como que a querer esconder-se das confusões do mundo, o pequeno rio filosofava, tranquilamente, enquanto ia acenando ao casario de xisto, com sardinheiras nas varandas, encimado pela enorme mancha verde dos pinhais. Nas margens, domadas, de há muito, pela força de braços, estimulavam-se hortas, milheirais e árvores de fruto. 
Bem cedo, mal as manhãs se desenhavam, já os ganhões, irmanados ritualmente às suas juntas, irrompiam pelos caminhos para retomar a eterna azáfama. Cientes do seu estatuto, davam ordens aos bois, enquanto lavravam, como se tivessem divisas: 
- Vira aí 'marelo! Ah, coisa linda!
O fumo dos fornos, entretanto, anunciava novas fornadas de pão fresco, de milho ou de centeio. No final, assegurada a fornada, as mulheres ganhavam um ar mais despreocupado e, pegando num naco de toucinho, numas rodelas de chouriça ou numa sardinha, era o que houvesse, embrulhavam as iguarias com a última massa para fazerem umas picas, reservando-as, depois da passagem pelo forno, para presentearem as suas crias como se da coisa mais preciosa se tratasse.
De vez em quando, dando tréguas à pacatez, passava uma cabrada, anunciada pelos chocalhos, com os impropérios do pastor a delimitar espaço a qualquer animal mais rebelde, a cobiçar uma qualquer iguaria da vizinhança.
- Onde é que tu vais, Castanha? Ah, filha da p…!
A meio da tarde, indiferentes à poeira do caminho, cardumes de ganapos rumavam aos locais do rio mais propícios a um mergulho, exibindo, inocentes, a esbelta nudez, enquanto alardeavam proezas natatórias. Por entre as pausas, estendidos ao sol nos grandes lajedos das margens, não resistiam à vaidade, entoando com um tom de cantilena:
- Eu sei um ninho de pintassilgo!
No final do dia, comandada pelo badalo do sino, a pequena aldeia recolhia-se, com cada um, em sua casa, a dar certidão de vida à demais família. Depois da ceia, caso a lua estivesse de feição, vinham para a rua e sentavam-se nos degraus do balcão, dando de caras com a vizinhança. Era então chegada a hora - tal como nas noites invernosas, junto ao lume – de soltar o maravilhoso que havia dentro de cada um, polvilhado de contos, de cenas jocosas, de canções e de lendas. Respeitando as hierarquias, as primeiras palavras pertenciam sempre ao mais velho:
- Era uma vez o Arranca-Pinheiros e o Arrasa-Montanhas. Um dia, estavam eles no meio de um pinhal, resolveram…
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domingo, 16 de agosto de 2020

BICHOS

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AC, Gravura rupestre do Poço do Caldeirão, rio Zêzere

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Esgueirava-se, por entre as giestas, tentando ver e não ser vista. Tinham-lhe dito que, a meio da manhã, passaria por aquelas bandas a Senhora dos Santos Bichos, a fim de esconjurar a maleita, e não queria perder a ocasião de lhe dirigir uma dúzia de palavras, ou pouco mais, a fim de colocar um açaime nos seus medos.
O andor, transportado por quatro acólitos, que precediam o padre, emergiu da curva do Carvalhal Redondo, transmitindo alguma solenidade ao acto. A Russa, ciente da ocasião, ajeitou a saia, passou a mão pelo cabelo e aguardou, ansiosa. Quando o cortejo passou à sua beira, deu um salto para o caminho, prostrou-se  no chão e, baixando a cabeça, inquiriu:
- Senhora dos Santos Bichos, minha santa, é verdade que anda um bicho à solta por aí?
Ninguém respondeu, o cortejo seguiu em frente. A Russa, não se contendo, exclamou:
- Homessa! Mas eu sou algum bicho do mato, ou quê?!
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sábado, 15 de agosto de 2020

PARA LÁ DA TRANSPARÊNCIA

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Margarida Cepêda, Transparente

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Não tinham filtro, como quem respira à flor da pele. Corriam com vontade de abraçar a vida, sorriam com a naturalidade dos dias, transpiravam na azáfama de serem felizes. Sem o saberem, com tudo tão natural, eram mesmo. 

Perante tanta cor, tanto movimento, e com novas configurações a acenarem para lá do horizonte, queriam mais, e mais, e mais. Em suma, queriam crescer. Ainda não sabiam que, quanto mais queriam, mais defesas teriam que criar, vendendo a espontaneidade. Ser adulto, iriam sabê-lo depois, ia muito para lá da transparência dos primeiros dias. Conservá-la, ainda que com novas cambiantes, fazia parte dum novo desafio. Ou tinham força para sustentar a verdadeira essência, sabendo ultrapassar os medos, ou desciam no próximo apeadeiro. Sem dramas, se cada um souber qual o seu lugar. É então que começa a verdadeira luta.

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sexta-feira, 7 de agosto de 2020

MULTIDÕES E MINORIAS, SAGRADO E INSANO

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AC, Fogo à distância de um fósforo
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Já não se sabe onde começa a história, mas, a determinada altura, perante a histeria geral, fomentada por alguns, toda a gente enveredou pelo refúgio em abrigos seguros, modernas cavernas que nos isolam, não só do "inimigo invisível", mas, acima de tudo, dos outros, ou seja, de nós próprios.
Em nome da segurança, começámos a seguir novas tendências: deixámos de abraçar, quase deixámos de opinar, falta-nos o ar, estamos a deixar de amar. Entretanto, para adensar o caldeirão de impropérios, os pobres estão cada vez mais pobres, os fracos cada vez mais fracos, a liberdade parece ter-se encerrado num quarto escuro. Até os incêndios, cada vez mais florescentes, parecem ajudar à festa.
Como em qualquer intempérie, a irracionalidade é como o azeite misturado na água, vem sempre à superfície: primeiro nós, depois nós, e só depois, muito depois, vêm os outros. Na prática, é o caos. Mas há excepções, claro, há uma minoria que, com fundamento científico e possuidora duma visão global, se satisfaz no bem comum, apesar das sementes da solidariedade tardarem em fazer efeito. Pacientes, aprenderam que construir custa muito, que poderá demorar, nalguns casos, gerações, enquanto que o acto de destruir, por vezes, fica à mera distância dum fósforo. Mas eles, apesar da manada começar a mostrar  sinais de impaciência, continuam a acreditar que a vida, para lá das religiões, é um acto sagrado. E trabalham, na sombra, para encontrar soluções, tentando contrariar, numa visão com fundamento, a besta destruidora que, lentamente, se vai insinuando  no nosso dia-a-dia.
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segunda-feira, 3 de agosto de 2020

ROSA

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Margarida Cepêda, No coração da rosa
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Era o tempo dos cardos e das prosas inconsequentes, de viola a tiracolo, sem rumo definido.
Numa manhã orvalhada, parecida com muitas outras manhãs, um raio de sol deu brilho às gotas que escorriam, vagarosamente, das pétalas duma rosa, perdida entre as ervas dum qualquer jardim, como que a acenar com a revelação dos mais delicados segredos, promessa de mil e um encantamentos. Olhei, fascinado, quase não respirando. Ousei aproximar-me. Desviei as ervas, com cuidado, mas não o suficiente: um espinho pintalgou-me um dedo de vermelho, como que a alertar-me para a delicadeza da flor. Mas o perfume, ah, o perfume...! 
Nunca mais deixei de voltar. Entremeadas por ventanias e trovoadas, houve mais manhãs orvalhadas, mais manhãs de magia, sempre com o perfume a manter-se incólume. E eu, cultor de dúvidas, comecei a adquirir uma certeza: tu não eras uma rosa, tu eras a Rosa.
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sábado, 25 de julho de 2020

ESBOÇO DE TELA EM DISCRETAS TONALIDADES

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Margarida Cepêda, Azul
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Para a Graça Pires
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Há, na tua convicção, uma vontade que, apesar de adornada com cores reservadas, tudo ousa enfrentar. Não derrubando, isso nunca, mas respeitando, respeitando sempre, tentando entender olhando, sentindo, por mais que inquiete e doa. Depois, com o soltar de pequenas réstias de luz, vais vencendo os medos, construindo alicerces para um mundo novo, de janelas cada vez mais abertas, mas com espaços interiores onde apenas têm guarida as flores mais discretas e delicadas. 
No epicentro, resguardado como fio invisível que tudo sustenta, o veio inicial que te fez iniciar a jornada. É aí que reside o segredo, o precioso Graal que, depois de tanta demanda, descobriste que sempre esteve perto de ti.
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quarta-feira, 22 de julho de 2020

MIGUEL

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Pormenor de A Criação, de Miguel Ângelo
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Há um novo ser que desponta, rompendo as águas
um jardim que renasce, adornando a vida
a esperança a montar residência em todos aqueles  que o rodeiam.
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A vida, assim, é mesmo bela.
Bem-vindo, Miguel!
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terça-feira, 21 de julho de 2020

TEMPO SEM TEMPO

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Salvador Dali, A Persistência da Memória
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A canícula tem sido inclemente, tolhendo gestos e pensamentos, configurando um galinheiro em estado de sítio, com as galinhas a perderem o norte. Mas eis que, repentinamente, os deuses se compadecem, e enviam uma chuva apaziguadora, entremeada de raios e trovões, qual recado para os pretensos donos dum qualquer galinheiro.
A vida quer-se simples, apregoa o filósofo da reconciliação, mas isso dá uma trabalheira danada. E, pondo de lado qualquer reflexão, condição mínima para qualquer tentativa de evolução, dá-se primazia ao grito, à vitimização, tentando condensar a razão de ser aos gestos mais básicos e mais boçais. Dizem-me que é assim, que é da natureza humana, mas tenho dificuldade em aceitar essa argumentação. É que, para lá do básico, há sempre uma margem de progressão, alicerçada em princípios nobres e elevados, assim nós o queiramos. É uma luta dura, eu sei, uma luta de sempre. Com avanços e recuos. E não é à toa que, no mundo em que vivemos, emergem, ciclicamente, figuras de banda desenhada, ou de qualquer má ficção, como Trump, Putin, Bolsonaro, Kim Jong-un...
Voltemos à chuva benfazeja, permitam que me centre na minha horta. Ela sofreu, há tempos, um forte revés, mas, a pouco e pouco, começou a renascer, produzindo tomates, curgetes, pepinos, alfaces, cebolas, pimentos... Como em tudo, há que dar tempo ao tempo. E o gozo que me dá, depois da rega, colher esta ou aquela espécie para abastecer a cozinha!
Infelizmente, vivemos num tempo em que todos parecem querer tudo para hoje, olvidando as memórias, individuais e colectivas, de como se chegou até aqui. E exigimos, exigimos cada vez mais, como se tudo viesse dum saco sem fundo.
Agradeço aos deuses a chuva retemperadora, propícia a uma pequena pausa, mas ela não esbate a evidência: olhar para o nosso ego, continuamente, sem nos preocuparmos com a visão e o bem-estar dos outros, vai acabar por dar cabo de nós, sejamos bons ou maus. Sem excepção.
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sexta-feira, 17 de julho de 2020

O GRITO

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Fotografia de Flavio Scalzo
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Caminhavam quase hirtos, a medo, não se desviando do rumo pré-definido, como se em cada vulto, em cada esquina, ou em cada movimento, espreitasse o perigo. 
Fazia calor, o suor começava a insinuar-se, o incómodo fazia-se cada vez mais presente. Quase sem se darem conta, iam ajeitando as máscaras, tentando aliviar o não aliviável: a insegurança no recém-viver, a incapacidade racional de estabelecer pontes harmónicas para a nova forma de estar. 
Tentavam seguir as regras, mas elas mudavam a cada instante, acentuando a insegurança geral. Além disso, na luta pela sobrevivência, só alguns podiam ficar resguardados, em casa ou em qualquer poiso distante. Os outros, a grande maioria, os tais que o cronista de antanho designou de "ventres ao sol", muitos deles achocolatados, tinham que lutar, continuamente, por um lugar no autocarro, no comboio, ou no barco, onde o distanciamento social era remetido, sem aviso de recepção, para a procedência. Tinham que chegar ao destino, ou não recebiam.
Alina, veterana desta luta diária, desceu as escadas para entrar no metro do Marquês. Aproveitando um breve momento em que não via ninguém por perto, retirou a alça da máscara da orelha direita, manteve-a a meia haste e, com toda a convicção, lançou o grito libertador, prolongado pelas paredes do túnel:
- Foooodaaaa-se!
Depois, já mais aliviada, voltou a ajeitar a máscara e correu, desalmadamente, para não perder o comboio da sobrevivência.
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quinta-feira, 16 de julho de 2020

REDENÇÃO

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Imagem retirada da net
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Dizia-se amarela. Depois azul. Logo a seguir, quase sem pausas, assumia-se roxa, verde ou siena, pronta para o que desse e viesse.
Procurava-se? Não, nem tanto. Era apenas uma questão de sobrevivência para um ego sem sustentação, que dependia totalmente da energia dos outros. Então, sem verdadeiramente as sentir, ia desfilando cores, como estratégia, até que alguém se dignasse olhar. Depois, caso um ratinho cheirasse o queijo, fazia o pino, pintava a manta, queimava o sutiã. Numa tela resguardada, claro, longe dos rebentos, delicadas joaninhas que, felizes, se deslumbravam com as flores do jardim. E, por entre efabulações descontínuas, sem capacidade para pintar os cenários que evocava, acabava sempre por perder a cor,  afugentando a presa, dando guarida ao despeito e ao rancor.
Lá fora, indiferentes ao secreto jogo multicolor, as joaninhas continuavam a sorrir. Talvez nelas, tecedeiras de cores alegres e vibrantes, residisse a verdadeira redenção, e não tivesse que fazer como Marcel Proust: discorrer em busca do tempo perdido.
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domingo, 12 de julho de 2020

LIÇÃO PRIMEVA

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Imagem retirada daqui.
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Um passeio em família, um vale com um ribeiro, a merenda.
Entre palavras e sorrisos, um melro, ladino, abeirou-se dumas migalhas. Com todos ligados à corrente das palavras, apenas o menino reparou, e o melro continuou. 
Já saciado, o melro partiu, o menino o seguiu. Foi então, importante lição, que ele percebeu que voar, para lá do falar, só mesmo na imaginação.
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quarta-feira, 8 de julho de 2020

PODERÁ LEVITAR SER SINÓNIMO DE MERGULHAR?

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Talvez fosse da conjugação dos astros, dos cromossomas, ou da alma rebelde com livre arbítrio. Não sabia explicar como o fazia, mas levitava, constantemente, enquanto os outros se limitavam a observar. Admirando ou deplorando.
Disseram-lhe que, para ser entendido, tinha que aportar em praias já habitadas, conjugar os verbos dentro da norma. Tentou, tentou, mas quanto mais tentava, mais náufrago se sentia. E então percebeu que, para agradar, mais refém tinha que ficar: de pastores, aduladores, manipuladores, confessores, ditadores, estupores...
Libertou-se, a custo, da névoa da normalidade. Sondou os ventos, libertou as íntimas aves, apanhou o expresso da incerteza. E começou, de novo, a levitar, dando cor e forma às paisagens que ia tentando domar, com dificuldade, no inevitável mergulho aos abismos mais profundos da sua alma.
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sábado, 4 de julho de 2020

GATA ESCALDADA DE ÁGUA FRIA TEM MEDO

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Descia a rua, em passo gingado, cadenciado pela música dos fones, como se cada movimento fosse tão natural como o respirar.
Entrou na marginal, fintando os semáforos, sempre com a mesma ginga. Depois, num alarde de audácia, contornou as barreiras e desceu para o areal, sempre no mesmo ritmo, como se deslizasse nas notas dum blues muito pessoal.
Quando chegou ao areal fez uma pequena pausa. Descalçou os sapatos de salto alto, adaptou os pés nus à nova textura e, retomando a ginga, encaminhou-se para o lugar onde a água beijava, delicadamente, a areia.
O sol já se despedia, dourando as águas, uma ou outra gaivota sobrevoava o local. Mas ela não se deteve. Entrou na água e, ao primeiro contacto, deu um salto de recusa, enquanto os fones iam pelos ares.
- Porra, que está fria!
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terça-feira, 30 de junho de 2020

FOGACHO DE RIACHO PARA LÁ DO DESNORTE, REJEITANDO A MÁ SORTE

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Imagem retirada da Net
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Faz de conta que era um menino. Ele olhava, olhava, à procura da ponta do fio para entender tanto desnorte. Mas, quanto mais olhava, mais confundido ficava. Todos tinham as suas razões, mas ninguém ouvia as razões dos outros. Mesmo que fossem as mesmas.
O olhar dos meninos, com tantas portas e janelas para o sonho, raramente fica confundido, e ele acabou por tomar uma decisão: subiu para o penedo que servia de promontório, abriu a braguilha e começou a ensaiar um arremedo de riacho. Depois, voltando as costas, seguiu à sua vida, em busca de melhor sorte.
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sexta-feira, 26 de junho de 2020

GOSTOS

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Ela é talentosa, autêntica, única, reconhecida nos palcos referenciais de todo o mundo onde se considera, suprema exigência, que alguma música só pode ser tocada por pessoas que alcancem os deuses.
Pelo seu percurso e pela excelência alcançada na sua arte, faz parte do leque das poucas pessoas que admiro, ainda por cima coincidindo num gosto que nos orienta: o reencontro no contacto com a Natureza.
Para meu deleite, já a visitei duas vezes em Belgais para a ver tocar, para este verão estava programada uma terceira. Infelizmente, pelas razões que todos sabemos e, acima, de tudo, sentimos, todos os concertos foram adiados para 2021. 
O tempo, bem vistas as coisas, é uma insignificância, e o reencontro está já ali à espreita. Talvez, para além da excelência da música, seja possível calcorrear alguns dos  recantos que encantam os seus merecidos dourados dias.
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quarta-feira, 24 de junho de 2020

DESPEDIDA EM ACORDES DE "O AMANHÃ COMEÇA AGORA"

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Fotografia de AC
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Para o M.
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Segue. Não olhes para trás, sê imune ao ruído. Segue, segue sempre. Se, no decorrer da viagem, tiveres a ventura de algo te tocar a alma, então sim, pára, mas sê humilde na avaliação, exigente na reflexão. Mas cinge-te ao essencial. Não embarques em loas de sereia, nas palavras engomadas de qualquer gravata, no mau tempo anunciado pelos velhos do restelo.  Ouve, fixa bem. Para lá do ruído, a Natureza, por mais que a desdenhem, será sempre um guia fiável. Até porque, soprem os ventos que soprarem, não consta, que se saiba, em qualquer tabela de Excel.  Mas nunca te esqueças: quando sentires que tens que seguir, deixa sempre um rasto da tua dignidade, da tua simpatia. É que, por mais que pensem o contrário - dizem que sim, mas deixaram de acreditar - as flores podem crescer em qualquer lugar.
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terça-feira, 23 de junho de 2020

DIÁLOGOS PROVÁVEIS AO TELEFONE NUM (IM)POSSÍVEL ABRAÇO

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Ondulam os pinheiros na encosta, como sempre o fizeram, mas as aves procuram outros rumos, como se, em Junho, a vinha já tivesse sido vindimada. Algo as perturba, algo as atemoriza. É verdade que os mensageiros da corte têm estado mais activos do que nunca, mas ruído sempre houve, sempre haverá. Talvez, para lá das circunstâncias, haja algo nas bússolas que acautele a sobrevivência, que aconselhe ao recolhimento. Mas... será que a vida se resume a uma espera contínua? Nada mais haverá para além disso?
Tens razão, sempre houve ondulações e sempre haverá. Mas os deuses, ao tentarem viciar os dados, perderam o controle do tabuleiro. 
Desculpa, mas não acredito em deuses.
Nem eu, nunca acreditei em falsos deuses. Mas, podes crer, há cada vez mais por aí, recitando ladainhas para todos os gostos. É só escolher.
Será este um triste desígnio, um triste fado?
Não, há sempre uma possibilidade de redenção, de nos reencontrarmos com a harmonia. Se deixarmos de lado as (nossas) chinelinhas e as capelinhas, como se elas fossem o centro do mundo, talvez as bússolas se reconfigurem, talvez a fruta cresça no tempo certo.
Gostei de te ouvir, gosto sempre. Obrigado por telefonares. É sempre tão bom ouvir-te, sentir esse afago para dar calor à cumplicidade.
Se precisares, o carro estará sempre disponível para a viagem. Sempre.
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sábado, 20 de junho de 2020

O INEVITÁVEL OLHAR PARA LÁ DE NÓS

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Fotografia de AC
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Olho-te, debruçada sobre algo que te parece doloroso, quase único, como se nada mais houvesse para lá dos limites do teu mundo. Sinto que sofres, como todos sofremos, que te revoltas, como todos nos revoltamos. É assim, é da nossa condição. Tendemos a não acreditar, olhando tudo pela mesma medida. Mas, se estiveres atenta, há quem note que há uma luz que refulge, tingindo os dias, como que recordando que todos os dias são dia de vida. E, se continuares atenta, verás que essas pessoas seguem sempre em frente, orientando-se pela bússola da luz, olhando com carinho para cada pedra que ultrapassam. Para lá do que buscam, eles sabem que cada pedra fará, para sempre, parte de si.
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