sábado, 25 de junho de 2011

QUANDO A VONTADE SE INSINUA À TONA D'ÁGUA

.Hélio Cunha, A Porta do Infinito
.
.
.
Quero despir-me destas roupas, desta opressão, sentir de novo a leveza do cavalgar das nuvens.
Houve um tempo em que os aromas me beijavam logo pela manhã, tecidos em leveza e envolvência, e acompanhavam-me em risos despreocupados forjados na arquitectura do coração.
Quero resgatar as memórias, reencontrar algures o tempo perdido.
.
.

sábado, 18 de junho de 2011

FLOR

.Hélio Cunha, O Abismo do Paraíso.
.
.
.
Era no tempo da intensidade dos dias, quando o alegre murmurar do regato abafava a teia do asfalto. Bebia ocasos e madrugadas a olhar as aves, a senti-las, a entender a sua bússola.
A inquietude não se desfazia, nunca se desfez. Aprendi a sentir-lhe a respiração, a conhecer-lhe as manhas, a rir-me com ela. Mas há apelos que nunca se aquietam. E parti.
Quando me despedi, num vislumbre, atiraste-me uma flor.
Ainda hoje lhe sinto o aroma.
.
.
.

domingo, 12 de junho de 2011

O LADO NEGRO DA LUA

.Hélio Cunha, A Lua do Caçador
.
.
.


Ouves?, nunca a voz do cuco se insinuou como agora. Diz que a divisão do pão está ameaçada, que a culpa é exclusivamente nossa. Que cantamos de mais, choramos de mais, amamos de mais.
Estava ele no sádico prazer de pôr ovo em ninho alheio quando umas vozes, vindas não se sabe de onde e enquadradas em raios e trovões, lhe gritaram ao ouvido que, se quisermos a ração diária, teremos que ser soldados obedientes, frugais, dar sempre o máximo, beijar a mão de quem nos propicia tal bem. Pois não é verdade que, acossada pelos abutres, há sempre uma multidão desejosa de ocupar o lugar do soldado caído por exaustão?
Os pardais riem-se, pois são imunes a fronteiras e convenções, mas a maioria das espécies prepara-se para o dobrar da cerviz.
A águia altaneira, pugnando pela dignidade, voa para cada vez mais longe. Em breve estará extinta.
.
.
.

sábado, 4 de junho de 2011

GOSTO

.Pintura de Margarida Cepêda
.
.
.
Gosto, mas, acredita, às vezes nem sei porque gosto.
Olho para os teus gestos e vejo-te em contínua peregrinação. Ia a dizer que se fosse forjada em olhar interior era acto que requeria um profundo fôlego, mas as aves não voam dessa forma, limitam-se a seguir o rumo natural das coisas.
Navegas assim, à bolina, sem preocupação com a cor das nuvens. Delas absorves o melhor, encontras sempre razões para suspiros de admiração e apaziguamento. E cantas.
Sabes, gosto de ti porque gosto. Isso basta-me.
.
.