domingo, 26 de dezembro de 2010

CONSPIRAÇÃO

.Margarida Cepêda, O destino rasga e cose
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Procuro o retiro da montanha, mas o teu eco, vindo de longe, galga a encosta e agita, de leve, as copas dos pinheiros. A brisa afaga-me a pele, contando-me da tua nudez em busca de resgate, e as aves, cúmplices, não param de entoar árias à sede dos teus lábios.
Tudo parece conspirar, e até as cores da aurora ajudam a perpetuar a tua omnipresença...
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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

VISLUMBRE

.Margarida Cepêda, O Rei e o Cavalo
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Em pequeno encantara-se com a história de Sebastião, o rei menino, que se perdera nas areias do deserto em busca de uma quimera. Mas, ao contrário dele, a sua visão não passava pelo alargamento de fronteiras em detrimento de outros. Sonhava um reino, sim, mas um reino sem reis, um espaço abrangente onde houvesse lugar para a reinvenção da vida.
No velho edifício caduco, em ruína iminente, os funcionários mantinham a porta aberta num dissimulado faz de conta, tentando retardar o anúncio da derrocada. Geriam a crise por etapas, em que a próxima significava sempre o descer de mais um degrau.
Talvez fosse melhor assim, a maioria das pessoas não estava preparada para saber a verdade. Sentiam-lhe os contornos, mas não queriam encará-la. Mais tarde ou mais cedo o edifício ruiria, e o desespero e a rapina seriam condição natural. Era por isso que tentava ver por entre as frestas das armadilhas dos senhores do mundo, de que todos sentiam o peso sem rosto, em busca de um vislumbre de possíveis clareiras. O pesadelo era inevitável, mas também sabia que muitas vezes era no infortúnio que se forjava o que de melhor há nos homens. As flores acabariam por germinar.
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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

ILUSÃO

.Margarida Cepêda, A Ilusão
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Dentro de ti tudo era certo e incerto, apesar de saberes da conjugação dos astros.
Recolhias-te ao silêncio, fechando os olhos para ver mais claro, mas a inquietação era cúmplice, e só quando me pressentias para lá do rio, no caminho que ia dar aos salgueiros, é que conseguias invocar o feitiço das borboletas.
Era ainda o tempo de respirar o aroma das rosas, de seguir a linguagem dos sentidos...
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Sei que estou em falta na visita aos blogues amigos, mas a minha actividade profissional tem sido tão intensa que me tem sido impossível. Talvez este fim-de-semana consiga equilibrar as coisas.
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domingo, 12 de dezembro de 2010

CONTO DE NATAL

.Imagem tirada da Net
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A década de sessenta iniciara-se há pouco.
Na aldeia, inclinada à inclemência dos gelos da Estrela, não se poupava na lenha. Em casa do Luís Pereira o lume crepitava desde muito cedo, inundando a cozinha com um calor só visto nas grandes azáfamas.
Da horta, logo de manhã, tinham chegado as mais lindas e apetecíveis couves, que iriam fazer companhia, na Consoada, ao bacalhau já demolhado, comprado na mercearia da menina Amélia. Mas havia ainda muito que fazer: só de doces ainda faltavam as filhós, que seriam fritas a meio da tarde, as rabanadas, o arroz doce...
O João, seis anitos de gente, cirandava pela casa tentando não perder pitada de todo aquele movimento, que só se via naquela altura do ano. Enquanto a mãe e as irmãs davam voltas à massa para as filhós, o pequeno não arredava pé, como se toda aquela lida desse asas ao encantamento com que vivia a época.
- Oh João, vai brincar lá para fora!
É o vais! O João empolgava-se a respirar todos aqueles preparativos para "a noite mais longa do ano", como dizia o pai, e só quando era preciso reforçar o lume é que ele condescendia em ir ao quintal para trazer mais uns cavacos. Era preciso aquecer bem a casa para receber o Menino Jesus!
Durante a fritura das filhós, toda a casa se via envolvida em cantos. Enquanto lhes davam forma e as colocavam no azeite quente, as mulheres cantavam em louvor do Menino:
........Ó meu Menino Jesus
........Ó meu menino tão belo
........Só Vós pudestes nascer
........Na noite do caramelo.
À Consoada, após a oração dirigida pelo chefe da casa, as atenções centraram-se no bacalhau e nas couves que, a pouco e pouco, iam desaparecendo de duas grandes travessas. Aos dois filhos mais velhos, já homens feitos, foi-lhes permitido acompanhar o pai e o avô num copo de vinho, que a ocasião era de festa. A noite ia decorrendo, animada, como seria de esperar numa mesa com dez pessoas irmanadas pelos mesmos sentimentos. As filhós e as rabanadas iam temperando a conversa, que alternava aqui e ali com as canções que as mulheres tentavam impor e a que todos aderiam...
........Da vara nasceu a vara
........Da vara nasceu a flor
........Da flor nasceu Maria
........De Maria o Redentor.
Ainda a mesa da Consoada não estava apanhada e já o João, afoito, corria para a cozinha, na ânsia de colocar os sapatos para a prenda do Menino Jesus. Ainda esboçou um gesto para levar também as botas feitas no Zé Brás, o sapateiro da terra, para ver se o leque das prendas aumentava, mas os olhos da mãe disseram-lhe que não valia a pena. Pouco depois recebeu ordem para ir para a cama, enquanto os mais velhos, com outro estatuto, saíam para a missa do Galo, a que se seguiria uma ida ao madeiro, que combatia o ar gelado da noite no adro da igreja.
No dia de Natal, bem cedinho, ainda antes do galo cantar, o João foi o primeiro a levantar-se. Com o coração aos pulos, correu para a cozinha e galgou a distância em dois tempos. Pegou no embrulho que estava junto dos seus sapatos, atado com um grosseiro cordel, e desembrulhou-o logo ali. Então, deslumbrado, pegou na camisola e nas calças novas e levou-as, instintivamente, ao seu corpito de menino. Que bem lhe ficariam na missa de Natal!
A manhã custou a passar, pois nunca mais chegava a hora de vestir a roupa nova. Ansiava pelo momento de subir a igreja, de peito inchado, exibindo a roupa para os amigos. Quando, finalmente, chegou a autorização da mãe, ele e os irmãos partiram para a igreja, onde os aguardava o encantamento das enormes figuras do presépio que o padre Nicolau tinha mandado vir do Porto.
Enquanto faziam o caminho o João continha-se para não correr. Queria chegar à igreja o mais rapidamente possível para ver o presépio, mas com a roupa direitinha. Contudo, os cânticos que se ouviam ao longe ainda acirravam mais a vontade de chegar depressa. Os irmãos, que lhe notavam a ansiedade, sorriam uns para os outros. Apesar das partidas que ele lhes pregava, gostavam muito da vivacidade do irmão mais novo, e sabiam o que ele estava a sofrer para dominar a sua vontade. Às tantas, já com a igreja à vista, o pequeno não se conteve mais e começou a correr. Os irmãos ainda tentaram segurá-lo, mas quem o conseguiu foi uma pedra solta no meio do caminho, que o fez estatelar no meio do chão.
Teve que voltar para trás e, quando chegou a casa, ainda não parara de soluçar, tal a decepção que sentia ao ver a sua roupa nova toda enlameada.
Com muito jeitinho e uma paciência que só as mães têm, a Maria José lá o convenceu a vestir outra roupa. E o João, que sonhara com uma entrada triunfal na igreja, subiu a coxia de cabeça baixa, só estacando em frente do presépio. Então, à vista daquelas maravilhosas figuras, o miúdo começou a esquecer-se da roupa que vestia. Deitou os olhos para o Menino e, qual milagre de Natal, teve a certeza que Ele também olhava para si. E sorria-lhe.
Durante o almoço toda a gente estranhou o silêncio do João. Não que ele estivesse triste, longe disso, mas mostrava-se tão ausente do que tinha no prato que parecia longe dali, absorto em mil pensamentos. Mas o que passava na sua cabeça devia ser coisa boa, pois de vez em quando esboçava um sorriso. E só mais tarde, quando lhe puseram uma taça de arroz doce à frente e o viram desenhar um menino com a canela, é que perceberam o encantamento que ia na alma do pequeno.
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Reedição
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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

ESBOÇO DE ETERNIDADE

.Margarida Cepêda, As núpcias
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Chegava de mansinho quando, à tardinha, te sentavas no banco que ficava junto da grande tília, e as palavras do poema eram passaporte para o enlevo. Enquanto lias, envolvia-me no aroma das flores e insinuava-me, de leve, na subtileza do teu corpo. Sentias a carícia, a intensidade do desejo, e deixavas que o doce perfume invadisse todos os teus recantos.
Embalados no sentir um do outro, só parávamos quando nos era dada a visão da eternidade, ainda que momentânea.
Lá fora o cavalgar do tempo fazia-se longe, muito para lá do horizonte, enquanto dávamos abrigo à ternura...
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domingo, 5 de dezembro de 2010

OLHAR DA MONTANHA

.Fotografia de Zélia Vaz
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De longe nada se vê, tão pouco de perto. A montanha, germe de vida em contenção, é ciosa do seu equilíbrio, dos seus segredos.
O portal de entrada, dissimulado na vulgaridade das coisas, não é visível, sente-se. E, aos poucos que o transpõem, nada lhes é dito. São eles que, pela natureza do seu caminhar, entram na montanha com a naturalidade da nudez.
No seu desfrutar, sentir é condição primeira e, despojando-se das cicatrizes, desvendam cores e odores, mergulhando na essência do lugar.
Montanha, eterno feminino...
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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

DESCOBERTA

.Margarida Cepêda, Descoberta
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Mergulho repetidamente ao mais fundo de mim, pretensão fotográfica do turbilhão das águas. Tento captar-lhe o movimento, a densidade, mas em vão. Não há configuração, o padrão refaz-se a cada momento. E surge a constatação. Não sou onda, não sou mar, apenas ínfima gota à deriva.
Olho em volta e respiro o debater de outras gotas com o mesmo anseio. E então percebo. A realidade não é o resultado de um olhar, mas o somatório de muitos, unidos na mesma vontade. Temperado, de preferência, com esperança.
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